Por Aderaldo Luciano
O cordel
brasileiro é poesia brasileira e como tal deveria ser estudado. Mas não é tão
somente poesia brasileira.: é, também, a única forma poética fixa genuinamente
brasileira, nascida em solo nacional, tendo a cidade do Recife como cenário e
palco e Leandro Gomes de Barros como seu sistematizador. Em poesia, vale dizer,
não existe precursor. A poesia é um fenômeno. Acontece. E a observação vale
para o cordel. Os movimentos literários, esses percebem a presença do
precursor. A obra literária, não. Ela já nasce como tal. O conto e a novela não
podem ser precursores do romance. Assim como as quadrinhas não podem ser
precursoras do soneto. Logo, não existe uma forma precursora para o cordel,
consequentemente não existe um precursor ou vários precursores. A sextilha
preexistiu ao cordel, é óbvio, entretanto um agrupamento de sextilhas não
pressupõe a existência do cordel. Convencionou-se, entre poetas e pesquisadores,
que o cordel deve apresentar um mínimo de 32 estrofes (sejam sextilhas ou
setilhas). Essa convenção, todavia, não foi construída do nada, mas da
observação sobre ser esse número de 32 estrofes o necessário para a confecção
de um folheto de 8 páginas. Assim nasce a forma fixa do cordel, balizada por
sua disposição no papel, no seu aspecto gráfico. Isso traz para o cordel duas
marcas: a marca gráfica, escrita e editada, portanto pensada e elaborada no
misto homem-máquina; e a marca poética, pensada e elaborada no misto
homem-natureza. E precursores, portanto, são todos os poetas que o fizeram
anteriormente em toda a literatura universal. Essa a filiação do cordel
brasileiro. Vejamos o que dizem quatro títulos em cordel que falam do próprio
cordel:
João Batista
de Melo, sergipano de Itabaianinha, radicado no Rio de Janeiro, é um paladino
do cordel. Traz a marca cordelística na alma e na aura. Autor de títulos
significativos, cantou a terra que o recebeu, a cidade de Niterói, com temas
ligados à ecologia, como em O Gemido Da Lagoa. No ano do centenário do cordel
brasileiro, escreveu para o Sesc-Niterói o poema 100 Anos De Cordel No Brasil.
Desde a capa compreendemos o intuito do poeta: elencar elementos constitutivos
temáticos do cordel e perscrutar um pouco de sua história. O pensamento de João
Batista está marcado por dois aspectos que já pudemos tratar em textos
anteriores: a ideia para a qual o cordel é o elemento oral dos cantadores
repentistas nordestinos que passou para o papel, portanto um subproduto da
oralidade, como aparece já na quarta estrofe, na primeira página; e a origem
peninsular, segundo a qual, as bases, o embrião, está ou estão em Portugal e
Espanha. O elemento paradoxal vale ser reclamado é este: como um produto
cultural nasce em Portugal ou Espanha e tem como marca textual a oralidade de
nossos repentistas? Ao mesmo tempo, na estrofe 13, diz que o pai do cordel é
Leandro Gomes de Barros. Essa visão foi tão plantada em nós que tornou-se uma
verdade, embora tão contraditória. Se o pai do cordel é Leandro, nascido na
Paraíba, como pode o cordel, a forma fixa, ser portuguesa? Todavia não é
inválida a narrativa do autor. Como disse, há certa maestria em seus versos,
além da beleza. Cita os estudiosos, desde Leonardo Mota e Câmara Cascudo, Sílvio
Romero e Raymond Cantel, Ariano Suassuna e o general Peregrino para, a seguir,
citar nomes do cordel em solo carioca: Edmilson Santini, Raimundo Santa Helena,
Expedito Ferreira, Gonçalo Ferreira e Apolonio Alves. Também cita os clássicos,
mas não se aprofunda. Apesar da contradição citada é um bom roteiro para quem
quiser se aventurar nos estudos da poética cordelial.
Nando
Poeta e Varneci
Nascimento, o primeiro, potiguar, e o segundo, baiano, desenvolveram certa
parceria em alguns títulos. É deles o poema Homossexualidade: História e Luta,
um dos primeiros títulos em cordel sobre a questão de gênero no país. Até então
o cordel, seguindo a orientação social, olhava para a homossexualidade com o
mesmo preconceito. Os poetas apontam para outro caminho. Quando se entendem e
resolvem escrever sobre o cordel brasileiro, palmilham o caminho da
inquietação. Nas primeiras estrofes já deixam bem claro suas convicções sobre a
brasilidade do cordel, refutando a origem peninsular, acreditam na forma
poética como fruto do trabalho (poesia é trabalho) a partir do labor de Leandro
Gomes de Barros, criticam aqueles que querem que o cordel seja um produto com
genes plantados desde a Antiguidade, não acreditam na suposta oralidade
cordelística, em suma O Raio-X Do Cordel é um título investigativo, opinativo e
provocador. É uma tese sobre o cordel e sua origem, sobre seu percurso
histórico, sobre sua consolidação como forma poética. Nando e Varneci
escreveram no movimento oposto, mas não descuidaram da historicidade. Acreditam
no cordel brasileiro que dialoga com a Europa e com a oralidade, mas veste as
roupas da originalidade. Questionam, por exemplo, uma forma de pensar que
alastrou-se pelo Brasil, a de que o cordel obrigatoriamente tem que ser
ilustrado em sua capa por xilogravura. Citam exemplos de capas ilustradas por
clichês de astros de Hollywood, capas coloridas, capas em zincogravuras, etc.
