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terça-feira, 4 de setembro de 2018

A IGNOMINIOSA CONFISSÃO

*Rangel Alves da Costa

Escrevi este texto pela voz do cruel e selvagem colonizador, pela palavra daquele submeteu e submeteu o negro como se a escravidão fosse uma proveitosa normalidade da vida. E também para demonstrar que a continuidade das situações descritas é justificada pela história em nome do poder, do mando e da insensatez humana. Foi o amigo Padre Mário que ao lê-lo numa rede social logo o descreveu como uma ignominiosa confissão.
No seu comentário, disse mais o sacerdote sertanejo, pároco do município sergipano de Poço Redondo. Assim asseverou: “Ignominiosa confissão do ‘macho, adulto, branco, sempre no comando’." Realmente, uma confissão ignominiosa, pois causadora de asco, de vergonha, de menosprezo, de revolta. Contudo, não o texto em si enquanto criação autoral, mas pelo discurso nele expressado, saído um dia, e quem sabe ainda presente, na voz do ultrajante poder. Eis o escrito:
“Fui europeu colonizador e cacei índio como bicho, maltratei o nativo como praga, dizimei o silvícola como um ser sem alma. E depois de tirar seu arco da mão, eu impus uma cruz e uma religião. Seus deuses nada valiam, apenas a minha crença da selvageria. Fui branco escravizador e trafiquei negro para lançá-lo ao mundo do grito e da dor. Quanto vale uma dentadura branca e sadia num homem que não vale nada? Quanto vale o músculo e o corpanzil num ser humano sem nenhum valor? Ora, mas o que é mesmo este negrume imprestável na pele desse ser abominável? Escravizado pela cor, um bicho de canga, uma força de trabalho que não vale mais que o que produz debaixo do açoite, da taca e do ferrão. E ainda mandei que o capitão-do-mato fosse atrás do fugidio e o trouxesse acorrentado e em grilhões colocado no mais arrogante dos troncos. E depois ordenei que o capataz lanhasse a pele, fizesse o bicho gemer e gritar, que fizesse o sangue espargir pelo açoite e respingasse ao longe, enquanto eu a tudo observava da varanda da casa-grande. Fui eu quem agiu assim, que calei o deus do trovão, a divindade da tribo e dizimei os seus sonhos e as suas vidas. Sem cantos do uirapuru, sem gorjeios dos sabiás, sem peixes vivos nas correntezas. Fui eu quem agiu assim, que mandei arrancar os olhos daqueles que pranteavam seus banzos, que desapartei filhos de pais e pais de filhos, que vendi nos mercados aquelas mercadorias negras e prontas para serem chicoteadas além das imundícies das senzalas. A mim, confesso, cada grito é um canto, cada gemido uma canção, cada morte um desapego do imprestável. Viver e tudo ter somente o branco, somente o poderoso, somente o senhor dono de mundo e curral, somente aquele que nasceu para mandar. Arrependido ter sido assim e ter agido assim, contrito por ter dizimado o índio e escravizado o negro? Não. De jeito nenhum. Não sou a mentira. Sou a verdade. E não falo por voz de outro senão daquele que sempre fez assim. O tempo passou, mas alguma coisa mudou? Se me ajoelho ao poder e voto nos seus representantes, então eu aplaudo e confirmo todas as atrocidades praticadas ao longo da história, pois nada mudou. Os homens mudam pelas gerações, mas os malefícios e as arrogâncias do poder continuam as mesmas. Nada mudou”.


Acrescento apenas que nada mudou por que continuam os subjugos e as submissões, as dizimações e os aniquilamentos. E uma escravização que foi além da raça e da cor para se impor como prática desonrosa perante grande parte da sociedade. A escravização pela pobreza, pelo medo, pela insegurança, pela desesperança, pelas manipulações do poder. É a história se renovando segundo o seu tempo. Não o tempo do Eclesiastes, mas o tempo da vergonha e da corrupção política, social e humana.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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