Por André Raboni
Hoje (28)
completam 70 anos da morte de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, e Maria
Bonita. Foram mortos em uma volante comandada pelo tenente João Bezerra, na
fazenda Angico, em Poço Redondo (SE), em 1938.
Não é incomum
encontrarmos referências a Lampião como um herói popular, ou mesmo um rei.
Afinal, quem foram os cangaceiros?
Antes de
responder essa pergunta, buscaremos nos desviar das respostas enlatadas que
costumamos reproduzir. É preciso compreender um pouco o contexto social e
político em que viveram Virgulino Ferreira e seu bando, bem como as relações de
poder que vigoravam na época.
Lampião nasceu
em Serra Talhada, sertão de Pernambuco, no ano de 1897. Morreu em 28 de julho
de 1938. Assim, viveu 41 anos, no período que vai da Primeira República
(1889-1930) até pouco depois do golpe getulista do Estado Novo (1937).
A realidade
política e social era bem diversa de hoje (embora muitas relações ainda
subsistam – sobretudo as relações de poder local e a pobreza de parte
significativa da população). Outro cuidado que precisamos ter ao buscar alguma
espécie de avaliação da figura de Lampião e seus aliados é que o Cangaço não
foi atividade exclusiva deles, mas que também existiram outros grupos de
cangaceiros.
Em primeiro
lugar, gostaria de falar um pouco do contexto político da Primeira República
brasileira (conhecida pejorativamente como República Velha – eu
pergunto: por que Velha? Simples resposta: porque quem a cunhou assim
foram estudiosos do Estado… Novo em diante. É comum encontrarmos
classificações de períodos históricos que demonizam o passado a partir do
presente – outro exemplo seria quando os ditos modernos crivaram o
período anterior ao seu como Idade Média, ou Idade das Trevas).
A Proclamação
da República (1889) prometia inúmeras conquistas sociais em detrimento do atraso monarquista.
Entre elas, acabar com o centralismo do poder. Em troca dessa centralização
imperial, iriam emergir formas descentralizadas de governos, em sua forma
federalista. E, isso aconteceu de fato?
Não. Apesar de
ser uma prerrogativa constitucional, os princípios de autonomia municipal
acabaram por não sair do papel. Podemos até dizer que os municípios foram
sufocados pelas práticas políticas ao nível nacional e estadual. Durante o
governo do paulista Campos Sales (1898-1902), iniciou-se a chamada ‘política
dos governadores’. O que é isso?
A
instabilidade política dos anos seguintes à Proclamação tornava necessária a
fundação de bases políticas que dessa governabilidade aos presidentes da
república. A forma arquitetada por Campos Sales foi justamente estabelecer
vínculos de compromissos com os governos estaduais, baseados na troca de
favores, nas nomeações para cargos burocráticos, no repasse de verbas e nos
investimentos vários (conquistas materiais e simbólicas, como luz elétrica,
trens, telefones, etc. eram a coqueluche do momento). Por sua vez, os
governadores de estados firmaram os seus compromissos com os presidentes, para
garantir a ‘passividade’ das bases políticas em um nível municipal. Para isso,
outra cadeia de interesses e compromissos foi firmada entre os governadores e
os chefes políticos locais (alguns, coronéis).
Como você pode
perceber, a estrutura arquitetada é como uma teia política, um sistema no qual
as relações de interesses permeavam toda a realidade política. Foram esses
compromissos que fizeram emergir de forma mais acabada as relações políticas do
sistema coronelista. Dessa forma, não eram “coronéis” apenas aqueles que ainda mantinham
seus títulos da Guarda Nacional. Mas todo chefete político (padre, médico,
comerciante, advogado, delegado, fazendeiro, etc.) que arregimentava currais
eleitorais, para garantir a estabilidade política aos governadores,
principalmente durante as eleições, em troca de nomeações em cargos públicos,
envio de tropas para combater as famílias rivais, repasse de verbas e bens
simbólicos, etc.