Não desdenham da xilogravura, pelo contrário, elevam o seu casamento com o
cordel como um dos mais interessantes acontecimentos artísticos, mas não se
prendem a isso pois, para eles, o que vale é o texto escrito, a forma poética.
Além de todas as novidades, questionam a corrente que sempre colocou o cordel
como peça folclórica. Promovem, também, a distinção entre poeta de cordel e
folheteiro, o vendedor de cordel. Como sabemos, ao ouvir um folheteiro
apregoando o seu produto cantando, o pesquisador desatento imaginou que o
cordel era a pura oralidade. O Raio-X merece um olhar mais demorado para a
discussão.
Marco Haurélio
e João Gomes de Sá são dois poetas já consagrados na
literatura brasileiro. Marco, baiano, e João Gomes, alagoano, são donos de
títulos exitosos no cordel brasileiro. Visando abrir caminho para a compreensão
do processo histórico do cordel e de sua consolidação como veículo poético,
escreveram O Cordel, Sua História, Seus Valores, primeiro numa edição de 20
páginas no formato tradicional, relançando numa segunda edição graficamente
mais elaborada. Para os autores, desde a primeira estrofe, também há a
vinculação à origem ibérica, embora passe por um caminho de encontro com o
elemento autóctone e com o africano, originando o que se chama de cultura
popular, vinculando, também, o cordel a essa possibilidade. Um mudança de
caminho, que poderia resultar em paradoxo, aponta para a integração do cordel
ao todo poético nacional a partir da citação a Gregório de Mattos Guerra, no
Barroco, a Castro Alves e Gonçalves Dias, no Romantismo, marcando o diálogo
entre o cordel e os poetas fundadores da poética nacional, afastando-o, de
certa forma, daquele cunho popular trazido à lume na oitava sextilha. Os poetas
afirmam que Leandro Gomes de Barros foi o responsável pela criação da forma e
da essência do cordel, mas também filiam-no ao esquema oral, na mesma estrofe.
A partir da citação a Leandro, o poema segue a ordem cronológica da aparição de
poetas e suas obras criando uma genealogia e uma geografia para o cordel. Um
dos tantos méritos é a apresentação de um rol de editoras desde a Guajarina, de
Belém do Pará, que abriu as portas do norte para o cordel, passando pela
Luzeiro do Norte, pela Estrela da Poesia, Prelúdio/Luzeiro, citação à Academia
Brasileira de Literatura de Cordel (no Rio de Janeiro), Tupynanquim,
Queima-Bucha e Coqueiro. A menção às editoras é importantíssima para os estudos
sobre o cordel porque elas, as editoras, formam um dos pés do sistema literário
cordelístico. O Cordel, Seus Valores, Sua História une-se aos outros dois
textos da postagem e formam um precioso painel para a causa cordelial.
Medeiros Braga, sobre quem já falamos em matéria anterior,
é o poeta cuja obra revira as vísceras da história e encontra, sempre, traços
sociológicos de importância para a vida do Brasil. Episódios revolucionários de
inspiração libertadora, mártires, massacres, biografias, crítica de costumes e
o pensar político são o seu brasão. Cordel Em Cordel é seu título
metalinguístico sobre nosso produto poético. Na primeira estrofe, busca a
figura do brasilianista Raymond Cantel, também citado por João Batista de Melo.
Cantel foi o responsável por nomear os antigos romances, folhetos, versos,
poemas como Literatura de Cordel. Para ele, Medeiros reproduz, o cordel seria "Poesia
Narrativa, Popular, Impressa". O contraditório, já mencionado,
estabelece-se novamente nos estudos sobre o cordel: como é poesia, mas chamada
de Literatura de Cordel? O termo não pertence aos estudos da Poética, da Teoria
da Literatura, mas a um produto gráfico. Mas não vem ao caso, agora, a
discussão. Braga aponta para a forma cordelística formada por sextilhas,
setilhas e décimas. Outros autores vão além dessas formas e abastecem o cordel
com várias estrofes oriundas do repertório poético dos cantadores. Braga resume
em três. De fato, são as três que se consolidam no cordel, as outras aparecem
esporadicamente e não representam regra na poética do cordel. O poema questiona
o termo Literatura de Cordel, como está na estrofe 9, ao dizer que o folheto não
se vendia pendurado em barbantes, presos por prendedores de roupa, vendia-se em
lonas no chão ou em maletas, e questiona a origem ibérica, defendendo que o
cordel nasceu no Brasil, é poesia, é literatura e vai além das histórias
maravilhosas e contos folclóricos. Para ele o cordel é arma na luta social
contra a omissão. O poeta é o porta-texto da denúncia (estrofe 24). O ensaio em
sextilhas atravessa o processo histórico, entra pela observação da poética
(estrofação, rima, metrificação), elenca os principais autores, cita xilógrafos
importantes para o cordel e termina fazendo alusão ao termo Jornal do Sertão,
pelo qual o cordel ficou conhecido em alguns estudos.
Por enquanto,
é só!
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araujo Cardoso
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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