Publicação:
Diário do Nordeste de 04/03/2006
Antônio Vicelmo
Antônio Vicelmo
No dia 2 de
janeiro de 1926, o deputado federal Floro Bartolomeu, eleito com os votos do
Padre Cícero, chegava de trem a Juazeiro do Norte, designado pelo presidente da
República, Arthur Bernardes, para impedir que a Coluna Prestes invadisse o Sul
do Ceará. Vinha acompanhado pelo major Polidoro Coelho que, no mesmo dia,
partiu para Campos Sales à frente de 360 soldados do Exército. Floro ficou no
Juazeiro para organizar os chamados Batalhões Patrióticos, exército particular
com mais de mil jagunços. No dia 9 de janeiro de 1926, a tropa irregular partiu
para Campos Sales. Chegando àquela cidade, muito cedo, Floro desentendeu-se com
o major Polidoro que retirou-se com sua tropa para Fortaleza, deixando os
patriotas sozinhos para lutarem contra os mais de 2.000 soldados invencíveis da
Coluna. Foi nesse momento de apreensão que o coronel Pedro Silvino, chefe do
Estado maior de Floro, trouxe à sua presença João Ferreira dos Santos e seu
irmão Ezequiel Ferreira. João era um dos contratados para transportar os
carregamentos de munição, mas o que era mais interessante é que ele era irmão
do mais célebre dentre todos os cangaceiros do sertão, Virgulino Ferreira da
Silva, vulgo Lampião. Chegou-se à conclusão que o cangaceiro, cujo nome era uma
legenda de valentia, deveria ser convocado. O posto seria de capitão
comissionado e, se bem sucedido na campanha, receberia do presidente da
República o indulto pelos seus crimes. O convite veio de Campos Sales para
Juazeiro, em mãos do rábula José Ferreira de Menezes. Lampião era muito sagaz e
se, além da assinatura de Floro, a carta não tivesse a do Padre Cícero, ele
jamais atenderia ao convite. Um dos empregados de João Ferreira, por nome Zé
Dandão, viajou então para a Fazenda Piçarra, em Macapá, hoje Jati, onde morava
Sebastião Paulo, primo legítimo de Lampião e juntos, com o convite a tiracolo,
foram para o Pernambuco à procura de Lampião. Ainda hoje, há quem afirme que
foi o tenente Francisco das Chagas o encarregado de procurar Lampião, o que não
é verdade. Esse senhor ficou em Campos Sales e no dia 22 de Janeiro de 1926,
quando a Coluna Prestes invadiu o Ceará pela região dos Inhamuns, participou da
perseguição aos revoltos através do Ceará, Paraíba e Pernambuco indo
encontrar-se com o célebre cangaceiro somente em fins de fevereiro daquele ano,
quando então falou com Lampião sobre o assunto. No dia seguinte, Floro
telegrafou para o rábula José Ferreira em Juazeiro: “comunique ao nosso amigo,
que não é preciso mais Lampião, povo já seguiu perseguição revoltosos”. No
mesmo dia, gravemente enfermo, empreendeu sua última viagem, de Campos Sales
para o Rio de Janeiro, aonde viria a falecer às 5 horas da tarde do dia 8 de
março de 1926, com 50 anos de idade. Lampião recebeu o convite ainda em
Janeiro. Conversou sobre o assunto com o célebre coronel Manoel Pereira Lins,
vulgo Né da Carnaúba, líder da família Pereira do Pajeú, seu amigo, que confirmou
a autenticidade do documento. Por isso, quando se encontrou, por acaso, com o
tenente Chagas, que voltava com seus homens para Juazeiro, resolveu
acompanhá-lo. Seria mais seguro ir àquela cidade em companhia de uma das tropas
do Batalhão Patriótico. Por essa época, a Coluna Prestes já estava atravessando
o rio São Francisco em direção à Bahia. No dia 2 de março de 1926, Lampião,
vindo de São José de Belmonte, entrou no Ceará pelo distrito de Macapá, hoje
Jati, aonde confraternizou com um destacamento da polícia do Ceará, sob o
comando de tenente Veríssimo, que o presenteou com um Smith & Weston
“novinho em folha”. No dia seguinte, amanheceram na Fazenda Piçarra, de Antônio
Teixeira Leite, onde almoçaram mais de 100 pessoas entre cangaceiros e soldados
do Tenente Francisco Chagas. Daí rumaram para o Sítio Laranjeiras, de Antônio
Pinheiro, onde todo o grupo pernoitou. No dia seguinte, uma quinta-feira, ainda
escuro, a tropa mista prosseguiu viagem para a serra-do-mato, do coronel
Antônio Joaquim de Santana, amigo e coiteiro de Lampião. Ainda em Barbalha
Lampião recebeu uma carta de Juazeiro do Norte enviada por um certo Dr. Pedro
de Albuquerque que dizia não ser mais necessária a sua presença naquela cidade.