Com esse
sistema articulado e funcional, quem sofre as suas consequências? Os
municípios, claro. Essas unidades político-administrativas viram sua autonomia
plenamente sufocada com a instauração das relações de compromissos entre a
União, os Estados e, por último, os Municípios. E, isso era ruim? Depende do
ponto de vista. Vejamos: o sufocamento dessa autonomia prevista na Constituição
garantia às famílias mais aquinhoadas dos municípios a manutenção de seu poder
político e econômico local, haja vista sua força em repassar votos. Ou seja,
para essas famílias era muito bom. Por outro lado, a população menos abastada
era quem mais sofria as consequências desse federalismo tosco, bem como a
própria Carta Magna também exalava ares de ficção e mentira. Não foram poucos
os debates jurídicos nesse período acerca de uma reforma constitucional.
O cangaço no
contexto político da primeira República: anseios e práticas
O que ocorre é
que as práticas do Cangaço estão envoltas nesse contexto político. Não estando
inseridos nas discussões bacharelescas, claro, os cangaceiros adaptaram-se à
esta realidade, manobrando-a de várias maneiras e adequando-a aos seus anseios.
Quais eram
esses anseios? Aqui reside uma série de divergências. Uns dizem que suas
motivações eram algo próximo ao que conhecemos como Robin Hood, ou seja,
que os cangaceiros eram espécies de justiceiros, que trariam ao povo o resgate
da cidadania estuprada pelos chefes políticos. Mas, essa tese cai totalmente
por terra quando percebemos que não era incomum os bandos de cangaceiros se
aliarem aos chefes políticos locais, sejam eles padres, fazendeiros, etc.
Outras interpretações, mais críveis, talvez, fossem as motivações de vingança.
Mas, a vingança, após efetivada, teoricamente deveria cessar as práticas. Não
era o que acontecia, em regra. Depois de inserido em um bando, o cangaceiro
assumia um estilo de vida.
Em que tipo de
relação se baseava essas alianças? Bem, a resposta para isso pode variar muito.
O certo é que os cangaceiros também tinham seus interesses, dentro de toda
essa cadeia de interesses. Estes podem variar muito: desde de recebimento de
dinheiro ou bens materiais (armas, roupas, etc.), até mesmo proteção por parte
do coronel ao qual o bando se aliava. Parece estranho, mas cangaceiros também
se aliavam com coronéis em relações de proteção mútua, e isso já não é segredo
pra ninguém.
O estilo de
vida quase-nômade dos cangaceiros davam a eles um grande poder de mobilidade e
sagacidade para escaparem das forças do Estado – quando as forças policias se
opunham a eles -, fortalecido pelos vínculos de proteção e pelo conhecimento
profundo das regiões de caatinga do nordeste brasileiro.
O medo que
pairava nos povoados, certamente dava aos cangaceiros o seu status de bandos
violentos e perigosos. As práticas cruéis, como o esfolamento, brigas, assassinatos,
roubo, etc. eram comum, e garantia-lhes manter essa política do medo assentada
sobre o banditismo social.
Como bandos seminômades,
os cangaceiros forjaram uma máquina de guerra que, paradoxalmente, os afastava
e os ligava ao contexto político da época. Manobrando em seu favor as práticas
políticas de poder local, garantiam não apenas seu status, como a sua própria
existência.
Se os
cangaceiros são bandidos ou mocinhos, não posso responder. O certo é que
estavam inseridos em uma trama social na qual compromissos e interesses estavam
em jogo, em todas as esferas políticas. Isso confere um caráter dúbio às
práticas dos cangaceiros. Ao mesmo tempo em que são bandidos (por causa dos
assaltos, das brigas, assassinatos), também são ‘justiceiros’, na medida em que
o inimigo perseguido é é também inimigo de quem observa. É apenas uma questão
de referencial.
