Casa onde nasceu Lampião
No mês de julho, houve festa em Poço do Negro em homenagem ao Senhor São João, dentro dos sentimentos religiosos de devoção e das folganças tradicionais. Parentes, amigos, convidados, chegando e recebidos, nos alegrados dos cumprimentos de praxe, pelo anfitrião José Ferreira: “Têja a gosto. Faça de conta qui tá na sua própria casa”.
No mês de julho, houve festa em Poço do Negro em homenagem ao Senhor São João, dentro dos sentimentos religiosos de devoção e das folganças tradicionais. Parentes, amigos, convidados, chegando e recebidos, nos alegrados dos cumprimentos de praxe, pelo anfitrião José Ferreira: “Têja a gosto. Faça de conta qui tá na sua própria casa”.
A
casa onde Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, nasceu e foi criado por Dona
Jacosa, sua avó.
As donzelas, com vestidos de chita estampada e flocados de babados e fitas,
rescendendo a água de cheiro, flor no cabelo e rosto empoado, dengo no olhar e
graça no sorriso brejeiro, se divertiam na arte da galantaria e dos namoricos com a rapaziada garrida e aromada, de camisa listrada e chapéu de palha, a
malinagem musicando a natureza.
Na sala de visitas da casa, encostado na parede, ornada com flores de papel de seda de mistura com ramos de melindre e festões de bambu e alfinete, via-se o pequeno santuário de cedro, com o quadro de vidro emoldurado, do Senhor São João Batista, todo enfeitado de fita de cores variadas e de flores naturais: angélicas, cravos e beneditas.
Às sete da noite, enquanto lá fora espoucavam, a intervalos, os foguetes de três bombas, dentro da sala, acendidas as velas de cera, deu-se início à reza da “Novena” tirada pela voz forte e segura da “puxadeira”
Na sala de visitas da casa, encostado na parede, ornada com flores de papel de seda de mistura com ramos de melindre e festões de bambu e alfinete, via-se o pequeno santuário de cedro, com o quadro de vidro emoldurado, do Senhor São João Batista, todo enfeitado de fita de cores variadas e de flores naturais: angélicas, cravos e beneditas.
Às sete da noite, enquanto lá fora espoucavam, a intervalos, os foguetes de três bombas, dentro da sala, acendidas as velas de cera, deu-se início à reza da “Novena” tirada pela voz forte e segura da “puxadeira”
Tia Jacosa - avó de Lampião
Tia Jacosa: terço,
ladainha cantada em honra a Nossa Senhora, responso, orações e cânticos. Tudo ar respondido no “fino” e no “grosso”, arrastado, longo, repetido, sonolento.
- “Cantemo e lovemo.
- “Cantemo e lovemo.
Apois é o que Deus qué,
Sinhô São João Batista.
Ele é fio de Isabé,
Tombém de Zacaria,
É primo de Jesus
E subrinho de Maria...”
Em seguida, era a cerimônia da Beijação, na qual, acompanhada de música
característica Zabumba, em movimentos combinados e conservando o ritmo do
passo, todos, um a um – observados pelos circunstantes em volta, respeitosos
apreciando – se ajoelhavam diante do oratório, beijavam o Santo, recebiam um
“relinque” (fita com a medida do Santo) e depositavam sua esmola no prato ao
lado, como tributo espontâneo de auxílio, enquanto o coro, cantando,
disciplinava:
“De
um a um,
Ao
pé do artá
Se
ajoei premero
Pra
pudê beijá
Sinhô
São João
Nossa
proteção”.
Atiradores, na banda de fora da casa, papoucavam o oco do mundo, com as descargas medonhas de seus bacamartes e reúnas para despertar o Senhor São João no céu!
Findo o ritual religioso, enquanto a fogueira pegava, os convivas provavam das
tradicionais canjica e pamonha, do milho cozinhado e do café, fumegante e
cheiroso, torrado no caco e adoçado com rapadura. No borralho da fogueira,
crepitando e alumiando mais a madrugada, assavam-se espigas de milho, enroladas
na própria palha e batata doce com casca. Estrondavam os foguetões de bomba
anunciando o princípio da festa!
Primeiro a quadrilha. O tocador de harmônico, acompanhado de triângulo,
reco-reco e maracá, dera o sinal para começar. As marcas eram tiradas por
Virgulino, o grande animador de toda festa, lá no francês dele: “anarriê” (en
arrière), “alevantú” (elevez tous), “chãdidama”, (Chantez, dames!) “outrefuá”
(autre fois)... Os pares avançavam, recuavam, girando e girando no balancê
embriagante da animação.
O melhor da festa, além do baião, era dança do coco de roda, formada de pares
em torno da fogueira. Vez por outra, o próprio Virgulino, ao mesmo tempo em que
fazia o fole gemer nas suas hábeis mãos, tirava no repente as loas, bulindo com
os presentes, que respondiam em coro, sapateando e batendo palmas com as mãos
encovadas para dar som grave, no movimento gingado do passo e furta-passo.