O cangaceiro ignorou a mensagem e, à tardinha, chegou aos arredores da Meca do
Cariri ainda acompanhado do tenente Chagas, ao todo 23 cangaceiros e mais de 70
patriotas. Acomodou-se, então, com seus homens, na Fazenda Nova, pertencente a
Floro. O delegado local, sargento José Antônio da Coan, começou a reunir homens
armados para atacá-lo, mas foi, de imediato, repreendido pelo Padre Cícero que
lhe disse que Lampião estava ali a convite do Dr. Floro para prestar seus
serviços ao governo federal. Na verdade, já se havia preparado, com
antecedência, um sobrado na rua da Boa Vista para acomodar o bando. Na calçada
em frente ficava a casa do seu irmão João Ferreira, casado com dona Joaninha,
quase vizinho às casas de dona Maria Ferreira, sua irmã, casada com Pedro
Queiroz, onde moravam também Ezequiel e Anália, solteiros, e de Angélica
Ferreira, casada com um rapaz do Rio Grande do Norte chamado Virgílio
Fortunato. Já tarde da noite, o bando veio hospedar-se no hotel improvisado que
pertencia ao poeta João Mendes. Na noite seguinte, o Padre Cícero foi ao seu encontro,
em um automóvel dirigido por Mestre Luiz, em companhia do rábula José Ferreira
e de José Gonçalves, chefe de sua segurança pessoal. Depois de muito
conversarem, o Padre mandou convidar o funcionário do Ministério da
Agricultura, Pedro de Albuquerque Uchoa, pessoa muito querida da sociedade
local, muito culto era, quase que o orador oficial de todas as solenidades
importantes da cidade, para participar da reunião. Em uma folha de papel almaço
foi elaborado um documento que nomeava Virgulino Ferreira da Silva capitão
comissionado dos Batalhões Patrióticos. Tal patente seria obviamente de caráter
provisório e teria a duração da finalidade e da existência dos referidos
Batalhões. Na verdade, a patente era semelhante as que haviam sido entregues
aos demais oficiais comissionados na época assinadas por Floro, mas como o
deputado não estava presente, a mesma teve que ser assinada por Pedro Uchoa,
único funcionário federal presente. Redigida em 5 de março de 1926, foi datada
de 12 de março do mesmo ano, assim só teria validade quando o agora defensor da
legalidade estivesse com seus homens longe do Juazeiro cumprindo a missão
assumida, eufórico, mostrando por onde passava o documento que, para bem da
verdade, esteve nas mãos de muitos homens de bem que confirmariam depois a sua
real existência. Louvável a atitude do Padre Cícero sob todos os aspectos,
senão vejamos: Como político, o referido sacerdote foi prefeito do Juazeiro de
1911 a 1929, com breve período de ausência durante o Governo Franco Rabelo.
