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terça-feira, 6 de março de 2012

MEUS PEQUENOS RITUAIS (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa
Rangel Alves da Costa

MEUS PEQUENOS RITUAIS

Depois que tive um problema de saúde no final de 2008 e após ser transferido da unidade de tratamento intensivo onde fiquei em coma induzida por treze dias para um apartamento, nunca mais consegui dormir como antes.
Apaguei durante todos aqueles dias e as enfermeiras acharam por bem não me deixar cochilar nem por uma hora seguida. Era remédio atrás de remédio, acordar para medir a pressão, para receber aerosol e tantos outros procedimentos. Depois disso acabou minha noite escura.
Recuperei-me totalmente, menos o sono normal. Todos os dias, de duas e meia pra três da madrugada me desperto num pulo para sair da rede. É isso mesmo, desde meninote, lá pelos doze anos, que passei a gostar de dormir de rede e desde então não há cama que me dê conforto. Se viajo e não levo minha rede é um sofrimento danado.
Após acordar e encontrar tudo ainda escurecido, sempre torço para que esteja chovendo. Sou daqueles que se delicia com os sons da chuva caindo em meio ao silêncio, à paz daquele momento. Ao anoitecer, madrugada adentro ou amanhecer, a chuva simboliza a lavagem do mundo ao redor, a limpeza do espírito, a purificação do olhar.
Por isso mesmo que depois de fazer minhas preces e acender incensos, sigo para o quintal e aprecio o maravilhoso momento da chuva caindo, dos pingos espargindo em mim, muitas vezes indo para o meio da chuva de braços abertos. E no silêncio daquele momento, apenas com o barulhar das águas lavadeiras, me refaço completamente e me sinto totalmente purificado para o enfrentamento do dia.
Ainda nesses momentos molhados, também gosto de abrir as portas do escritório e colocar uma cadeira preguiçosa que tenho do lado de dentro do portão, bem ao lado da chuvarada que cai e borrifa aonde sento. E ali, geralmente com uma xícara de café quentinho, bem forte e sem açúcar, fico olhando as luzes dançando no asfalto molhado, as águas correndo pelas calçadas, ouvindo as goteiras jorrando.
Mais uma xícara de café, um cigarro, a mente fluindo numa paz indescritível. Não há instante mais apropriado para colocar no papel rabiscos poéticos, para escrever textos, inventar estórias. No silêncio que ainda se faz ou acompanhado da melodia da chuva, chegam os personagens em correria, as ideias são tantas que disputam espaço na mente, a vontade de criar é tanta que de vez em quando saio de mim para me entregar totalmente àquilo que escrevo.
Noutras madrugadas também gosto de pintar e desenhar. Deixo pintura a óleo para o entardecer, pois procedimento mais trabalhoso e coloco sobre a mesa papéis, lápis de cera, pincéis e tinta guache de diversas cores. É do que preciso pra criar pequenos quadros como motivos sertanejos para colocar no meu escritório e também presentear alguns escolhidos.
É um processo muito simples, mas que faz um resultado impressionante. Na folha em branco passo algumas cores sóbrias com lápis de cera, tomando o espaço inteiro. Após isso começo a pincelar com guache aquilo que quero representar. Assim, surgem cangaceiros, cactos, paisagens sertanejas, situações simples que me aproximam ainda mais de minhas origens interioranas, bem matutas.
Depois vão chegando os ofícios do dia, os momentos que me afastam do meu mundo e me colocam diante dessa realidade que não exige delongas explicativas. O intimismo, a introspecção e o espelho da alma, vão se retraindo para dar lugar a outros encontros. Então é hora da petição, da contestação, do recurso, da audiência, do acompanhamento processual.
E lentamente o tempo vai passando como uma obrigação de vida, como um cotidiano que se tem de percorrer. Mas o que alimenta o espírito e recarrega o coração de esperança é saber que logo será entardecer, haverá um pôr do sol e uma lua mais tarde.
E também o meu oratório com o meu céu, os meus santos, os meus anjos e o meu Deus. Todas as noites a vela sempre acesa ilumina o meu rosto entregue a orações, conversando com quem verdadeiramente me ouve. E parte do meu dia acaba assim, num ritual de fé e esperança.

Rangel Alves da Costa* 
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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