(Vale dizer que Virgulino era vigoroso e fluente nos “repentes” da poesia
improvisada, a qual requer grande agilidade mental, prontidão de espírito e
inteligência viva. Naquele tempo, como depois do cangaço, ocasiões houve em que
ele manteve longas conversas em versos no repente, enquanto seu interlocutor
falava em prosa!)
Eram assim os Ferreiras: gente sociável, boa e amiga, cultuando a alegria de
viver, sobressaindo-se Virgulino, que mais tarde no cangaço, transformaria seu
bando em guerrilheiros alegres, tocando, xaxando e cantando até nos combates:
“Meu rifle atira cantando
Em compasso assustador.
Faz gosto brigar comigo
Porque sou bom cantador.
Enquanto meu rifle trabalha
Minha voz longe se espalha
Zombando do próprio horror!”
Porém, a distância em que estavam em relação a Zé Saturnino era muito curta para não sofrerem a influência peçonhenta de seu ódio. Assim, os irmãos Ferreiras em Nazaré eram considerados forasteiros, não eram vistos com bons olhos porque tinham vindo de brigas e no ar pairavam desconfianças, na verdade, resultantes de venenos destilados pelo inimigo, que não perdia ocasião para mansiná-los. Essas más inculcas lhes sabotavam contatos e a formação de amizades. Enfim, Zé Saturnino, inconformado com a modesta recuperação dos Ferreiras, muito embora através do trabalho honesto, não manteve o compromisso firmado de não mais os perseguir.
Porém, a distância em que estavam em relação a Zé Saturnino era muito curta para não sofrerem a influência peçonhenta de seu ódio. Assim, os irmãos Ferreiras em Nazaré eram considerados forasteiros, não eram vistos com bons olhos porque tinham vindo de brigas e no ar pairavam desconfianças, na verdade, resultantes de venenos destilados pelo inimigo, que não perdia ocasião para mansiná-los. Essas más inculcas lhes sabotavam contatos e a formação de amizades. Enfim, Zé Saturnino, inconformado com a modesta recuperação dos Ferreiras, muito embora através do trabalho honesto, não manteve o compromisso firmado de não mais os perseguir.
- Qual o quê! Trato com cabras ruim não vale nada... – sempre
repetia ele.
Ruínas
da casa de seu primeiro inimigo, Zé Saturnino, num sítio vizinho ao de sua avó. A parede
ainda guarda marcas de balas atiradas por Lampião e seus irmãos.
E num dia de feira, no mês de Setembro, acompanhado de uns cabras e armado até
os dentes, invadiu Zé Saturnino a cidade de Nazaré com o pretexto de cobrar um
tal de Agripa Eusébio o pagamento de um cavalo, que o mesmo lhe comprara fiado.
Nisto, vem chegando Virgulino para a feira. Desse dia em diante fechou-se o
tempo e novos tiroteios tiveram vez entre os inimigos, sempre, até então, com
os Ferreiras na defensiva e, do outro lado, um despotismo cruel num disparate
de tiros que despejavam sem nenhum motivo.
Depois desses acontecimentos, compreendeu Virgulino para onde o destino
irresistível o empurrava: “a prevalência do destino”, conforme ele chamava. O
terrível inimigo não queria deixá-los viver em paz, nem mesmo viverem somente.
Teria de enfrentá-los para não se acabar. A aturação passara da conta, e era
ele, como todo sertanejo, paciente, mas não era tolerante não! Iria mostrar que
onça não se cutuca com vara curta. Não ficaria mais na defensiva, nem na
desvantagem, a bem dizer, sozinho, com seus dois manos. O inimigo tinha pessoal
numeroso, era cheio de recursos e tinha o apoio da política.
José Ferreira, perdidas de vez as esperanças de paz, vivia apreensivo e sem
atinar no rumo dos avexamentos e perseguições de volta. E agora piores, se
intensificando. Sentia também, ia enfraquecendo a autonomia para conter e
controlar o ardor dos filhos inconformados, já virando a cabeça.
Zé Saturnino, segundo tudo indicava, estava resolvido a desgraçá-los de
qualquer maneira embora fosse tão grande o mundo, e isso porque considerava
incômoda a existência deles para a expansão dos seus “domínios”. Diz Tolstoi
que a miserabilidade do espírito humano pode mudar a máscara quantas vezes
entender, mas nunca esses disfarces conseguirão alterar o aspecto do focinho
imundo, que será sempre o mesmo em toda parte. Homens como Saturnino, egoístas,
invejosos, insuportavelmente insistentes e maus, costumam não lembrar-se de que
quando se faz a desgraça dos outros ela pode os alcançar de ricochete.
CONTINUA...
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