Correligionário do presidente Arthur Bernardes, e maior líder político do
Ceará, não poderia deixar de lançar mão de todo e qualquer recurso necessário
ao combate eficiente ao avanço da Coluna Prestes. Como amigo não poderia deixar
de colocar sua assinatura ao lado da de Floro, a pedido deste, nem na sua
ausência deixar de substituí-lo na recepção a Lampião, nem na concessão da
patente por ele prometida. Afinal Lampião nas estradas era uma ameaça constante
para milhares de romeiros que lhe faziam doações de centenas de contos de réis
todos os anos para suas obras de caridade cristã. Existem estudiosos, no
entanto que afirmam que um santo como o Padre Cícero seria incapaz de tal
atitude e afirmam que tudo foi uma brincadeira urdida por Benjamim Abraão,
secretário do Padre Cícero, e Pedro Uchoa para enganar Lampião. Na verdade
ninguém no Juazeiro, por medo de Floro, por respeito ao Padre Cícero, enfim por
termos de uma reação futura do Rei do Cangaço teria coragem de fazer tal
brincadeira de mau gosto. Mas, voltemos ao fio à meada, no dia seguinte Lampião
recebeu dezenas de fuzis do Exército e farta quantidade de munição, além da
indumentária necessária e demais equipamentos indispensáveis a sua tropa. A
tarde concebeu uma demorada entrevista ao médico cratense, Dr. Otacílio Macedo,
irmão do brigadeiro Macedo, e se deixou fotografar com seus familiares e com
seu bando pelo senhores Lauro Cabral de Barbalha e Pedro Maia do Crato. No dia
seguinte, um domingo, deixou a cidade do Padre Cícero rumo a Pernambuco, passou
pelo Caldas em Barbalha, por Jardim e, enfim, entrou na sua terra natal pelo
município de Serrita. Agora acompanhado por quase 100 homens armados. Em pouco
tempo desistiu de perseguir a Coluna Prestes, quando foi informado que, por uma
boca só, todos os oficiais da Polícia pernambucana afirmava que o atacariam
aonde quer que o encontrassem. Inconformado com a situação, o capitão Virgulino
Ferreira atravessou novamente a fronteira para o Ceará para pedir o apoio do
Padre Cícero, às 8 horas da noite do dia 8 de abril, acompanhado por oito
homens e, a cavalo, atravessou o município de Barbalha em direção a Juazeiro do
Norte e só na tarde do dia 10 de abril de 1926 estava de volta. Para a
imprensa, o Padre Cícero, que vinha sendo muito criticado pela recepção ao cangaceiro,
afirmou que se recusara a recebê-lo embora admitisse seus bons propósitos. Para
Antônio da Piçarra, Lampião afirmou que foi recebido pelo Padre Cícero na noite
do dia 9 de março de 1926, noite de muita chuva em que a água dos pequenos
riachos encostava na barriga dos cavalos. O padre que veio de automóvel
dissera-lhe que não podia obrigar a polícia de Pernambuco a aceitar a sua
patente e que não podia fazer mais nada; Floro morrera, os batalhões tinham
sido desmobilizados e que a Coluna Prestes se encontrava em Goiás, que ele
deveria dissolver o bando e ir embora para bem longe, recomeçar a vida e ser
feliz e que, se assim não o fizesse, que pelo menos não mais bulisse com seus
romeiros nem com o estado do Ceará. A imprensa da época noticiou que o bandido
voltou furioso para o Pernambuco ameaçando atacar Barbalha na sua passagem por
aquele município, o que não passou de alarme falso. Quando chegou à terra
natal, já estava roubando e seqüestrando por resgate. Voltara a ser o Rei do
Cangaço no Sertão, embora durante o resto da sua vida tenha se autodenominado
Capitão Virgulino Ferreira da Silva. Em toda sua carreira de cangaceiro,
Lampião chegou ao Juazeiro com o Padre Cícero, ao ponto mais próximo de sua
reabilitação: a regeneração do cangaceiro, que teria sido uma das estrelas mais
brilhantes da coroa do venerado sacerdote.
Magérbio de
Lucena médico e escritor, autor do livro “Lampião e o Estado Maior do Cangaço”
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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