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quinta-feira, 16 de abril de 2015

Cangaceiros, coronéis e a nossa república de máscaras

Por André Raboni

Hoje (28) completam 70 anos da morte de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e Maria Bonita. Foram mortos em uma volante comandada pelo tenente João Bezerra, na fazenda Angico, em Poço Redondo (SE), em 1938.

Não é incomum encontrarmos referências a Lampião como um herói popular, ou mesmo um rei. Afinal, quem foram os cangaceiros?

Antes de responder essa pergunta, buscaremos nos desviar das respostas enlatadas que costumamos reproduzir. É preciso compreender um pouco o contexto social e político em que viveram Virgulino Ferreira e seu bando, bem como as relações de poder que vigoravam na época.

Lampião nasceu em Serra Talhada, sertão de Pernambuco, no ano de 1897. Morreu em 28 de julho de 1938. Assim, viveu 41 anos, no período que vai da Primeira República (1889-1930) até pouco depois do golpe getulista do Estado Novo (1937).

A realidade política e social era bem diversa de hoje (embora muitas relações ainda subsistam – sobretudo as relações de poder local e a pobreza de parte significativa da população). Outro cuidado que precisamos ter ao buscar alguma espécie de avaliação da figura de Lampião e seus aliados é que o Cangaço não foi atividade exclusiva deles, mas que também existiram outros grupos de cangaceiros.

Em primeiro lugar, gostaria de falar um pouco do contexto político da Primeira República brasileira (conhecida pejorativamente como República Velha – eu pergunto: por que Velha? Simples resposta: porque quem a cunhou assim foram estudiosos do Estado… Novo em diante. É comum encontrarmos classificações de períodos históricos que demonizam o passado a partir do presente – outro exemplo seria quando os ditos modernos crivaram o período anterior ao seu como Idade Média, ou Idade das Trevas).

A Proclamação da República (1889) prometia inúmeras conquistas sociais em detrimento do atraso monarquista. Entre elas, acabar com o centralismo do poder. Em troca dessa centralização imperial, iriam emergir formas descentralizadas de governos, em sua forma federalista. E, isso aconteceu de fato?

Não. Apesar de ser uma prerrogativa constitucional, os princípios de autonomia municipal acabaram por não sair do papel. Podemos até dizer que os municípios foram sufocados pelas práticas políticas ao nível nacional e estadual. Durante o governo do paulista Campos Sales (1898-1902), iniciou-se a chamada ‘política dos governadores’. O que é isso?

A instabilidade política dos anos seguintes à Proclamação tornava necessária a fundação de bases políticas que dessa governabilidade aos presidentes da república. A forma arquitetada por Campos Sales foi justamente estabelecer vínculos de compromissos com os governos estaduais, baseados na troca de favores, nas nomeações para cargos burocráticos, no repasse de verbas e nos investimentos vários (conquistas materiais e simbólicas, como luz elétrica, trens, telefones, etc. eram a coqueluche do momento). Por sua vez, os governadores de estados firmaram os seus compromissos com os presidentes, para garantir a ‘passividade’ das bases políticas em um nível municipal. Para isso, outra cadeia de interesses e compromissos foi firmada entre os governadores e os chefes políticos locais (alguns, coronéis).

Como você pode perceber, a estrutura arquitetada é como uma teia política, um sistema no qual as relações de interesses permeavam toda a realidade política. Foram esses compromissos que fizeram emergir de forma mais acabada as relações políticas do sistema coronelista. Dessa forma, não eram “coronéis” apenas aqueles que ainda mantinham seus títulos da Guarda Nacional. Mas todo chefete político (padre, médico, comerciante, advogado, delegado, fazendeiro, etc.) que arregimentava currais eleitorais, para garantir a estabilidade política aos governadores, principalmente durante as eleições, em troca de nomeações em cargos públicos, envio de tropas para combater as famílias rivais, repasse de verbas e bens simbólicos, etc.

Com esse sistema articulado e funcional, quem sofre as suas consequências? Os municípios, claro. Essas unidades político-administrativas viram sua autonomia plenamente sufocada com a instauração das relações de compromissos entre a União, os Estados e, por último, os Municípios. E, isso era ruim? Depende do ponto de vista. Vejamos: o sufocamento dessa autonomia prevista na Constituição garantia às famílias mais aquinhoadas dos municípios a manutenção de seu poder político e econômico local, haja vista sua força em repassar votos. Ou seja, para essas famílias era muito bom. Por outro lado, a população menos abastada era quem mais sofria as consequências desse federalismo tosco, bem como a própria Carta Magna também exalava ares de ficção e mentira. Não foram poucos os debates jurídicos nesse período acerca de uma reforma constitucional.

O cangaço no contexto político da primeira República: anseios e práticas

O que ocorre é que as práticas do Cangaço estão envoltas nesse contexto político. Não estando inseridos nas discussões bacharelescas, claro, os cangaceiros adaptaram-se à esta realidade, manobrando-a de várias maneiras e adequando-a aos seus anseios.

Quais eram esses anseios? Aqui reside uma série de divergências. Uns dizem que suas motivações eram algo próximo ao que conhecemos como Robin Hood, ou seja, que os cangaceiros eram espécies de justiceiros, que trariam ao povo o resgate da cidadania estuprada pelos chefes políticos. Mas, essa tese cai totalmente por terra quando percebemos que não era incomum os bandos de cangaceiros se aliarem aos chefes políticos locais, sejam eles padres, fazendeiros, etc. Outras interpretações, mais críveis, talvez, fossem as motivações de vingança. Mas, a vingança, após efetivada, teoricamente deveria cessar as práticas. Não era o que acontecia, em regra. Depois de inserido em um bando, o cangaceiro assumia um estilo de vida.

