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sexta-feira, 8 de setembro de 2023

O PADRE E O CANGACEIRO – A história de Lampião e de Cícero Romão, autoria de Ivan Alves e Nilson Lage.

Da coleção “OS GRANDES ENIGMAS DE NOSSA HISTÓRIA”, produção da Otto Pierre Editores.

A FAMA DE PADRE CÍCERO CRESCEU COM JUAZEIRO

O padre Cícero Romão Batista viveu 90 anos, de 1844 a 1934. Viu Império, Abolição, República, Revolução de 30, e chegou quase ao Estado Novo, que é de 1937. Nasceu no Crato, sul do Ceará, ordenou-se sacerdote em 1870 e dois anos depois chegou ao povoado de Juazeiro que, sob sua liderança se transformaria na meca dos romeiros e místicos nordestinos.

Em 1914, quando explodia na Europa a Primeira Guerra Mundial, opondo inicialmente o Império Austro-Húngaro à Sérvia (antigo reino ao sudeste da Europa que em 1918 se incorporou à Iugoslávia), Padre Cícero, plantado no seu Juazeiro de 30 mil almas, também se desentendia com Marco Franco Rabelo, presidente eleito do Estado, depondo-o ao fim de uma insurreição deflagrada na região do Cariri.

Franco Rabelo, nascido em Fortaleza em 1861, fora professor da Escola Superior de Guerra e da Escola Militar do Ceará, além de deputado federal pelo Estado. Chegara à presidência estadual (os governadores, na República Velha, chamavam-se de presidentes), depondo, em 1912, Antonio Pinto Nogueira Acioli, que, então com 52 anos, ostentava um currículo respeitável: fora deputado e senador no Império e senador na República.

Com toda a sua pompa de militar – tempos diferentes, aqueles – Franco Rabelo foi alijado do poder pelo Padre Cícero que, sem sair do Cariri, deflagrou a rebelião, elegeu-se deputado federal e vice-presidente do Estado. Na realidade, a luta extrapolava as fronteiras estaduais: Rabelo opunha-se à candidatura de José Gomes Pinheiro Machado (1852-1915) ao Palacio do Catete, muito cogitada então. Cícero Romão apoiava Pinheiro Machado, caudilho que foi eminência parda de muitos governos federais, mas jamais chegaria a ser presidente. Contra Pinheiro Machado estava Rui Barbosa (1849-1923), formidável tribuno que se referiu à situação cearense numa carta de 3 de março de 1914, publicada no livro A Intervenção federal no Ceará, de 1919. Eis alguns trechos:

1. A imaginação me vê desdobrar-se a sotaina do Padre Cícero, e a samarra do clérigo ensanguentado, agigantada pelos excessos da sua maldade.

2. O governo central suscita, de improviso, nos sertões do Juazeiro e do Cariri, uma reedição ampliativa do fanatismo de Canudos, em que a loucura de Antonio Conselheiro se substitui pela impostura douta de um caudilho tonsurado.

Rui via longe. Numa hora em que se exaltava a liderança de Cícero Romão Batista e a taumaturgia do Padim Cícero entrava na literatura de cordel, Rui Barbosa a investia contra o seu oportunismo político. Continuou a atacá-lo e a seu principal correligionário político, o médico baiano radicado no Ceará Floro Bartolomeu da Costa (1876-1925), de quem Nertan Macedo fez uma admirável biografia (Floro Bartolomeu – o Caudilho dos Beatos e Cangaceiros). As palavras de Rui Barbosa são cáusticas:

3. A devastação da Terra da Luz pelas hordas bárbaras do Padre Cícero e de Floro Bartolomeu ataca a ferro e a fogo, na sociedade cearense e família cearense a família e a sociedade brasileira.

O Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca afirmava, no Rio de Janeiro, irritado com a desobediência à sua liderança, que “Franco Rabelo haveria de se arrepender”. Não se sabe se Franco Rabelo, oficial garboso e cheio de medalhas, arrependeu-se ou não. O fato é que perdeu o governo estadual. Cumpria-se a profecia de um lavrador: “Ninguém se engane. O Padre Cícero começou como missionário, breve estará milionário e acabará revolucionário”. As rimas falavam a verdade. A batina era mais forte que a farda – ao menos naquele momento.

O Padim Cícero dominava espiritualmente todo o Nordeste, com a sua corte de beatos, mistificadores e carpideiras que se projetavam à sombra do campanário. Agora também o dominava politicamente, com a preciosa assessoria de Floro Bartolomeu, que, na Câmara Federal, teve, contudo, momentos de brilhantismo, como ocorreu quando da defesa da exploração, por nacionais, do xisto e do carvão.