Dessa maneira,
não acho que devemos estigmatizar os cangaceiros, nem muito menos
vangloriá-los. Nem como heróis sociais (visão ampliada com a profusão do
movimento mangue-beat, que convence os mais jovens, quando embebidos em seus
anseios pseudorevolucionários de revolta – a revolta pode até ser legítima, mas
o arsenal ideológico é falacioso), nem mesmo como meros bandidos (apesar de
suas práticas).
Penso que, se
existe um sujeito que deva carregar algum estigma, esse sujeito é abstrato.
Podemos chamá-lo de poder local, ou, ainda, cadeia de interesses.
Mudanças
aparentes encobrem permanências
Após a
Revolução getulista de 1930, a perseguição ao cangaço se intensifica. Mudam-se
as formas de garantir os interesses. Via de regra, também mudam-se as
elites dominantes no país. O fim da ‘política dos governadores’ mostra como
novas relações de poder político são instaurados. A perseguição aos grupos
políticos de esquerda também tem sua vertente na perseguição aos cangaceiros –
pretensos justiceiros que ampliariam o poder do povo sofrido, usurpando-o das
elites. Sendo também uma ameaça so Estado (em muitos casos pelas próprias
alianças com chefes locais), deveriam ser exterminados.
Essa última
análise, de caráter ideológico, é discutível. No entanto, é menos discutível o
fato de que a intensificação da perseguição aos cangaceiros pode nos mostrar
que estava sendo operada uma nova guinada na política nacional. Com o golpe do
Estado Novo (1937) e a instauração de interventoriais nos estados (os
interventores eram os governadores nomeados pelo governo federal), o anseio por
um Estado forte e eficaz no combate ao banditismo social e ao domínio local por
chefetes e coronéis, foi uma máscara que escondia por trás de si um rosto
bizarro… antidemocrático e, mesmo, fascista. Por sua vez, as políticas de
massas, como as sequentes conquistas trabalhistas, davam área de progresso nos
centros urbanos.
Não era o fim
do elitismo, mas sim o deslocamento de elites no poder. Em muitos casos, as
elites se mantiveram na base do “sou coerente e nunca mudo de lado: estou
sempre com a situação “. É nesse sentido que as práticas de poder local se
mantém. O fim do coronelismo é o fim de um sistema, não o fim de uma prática de
dominação política e econômica – esta se mantém ainda, de diversas formas, até
os dias de hoje – mas, é mais prudente chamar a isso de mandonismo local.
O fato é que
logo após o golpe do Estado Novo, o bando de Lampião foi esfarelado,
sobrevivendo apenas alguns remanescentes que se refugiaram em várias partes do
país.
Por alguma
conclusão
Essa história
de mudanças e permanências evidencia que, além do fato de sermos um país muito
atrasado, também somos um povo que adora se enganar. Mudamos as formas, mas as
práticas, em regra, são as mesmas. Com o devido cuidado, podemos fazer relações
do tipo: não temos mais coronéis, mas mantemos nossas ‘lideranças’ comunitárias
(se entearmos o Coronel como aquele que paga as contas, veremos que atualmente
ainda existem milhares de coronéis por todos os lados…); não temos mais
cangaço, mas temos nossos traficantes que agora se pretendem domesticadores de
populações, praticando até mesmo o extinto voto de cabresto.
E, além de
tudo isso, ainda preferimos dar ares de elegância ao nosso banditismo social,
nomeando nossos bandidos como “reis do pedaço”. É rei de palha aqui, rei da
bola acolá, rainha loira daquilo outro, príncipes de araque que tornam nossa
república um Império simbólico.
Enquanto isso,
vamos mantendo nossos sonhos de transformação social e política com os mesmos
signos do passado: não se tira máscaras, elas apenas são substituídas por
outras, mais adornadas para desfilarem em nossos carnavais gloriosos e repletos
de artistas-ou-não fantasiados de heróis.
Assim
prossegue nossa república mascarada.
http://acertodecontas.blog.br/artigos/lampiao-cangaceiros-coroneis-e-a-nossa-republica-de-mascaras/
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário