Da coleção “OS
GRANDES ENIGMAS DE NOSSA HISTÓRIA”, produção da Otto Pierre Editores.
A FAMA DE
PADRE CÍCERO CRESCEU COM JUAZEIRO
O padre Cícero
Romão Batista viveu 90 anos, de 1844 a 1934. Viu Império, Abolição, República,
Revolução de 30, e chegou quase ao Estado Novo, que é de 1937. Nasceu no Crato,
sul do Ceará, ordenou-se sacerdote em 1870 e dois anos depois chegou ao povoado
de Juazeiro que, sob sua liderança se transformaria na meca dos romeiros e
místicos nordestinos.
Em 1914,
quando explodia na Europa a Primeira Guerra Mundial, opondo inicialmente o
Império Austro-Húngaro à Sérvia (antigo reino ao sudeste da Europa que em 1918
se incorporou à Iugoslávia), Padre Cícero, plantado no seu Juazeiro de 30 mil
almas, também se desentendia com Marco Franco Rabelo, presidente eleito do
Estado, depondo-o ao fim de uma insurreição deflagrada na região do Cariri.
Franco Rabelo,
nascido em Fortaleza em 1861, fora professor da Escola Superior de Guerra e da
Escola Militar do Ceará, além de deputado federal pelo Estado. Chegara à
presidência estadual (os governadores, na República Velha, chamavam-se de
presidentes), depondo, em 1912, Antonio Pinto Nogueira Acioli, que, então com
52 anos, ostentava um currículo respeitável: fora deputado e senador no Império
e senador na República.
Com toda a sua
pompa de militar – tempos diferentes, aqueles – Franco Rabelo foi alijado do
poder pelo Padre Cícero que, sem sair do Cariri, deflagrou a rebelião,
elegeu-se deputado federal e vice-presidente do Estado. Na realidade, a luta
extrapolava as fronteiras estaduais: Rabelo opunha-se à candidatura de José
Gomes Pinheiro Machado (1852-1915) ao Palacio do Catete, muito cogitada então.
Cícero Romão apoiava Pinheiro Machado, caudilho que foi eminência parda de
muitos governos federais, mas jamais chegaria a ser presidente. Contra Pinheiro
Machado estava Rui Barbosa (1849-1923), formidável tribuno que se referiu à
situação cearense numa carta de 3 de março de 1914, publicada no livro A
Intervenção federal no Ceará, de 1919. Eis alguns trechos:
1. A
imaginação me vê desdobrar-se a sotaina do Padre Cícero, e a samarra do clérigo
ensanguentado, agigantada pelos excessos da sua maldade.
2. O governo
central suscita, de improviso, nos sertões do Juazeiro e do Cariri, uma
reedição ampliativa do fanatismo de Canudos, em que a loucura de Antonio
Conselheiro se substitui pela impostura douta de um caudilho tonsurado.
Rui via longe.
Numa hora em que se exaltava a liderança de Cícero Romão Batista e a
taumaturgia do Padim Cícero entrava na literatura de cordel, Rui
Barbosa a investia contra o seu oportunismo político. Continuou a atacá-lo e a
seu principal correligionário político, o médico baiano radicado no Ceará Floro
Bartolomeu da Costa (1876-1925), de quem Nertan Macedo fez uma admirável
biografia (Floro Bartolomeu – o Caudilho dos Beatos e Cangaceiros). As palavras
de Rui Barbosa são cáusticas:
3. A
devastação da Terra da Luz pelas hordas bárbaras do Padre Cícero e de Floro
Bartolomeu ataca a ferro e a fogo, na sociedade cearense e família cearense a
família e a sociedade brasileira.
O Marechal
Hermes Rodrigues da Fonseca afirmava, no Rio de Janeiro, irritado com a
desobediência à sua liderança, que “Franco Rabelo haveria de se arrepender”.
Não se sabe se Franco Rabelo, oficial garboso e cheio de medalhas,
arrependeu-se ou não. O fato é que perdeu o governo estadual. Cumpria-se a
profecia de um lavrador: “Ninguém se engane. O Padre Cícero começou como
missionário, breve estará milionário e acabará revolucionário”. As rimas
falavam a verdade. A batina era mais forte que a farda – ao menos naquele
momento.
O Padim
Cícero dominava espiritualmente todo o Nordeste, com a sua corte de
beatos, mistificadores e carpideiras que se projetavam à sombra do campanário.
Agora também o dominava politicamente, com a preciosa assessoria de Floro
Bartolomeu, que, na Câmara Federal, teve, contudo, momentos de brilhantismo,
como ocorreu quando da defesa da exploração, por nacionais, do xisto e do
carvão.