O xisto betuminoso é uma rocha foliácea, na qual se dissemina um material orgânico chamado querogênio. Quando aquecida a rocha, o xisto desprende um óleo que tem utilidades semelhantes às do petróleo. Assim, após sofrer o tratamento industrial adequado, esta matéria-prima é capaz de produzir gasolina, querosene, óleo diesel, óleo lubrificante e parafina. Já nas primeiras décadas do século XX, Floro Bartolomeu, homem de boa cultura, se interessava pelo assunto. Era, a seu ver, a única forma de “nos libertarmos do tributo de ouro que pagamos ao estrangeiro e que tanta falta nos faz”. Um tributo que, hoje, continuamos a pagar.

Em Apoteose do Banditismo, Duarte Júnior revela que Floro Bartolomeu, quando jovem, clinicava em Triunfo, no alto sertão pernambucano. Ao ocorrer ali um surto epidêmico de febre amarela, e por não conseguir debelá-lo, foi ameaçado de linchamento. O obituário crescia, as ameaças de agressão física também, e o médico só teve uma alternativa: fugir para o Ceará, radicando-se na cidade de Juazeiro do Norte, onde Padre Cícero lhe entregou os seus doentes e o fez seu protegido político. Começava aí uma esfuziante carreira política, que só a morte interromperia, em 1925.

Milagreiro, santo e profeta, Cícero Romão Batista se sentia tão prestigiado que, além de enfrentar os chefes políticos do Ceará, entrou em litígio com o próprio Vaticano. Bento XV (Giacomo Della Chiesa, papa entre 1914 e 1922) e Pio XI (Achille Ratti, para entre 1922 e 1939) não podiam absorver com tranquilidade as versões que corriam em torno de Cícero Romão Batista, embora este, pessoalmente, fosse um homem inatacável: detestava o jogo, as festas (inclusive as carnavalescas) e a bebida. E a sua castidade era notória.

Mas havia histórias espantosas de fanatismo, como aquela de um boi que, por pertencer a Cícero Romão Batista, era adorado, como o boi Apis, da Antiguidade; da atribuição de poderes divinos ao padre, considerado até uma pessoa da Santíssima Trindade. Por fim, as mistificações armadas pelo beato José Lourenço e as beatas Mocinha e Maria de Araújo, culminando com a informação de que as hóstias da igreja do padre estavam tintas com o sangue de Jesus Cristo. Tais escândalos levaram a Santa Sé a intervir. Cícero Romão Batista foi suspenso de ordens e ameaçado de excomunhão.

Nem isso, entretanto, abalou o prestígio do padre, que do Cariri – de onde só se afastou para duas viagens disciplinares a Roma – editava uma mensagem de fé e fanatismo que se estendia da Bahia ao Amazonas. Como diz Antonio Xavier Teles.

A figura lendária do pároco de Juazeiro do Norte polarizou o estro dos poetas sertanejos. É numerosa a literatura popular que surgiu em torno de sua pessoa e de seus milagres, verdadeiro ciclo no folclore nordestino. O fenômeno Padre Cícero é, em grande parte, explicável pelo fato de o Nordeste ter guardado o misticismo da Idade Média de maneira surpreendentemente viva e fiel. O meio rude e semiárido dos sertões brasileiros manteve muito o ascetismo religioso medieval, que se desintegrou na Europa moderna.

Padre Cícero apoiava o partido marreta, fiel a Nogueira Acioli; Juazeiro do Norte era uma espécie de nova Jerusalém, que os hereges rabelistas (seguidores de Franco Rabelo) sitiaram, mas não venceram. Em apoio a Cícero Romão Batista, surgiram de todos os quadrantes cabras armados, beatos, cangaceiros, romeiros, todos devotos de Cícero Romão Batista. Eles vinham de todo o Nordeste para a guerra santa contra Franco Rabelo; isto levou o Governo Federal a intervir no Estado, temeroso de que se reeditasse uma luta sangrenta como a de Canudos (1896-1897).

Na sua longa presença de líder, Padre Cícero viu morrer, em 1919, metade das árvores do sertão por falta de chuva e comandou seu povo nas novenas, tanto quanto na abertura de poços profundos em busca de água. As secas repetidas não afetaram seu prestígio. Todos lhe prestavam obediência, desde os pobres até poderosos coronéis que, no entanto, muitas vezes agiam falsamente, conspirando contra o sacerdote.

Este foi também o mundo que viu surgir Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, mestre de estratégia sertaneja, guerrilheiro e vingador.

(Continua)

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