Em que tipo de relação se baseava essas alianças? Bem, a resposta para isso pode variar muito. O certo é que os cangaceiros também tinham seus interesses, dentro de toda essa cadeia de interesses. Estes podem variar muito: desde de recebimento de dinheiro ou bens materiais (armas, roupas, etc.), até mesmo proteção por parte do coronel ao qual o bando se aliava. Parece estranho, mas cangaceiros também se aliavam com coronéis em relações de proteção mútua, e isso já não é segredo pra ninguém.

O estilo de vida quase-nômade dos cangaceiros davam a eles um grande poder de mobilidade e sagacidade para escaparem das forças do Estado – quando as forças policias se opunham a eles -, fortalecido pelos vínculos de proteção e pelo conhecimento profundo das regiões de caatinga do nordeste brasileiro.

O medo que pairava nos povoados, certamente dava aos cangaceiros o seu status de bandos violentos e perigosos. As práticas cruéis, como o esfolamento, brigas, assassinatos, roubo, etc. eram comum, e garantia-lhes manter essa política do medo assentada sobre o banditismo social.
Como bandos seminômades, os cangaceiros forjaram uma máquina de guerra que, paradoxalmente, os afastava e os ligava ao contexto político da época. Manobrando em seu favor as práticas políticas de poder local, garantiam não apenas seu status, como a sua própria existência.

Se os cangaceiros são bandidos ou mocinhos, não posso responder. O certo é que estavam inseridos em uma trama social na qual compromissos e interesses estavam em jogo, em todas as esferas políticas. Isso confere um caráter dúbio às práticas dos cangaceiros. Ao mesmo tempo em que são bandidos (por causa dos assaltos, das brigas, assassinatos), também são ‘justiceiros’, na medida em que o inimigo perseguido é é também inimigo de quem observa. É apenas uma questão de referencial.

Dessa maneira, não acho que devemos estigmatizar os cangaceiros, nem muito menos vangloriá-los. Nem como heróis sociais (visão ampliada com a profusão do movimento mangue-beat, que convence os mais jovens, quando embebidos em seus anseios pseudorevolucionários de revolta – a revolta pode até ser legítima, mas o arsenal ideológico é falacioso), nem mesmo como meros bandidos (apesar de suas práticas).
Penso que, se existe um sujeito que deva carregar algum estigma, esse sujeito é abstrato. Podemos chamá-lo de poder local, ou, ainda, cadeia de interesses.

Mudanças aparentes encobrem permanências

Após a Revolução getulista de 1930, a perseguição ao cangaço se intensifica. Mudam-se as formas de garantir os interesses. Via de regra, também mudam-se as elites dominantes no país. O fim da ‘política dos governadores’ mostra como novas relações de poder político são instaurados. A perseguição aos grupos políticos de esquerda também tem sua vertente na perseguição aos cangaceiros – pretensos justiceiros que ampliariam o poder do povo sofrido, usurpando-o das elites. Sendo também uma ameaça so Estado (em muitos casos pelas próprias alianças com chefes locais), deveriam ser exterminados.

Essa última análise, de caráter ideológico, é discutível. No entanto, é menos discutível o fato de que a intensificação da perseguição aos cangaceiros pode nos mostrar que estava sendo operada uma nova guinada na política nacional. Com o golpe do Estado Novo (1937) e a instauração de interventoriais nos estados (os interventores eram os governadores nomeados pelo governo federal), o anseio por um Estado forte e eficaz no combate ao banditismo social e ao domínio local por chefetes e coronéis, foi uma máscara que escondia por trás de si um rosto bizarro… antidemocrático e, mesmo, fascista. Por sua vez, as políticas de massas, como as sequentes conquistas trabalhistas, davam área de progresso nos centros urbanos.

Não era o fim do elitismo, mas sim o deslocamento de elites no poder. Em muitos casos, as elites se mantiveram na base do “sou coerente e nunca mudo de lado: estou sempre com a situação “. É nesse sentido que as práticas de poder local se mantém. O fim do coronelismo é o fim de um sistema, não o fim de uma prática de dominação política e econômica – esta se mantém ainda, de diversas formas, até os dias de hoje – mas, é mais prudente chamar a isso de mandonismo local.

O fato é que logo após o golpe do Estado Novo, o bando de Lampião foi esfarelado, sobrevivendo apenas alguns remanescentes que se refugiaram em várias partes do país.

Por alguma conclusão

Essa história de mudanças e permanências evidencia que, além do fato de sermos um país muito atrasado, também somos um povo que adora se enganar. Mudamos as formas, mas as práticas, em regra, são as mesmas. Com o devido cuidado, podemos fazer relações do tipo: não temos mais coronéis, mas mantemos nossas ‘lideranças’ comunitárias (se entearmos o Coronel como aquele que paga as contas, veremos que atualmente ainda existem milhares de coronéis por todos os lados…); não temos mais cangaço, mas temos nossos traficantes que agora se pretendem domesticadores de populações, praticando até mesmo o extinto voto de cabresto.

E, além de tudo isso, ainda preferimos dar ares de elegância ao nosso banditismo social, nomeando nossos bandidos como “reis do pedaço”. É rei de palha aqui, rei da bola acolá, rainha loira daquilo outro, príncipes de araque que tornam nossa república um Império simbólico.

Enquanto isso, vamos mantendo nossos sonhos de transformação social e política com os mesmos signos do passado: não se tira máscaras, elas apenas são substituídas por outras, mais adornadas para desfilarem em nossos carnavais gloriosos e repletos de artistas-ou-não fantasiados de heróis.

Assim prossegue nossa república mascarada.

http://acertodecontas.blog.br/artigos/lampiao-cangaceiros-coroneis-e-a-nossa-republica-de-mascaras/

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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