O xisto
betuminoso é uma rocha foliácea, na qual se dissemina um material orgânico
chamado querogênio. Quando aquecida a rocha, o xisto desprende um óleo que tem
utilidades semelhantes às do petróleo. Assim, após sofrer o tratamento
industrial adequado, esta matéria-prima é capaz de produzir gasolina,
querosene, óleo diesel, óleo lubrificante e parafina. Já nas primeiras décadas
do século XX, Floro Bartolomeu, homem de boa cultura, se interessava pelo
assunto. Era, a seu ver, a única forma de “nos libertarmos do tributo de ouro
que pagamos ao estrangeiro e que tanta falta nos faz”. Um tributo que, hoje,
continuamos a pagar.
Em Apoteose
do Banditismo, Duarte Júnior revela que Floro Bartolomeu, quando jovem,
clinicava em Triunfo, no alto sertão pernambucano. Ao ocorrer ali um surto
epidêmico de febre amarela, e por não conseguir debelá-lo, foi ameaçado de
linchamento. O obituário crescia, as ameaças de agressão física também, e o
médico só teve uma alternativa: fugir para o Ceará, radicando-se na cidade de
Juazeiro do Norte, onde Padre Cícero lhe entregou os seus doentes e o fez seu
protegido político. Começava aí uma esfuziante carreira política, que só a
morte interromperia, em 1925.
Milagreiro,
santo e profeta, Cícero Romão Batista se sentia tão prestigiado que, além de
enfrentar os chefes políticos do Ceará, entrou em litígio com o próprio
Vaticano. Bento XV (Giacomo Della Chiesa, papa entre 1914 e 1922) e Pio XI
(Achille Ratti, para entre 1922 e 1939) não podiam absorver com tranquilidade
as versões que corriam em torno de Cícero Romão Batista, embora este,
pessoalmente, fosse um homem inatacável: detestava o jogo, as festas (inclusive
as carnavalescas) e a bebida. E a sua castidade era notória.
Mas havia
histórias espantosas de fanatismo, como aquela de um boi que, por pertencer a
Cícero Romão Batista, era adorado, como o boi Apis, da Antiguidade; da
atribuição de poderes divinos ao padre, considerado até uma pessoa da
Santíssima Trindade. Por fim, as mistificações armadas pelo beato José Lourenço
e as beatas Mocinha e Maria de Araújo, culminando com a informação de que as
hóstias da igreja do padre estavam tintas com o sangue de Jesus Cristo. Tais
escândalos levaram a Santa Sé a intervir. Cícero Romão Batista foi suspenso de
ordens e ameaçado de excomunhão.
Nem isso,
entretanto, abalou o prestígio do padre, que do Cariri – de onde só se afastou
para duas viagens disciplinares a Roma – editava uma mensagem de fé e fanatismo
que se estendia da Bahia ao Amazonas. Como diz Antonio Xavier Teles.
A figura
lendária do pároco de Juazeiro do Norte polarizou o estro dos poetas
sertanejos. É numerosa a literatura popular que surgiu em torno de sua pessoa e
de seus milagres, verdadeiro ciclo no folclore nordestino. O fenômeno Padre Cícero
é, em grande parte, explicável pelo fato de o Nordeste ter guardado o
misticismo da Idade Média de maneira surpreendentemente viva e fiel. O meio
rude e semiárido dos sertões brasileiros manteve muito o ascetismo religioso
medieval, que se desintegrou na Europa moderna.
Padre Cícero
apoiava o partido marreta, fiel a Nogueira Acioli; Juazeiro do Norte era
uma espécie de nova Jerusalém, que os hereges rabelistas (seguidores de Franco
Rabelo) sitiaram, mas não venceram. Em apoio a Cícero Romão Batista, surgiram
de todos os quadrantes cabras armados, beatos, cangaceiros, romeiros,
todos devotos de Cícero Romão Batista. Eles vinham de todo o Nordeste para
a guerra santa contra Franco Rabelo; isto levou o Governo Federal a
intervir no Estado, temeroso de que se reeditasse uma luta sangrenta como a de
Canudos (1896-1897).
Na sua longa
presença de líder, Padre Cícero viu morrer, em 1919, metade das árvores do
sertão por falta de chuva e comandou seu povo nas novenas, tanto quanto na
abertura de poços profundos em busca de água. As secas repetidas não afetaram
seu prestígio. Todos lhe prestavam obediência, desde os pobres até poderosos
coronéis que, no entanto, muitas vezes agiam falsamente, conspirando contra o
sacerdote.
Este foi
também o mundo que viu surgir Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, mestre de
estratégia sertaneja, guerrilheiro e vingador.
(Continua)
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