Por: Clóvis Barbosa
Golda Meir
É fato sabido. Em 1972, por ocasião dos jogos olímpicos de Munique, o prédio onde estava a delegação de Israel foi tomado por terroristas do grupo radical Setembro Negro, sob o comando do saudoso Nobel da Paz Yasser Arafat (que ironia). À época, a primeira-ministra judia, Golda Meir, solicitou ao premiê da República Federal Alemã, Willy Brandt, autorização para que as Forças de Defesa de Israel (o Tzahal) interviesse, invadindo o complexo olímpico. O pedido foi negado. Aconselhou-se Golda Meir a negociar com os terroristas. A resposta da primeira-ministra foi acachapante: "Esses alemães, não conhecem o 11º mandamento: "jamais negociarás com terroristas"". Conseqüência: o exército alemão entrou em ação. Morreram todos os terroristas e todos os atletas judeus. Não fica-ria por aí. Golda Meir determinaria que o Mossad liqüidasse os responsáveis por aquele atentado, o que foi parcialmente feito. Desse episódio, todavia, marcou-me a máxima de jamais negociar com terroristas.
Interessante. Esse fato ficou martelando durante o passar do tempo. Martelando e incomodando. Ele, por exemplo, ressurgiu em meus olhos quando fui Conselheiro Federal da OAB. Ali, convivi com expressivos nomes do mundo jurídico brasileiro. Dentre tantos, impressionou-me, pelo amor à constituição, o jurista cearense Paulo Bonavides. O nosso Carlos Britto e o potiguar Paulo Lopo Saraiva foram dois outros nomes que defendiam, com faca nos dentes, nossa carta cidadã. Certa vez, durante um evento da OAB, em São Paulo, desloquei-me, num mesmo transporte, para Guarulhos, ao lado de Bonavides. Durante o trajeto, decepcionado com a mutilação que se fazia na CF, ele me dizia que era preciso criar um Partido, o PC: Partido da Constituição. Ele reclamava das mudanças periódicas no seu texto, muitas vezes para atender interesses casuísticos. Era preciso, segundo ele, preservar as instituições e as conquistas democráticas. O respeito à Constituição seria conditio sine qua non para a caminhada à cidadania. Norberto Bobbio, em "O Futuro da Democracia", afirma que o respeito às normas e às instituições da democracia é o primeiro e mais importante pilar para a renovação progressiva da sociedade, inclusive em direção a uma possível reorganização socialista. Nesse sentido foi que nossa carta de 88 estabeleceu, como um de seus mais relevantes objetivos, construir uma sociedade livre, justa e solidária.
Para assegurar a liberdade, a justiça e a solidariedade, no entanto, seria preciso que seu arcabouço legislativo estivesse afinado com a vontade popular. A Constituição, por conseguinte, nasceu de uma Assembléia Nacional, convocada com o fim único de estruturar uma nova ordem constitucional para o país após a ditadura militar. Podemos dizer que, hoje, se vive numa democracia. Aliás, em "Sociedade Aberta e os seus Inimigos", Karl Popper ensina que a distinção essencial entre um governo democrático e um não-democrático é o seguinte: apenas no primeiro, os cidadãos podem livrar-se de seus governantes sem derramamento de sangue. Se é assim, a alternância de poder, no Brasil, sem maiores problemas, traduz uma realidade da nossa democracia (seria a transubstanciação da máxima de Rui Barbosa: "fora da lei não há salvação").
Infelizmente, porém, sabemos da dificuldade que se tem para fazer respeitar as regras legais pactuadas, principalmente neste momento de assembleísmo e corporativismo extremado, onde segmentos de servidores públicos se arvoram como donos da verdade e usam da força e da selvageria para fazer valer o que primitivamente desejam. Não se preocupam com a questão legal e, muitas vezes, ao invés de angariar o apoio da população (como se testemunhou no caso dos policiais militares da Bahia e dos bombeiros no Rio de janeiro), receberam sua antipatia. Não se está defendendo, aqui, o cerceamento dessas categorias. Elas devem debater pelos seus pleitos e buscar melhorias remuneratórias. Nem se pretende demonizar esta ou aquela liderança desses movimentos paredistas. O que se quer, agora, é resguardar a conquista do povo brasileiro que te-ve, a partir de 1988, a oportunidade única de nunca mais se ver atemorizado por um governo guiado por baionetas.
Não se pode deixar de acreditar na democracia e em um dos seus mais consagrados instrumentos, que Habermas chama "razão dialógica". Através dela, a linguagem e a argumentação preponderam dentro de uma liberdade comunicativa, cuja discussão, mesmo dentro de uma pauta de reivindicações, deve ter como alvo a melhoria das condições do povo. O conteúdo de qualquer discussão deve ser visto pelos olhos dos cidadãos e, em nenhuma hipótese, pelas lentes de quem pretende insurgir-se contra esses mesmos cidadãos. O intrigante, nisso tudo, é que a canção do soldado pugna, numa letra de beleza ímpar: "Nós somos da pátria a guarda, fiéis soldados por ela amados. Nas cores de nossa farda rebrilha a glória, fulge a vitória. Em nosso valor se encerra toda a esperança que um povo alcança. A paz queremos com fervor. A guerra só nos causa dor. Porém, se a pátria amada for um dia ultrajada, lu-taremos sem temor. Amor febril pelo Brasil no coração. E quando a nação querida, frente ao inimigo, correr perigo, se dermos por ela a vida, rebrilha a glória, fulge a vitória. Assim, ao Brasil, faremos oferta igual de amor filial. E a ti, pátria, salvaremos."
Fatos como os que ocorreram em Salvador não acham eco nesse hino, que aponta para uma profissão de fé. Pelo contrário, demonstraram a falta de respeito à cidadania, à constituição, ao estado de direito democrático e, principalmente, às suas instituições. Uma coisa é reivindicar direitos. Outra é o abuso, a prática de crimes e atos de vandalismo. Foi aterrorizante constatar que a maioria das vítimas da onda de violência, que tomou conta da Bahia, após a greve da Polícia Militar, foi morta com tiros na cabeça, em evidente ato de execução sumária. É, parece que, com isso, os militares não foram da pátria a guarda. Não foram fiéis soldados. Perderam o amor do seu país. As cores de suas fardas perdeu o brilho. Não houve vitória, mas derrota. A esperança do povo soçobrou. Não quiseram paz. Não demonstraram dor com a guerra, mas um prazer mórbido. Permitiram que a nação querida corresse perigo. Não salvaram as vítimas eliminadas com tiros na cabeça. Terrificante.
Isso lembrou Munique, em 1972. Golda Meir não quis negociar com o Setembro Negro. O que eles fizeram era inadmissível. Impor sua vontade, escudando-se em atletas inocentes. O governo brasileiro deve respeitar seus militares. Mas, tal qual Golda Meir, não pode ceder aos caprichos de quem põe a baioneta na garganta das massas. A Constituição é uma dama de ferro, que não pode ser oxidada pela chantagem de conjurados. Guardarei o 11º mandamento: não se negocia com quem pratica o terror.
Autor: Clóvis Barbosa
Extraído do blog: "Folha do Delegado", do Delegado de Polícia Civil no Estado de Sergipe: Dr. Archimedes Marques
Nenhum comentário:
Postar um comentário