Por Antônio Corrêa Sobrinho.
EM janeiro de
1938, foi anunciada pelos principais jornais do Brasil, a morte do cangaceiro
VIRGULINO LAMPIÃO, dizendo ter sido de causa natural, numa fazenda em Sergipe,
pertencente ao empresário e chefe político do município de Canhoba, Antônio
Ferreira, mais conhecido por Antônio Caixeiro, pai do então interventor federal
neste Estado, o capitão-médico do Exército, Eronides de Carvalho. O desmentido
não demorou a ser publicado, mas não a tempo de evitar que o notável jornalista
Joel Silveira emitisse suas impressões a respeito, uma demora suficiente para o
jornalismo e especialmente o "Sergipe Jornal", pela exclusividade,
serem premiados com esta aguda percepção a partir de um anguloso ponto de
vista, que merece ser considerada, porquanto nascida de uma mente que entendia
muito de gente.
LAMPIÃO, JOHN D. ROCKFELLER, BASIL ZAHOROFF E OUTROS…
Joel Silveira (Exclusivo para “Sergipe Jornal”)
O telegrama e
o rádio me dizem que o cidadão Virgulino Ferreira morreu de uma forte
hemoptise.
E eu,
francamente, não sei o que deva pensar ou que deve sentir. Acho a alegria
imprópria para o momento e sinto mesmo que, nesta hora, nada me alegrará. Se eu
quisesse ser sincero diria o que na verdade estou sentindo: uma angústia
estranha, um misto de tristeza e de decepção. Lampião, que morreu assim
simplesmente, sem gestos de teatralidade, sem nada de mais que lhe viesse
identificar entre o resto dos mortais, me deixa uma situação crítica. Eis aqui
um grande problema para mim, se por acaso eu fosse um chefe de Estado. O que
fazer diante do acontecimento? Dos Estados Unidos nos vem uma lição ótima que
na certa poderia ser aproveitada aqui e com resultados. Vemos John D.
Rockfeller glorificado depois de morto, vemos seu corpo baixar à sepultura
coberto de flores e ao som de hinos sacros. Os shorts cinematográficos
nos mostram retalhos de sua vida e de sua ação, jogando golfe, visitando poços
enormes de petróleo, sorrindo numa expressão de múmia, endireitando os óculos
negros e enormes, lendo, vivendo em plena glória dos seus noventa anos. E os
jornais, os jornais do mundo inteiro que receberam dinheiro dele, estampam
fotografias dos milhares de hospitais e das inúmeras escolas que o magnata
espalhou pelo globo. Certamente que isto tudo representa uma cortina muito
linda e muito útil. E se ficamos horrorizados com o drama e as tragédias que se
passam do outro lado – guerras, ruinas, os hospitais inundados de vítimas do
imperialismo, as escolas repletas de órfãos, viúvas que perderam os maridos na
China, na Abissínia, no Chaco ou na Espanha, mães que perderam os filhos e
filhos que perderam os pais – a culpa é exclusivamente da nossa curiosidade. A
guerra, na ação mecânica de John D. Rockfeller, era um imperativo. Sendo um
imperativo, por força era também uma necessidade. Da sua existência dependia a
própria existência de Rockefeller. Sahoroff, esta cratera a vomitar,
inesgotavelmente, material bélico sobre o mundo, sempre foi da mesma opinião. E
os dois entendiam-se as mil maravilhas. Nunca poderemos sondar o mistério
incomensurável e tétrico da ação destes dois homens sobre a terra. Suas vidas
se confundem e se embaralham. Ninguém nunca soube direito de onde eles vieram,
como surgiram, como nasceu este poder quase sobrenatural que encheu a vida de
cada um.
Diante do
espetáculo que a morte do nosso modesto Virgulino apresenta, o que eu tenho é
uma bruta decepção. Entre Lampião e Rockefeller, entre o cidadão Virgulino
Ferreira e o cidadão Basil Zahoroff, a diferença é unicamente de situação.
Lampião, ao contrário dos outros, nunca proclamou a sua honestidade. Fez-se
bandido, continuou bandido pela vida inteira, nunca desmentiu seus crimes nem
ocultou suas ações criminosas. Perseguido a todo momento, seu combate havia se
resumido numa trégua decisiva de vida ou de morte. Começou matando por
vingança. Talvez depois por sadismo. Já no fim por necessidade. As fotografias
que nós conhecemos dele nos apresentam um tipo asqueroso e vil. Os óculos
pretos lembram os de Rockfeller. Mas não há, naquele tipo queimado pelo sol e
constantemente ferido pelos projeteis e pelas urzes dos caminhos difíceis, a
distinção que aqueles seus dois colegas sempre levaram em vida. Lampião podia
possuir a sagacidade de um Vanderbilt ou de um Morgan. Mas ninguém colocará sua
ousadia e sua coragem abaixo da de qualquer banqueiro europeu ou milionário
americano. Nunca especulou na Bolsa. Seu campo era a campina, a caatinga, o
sertão bruto e estéril. Não conhecia meios dúbios nem hipócritas. Sua intenção
era matar, e realizava-a sem subterfúgios. No entanto somos forçados a
reconhecer entre Lampião, Zahoroff e Rockefeller um mesmo ponto de afinidade: é
que nenhum dos três enfraqueceu na luta. Resistiram até o último dia. Muitas
vezes tombaram feridos, em plena batalha. Mas, pensados os ferimentos,
ergueram-se e continuaram a luta.
Com a morte de
Lampião, uma morte simples, indigna de um herói do século, o sertão perdeu
muito de sua alma. E neste momento os mandacarus e as caatingas imensas devem
ter o mesmo ar de tristeza que mora com os poços de petróleo dos Estados Unidos
e as oficinas metalúrgicas da Alemanha. Tristeza de quem se vê abandonado,
tristeza de órfão...
Aracaju-janeiro.
Sergipe Jornal - 13/01/1938
Foto de Joel
Silveira.
https://www.facebook.com/groups/lampiaocangacoenordeste/?multi_permalinks=2272012759674322%2C2270632433145688%2C2270451146497150%2C2270450899830508¬if_id=1693934510199987¬if_t=group_highlights&ref=notif
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