Por Carlos Alberto Dória
Maria Bonita
fotografada por Benjamin Abrahão, imagem da mostra "Cangaceiros", no
MIS
Divulgação
Mostra de
fotos revela Lampião como um hábil manipulador da comunicação moderna
Em tempos
resignados há lugar também para o fascínio pela rebeldia. É intrigante que,
caminhando pela rua que reúne as lojas dos carros mais sofisticados do planeta
(Jaguar, Ferrari etc.), se possa entrar num lugar onde estão expostas fotos
horríveis; brasileiros decapitados porque um dia se rebelaram contra decrépitos
coronéis sertanejos como se colaborassem, sem querer, para o triunfo dessas
incríveis máquinas milionárias que hoje emolduram sua memória.
A mostra
“Cangaceiros”, que o Museu da Imagem e do Som realiza, possibilita a ocasião
única de visitação a um dos temas mais caros do nosso velho “cinema novo” - e
não só dele, visto que as melhores cenas do cangaço, captadas pelo mascate
Benjamin Abrahão, em 1936, foram incorporadas ao filme “Baile Perfumado”
(1997).
Em “Baile
Perfumado”, como na mostra do MIS, o cangaço se apresenta através de cenas
domésticas e posadas para a câmara, como se aqueles homens e mulheres soubessem
que a história os absorveria, mesmo que não os absolvesse.
Benjamin
Abrahão conheceu Lampião no Ceará e imaginou transformar esse conhecimento em
negócio. Propôs-se a fazer um filme sobre o cangaço, para a produtora Abafilm,
com o objetivo de divulgar mundialmente as imagens. Fez filme e fotos, mas
Abrahão foi assassinado dois anos após o fim do cangaço, e seu filme,
confiscado pela política, não foi exigido comercialmente antes de integrar
“Baile Perfumado”. Eram imagens que incomodavam o Estado Novo de Getúlio
Vargas.
No filme de
Abrahão, a normalidade da vida sob o cangaço diante das câmaras é
impressionante. Os cangaceiros riem, brincam, se divertem, cozinhar, comem, leem,
dançam, fazem vaquejadas, bebem água como pessoas normais. Vestem-se
esplendorosamente para os padrões da época. Parece o “making of” de uma banda
de rock.
As fotos
mostram mais coisas. Uma das melhores é a de Maria Bonita, cabelos arrumados,
sentada num banco, de pernas cruzadas, chapéu sobre o joelho, mão direita sobre
o chapéu, exibindo vários anéis, como a modelo moderna orgulhosa por envergar
trajes de uma etiqueta de vanguarda. Não à toa que é a sua foto mais famosa,
aparecida à época em “O Cruzeiro”. São impressionantes também as vestimentas
das cangaceiras Moça e Inhacinha, assim como as bolsas e adereços de quase
todos, bordados com flores geométricas e arabescos decorativos. Essa estética
reforça o espectro perene e contraditório de uma sociedade que, rigorosamente,
desapareceu.
A pose de
Maria Bonita sugere o papel das mulheres no cangaço. Deve-se a elas o
adoçamento dos costumes dos cangaceiros. Nessa fase de quase sedentarismo do
grupo nômade, Lampião entrava nas cidades e dizia: “É Lampião que vem chegando,
amando, gozando e querendo bem”. Enunciava o oposto da fama terrorista do
bando.
Talvez fosse
esse o objetivo de Lampião ao admiti-las no grupo. Segundo interpretações de
especialistas, elas facilitavam a comunicação com a população e impunham alguns
limites à violência do cangaço. Diante das câmaras, dão o ar de normalidade, de
“família”, à condição sublevada dos cangaceiros.
Numa das
fotos, aparece à esquerda um cangaceiro em posição de sentido, ao lado do
chefe, em posição mais descansada; em seguida, sua mulher com a cabeça
recostada em seu ombro, e outra mulher ainda brincando com a primeira. Por fim,
na extrema direita da foto, um outro sentinela, não em posição de sentido, mas
acariciando um cão. É nítida a sensação de um dominó onde vai se quebrando a
rigidez e hierarquia do grupo.
Em meados dos
anos 20, Lampião fez sua primeira foto. Diante do pedido do fotógrafo, pensou
alguns dias, mandou fazer uma nova roupa e aceitou ser fotografado. Sobre uma
foto dessa época, escreveu de próprio punho: “Lampião (legítimo)”. Quando foi
morto, trazia no corpo várias fotos de família, além da foto do militar
responsável pela sua morte. Tinha ideias claras sobre o valor da fotografia.
O filme e as
fotos de Abrahão correspondem a um plano publicitário de Lampião. Em muitas, o
próprio Abrahão aparece, mostrando que o cangaço filmava e fotografava a si
mesmo. Têm-se a sensação de que Lampião intuíra que a guerra moderna também se
trava na mídia. Fazia-se fotografar para ser mostrado na capital, sem dúvida.
Ao Estado Novo incomodava muito o cangaço, a “barbárie” do sertão que sempre
repercutia na imprensa da capital como um escândalo. O golpe das fotos foi
sentido. Tanto é que os perseguidores de Lampião -especialmente as “volantes”
(grupos de mercenários e vingadores) - passam também a promover fotos e a
divulgá-las, introduzindo, através delas, o espetáculo do horror como forma
intransigente de combate.
Cabeças decepadas,
fotos de prisioneiros executados, tinham o claro propósito de intimidar. Senão
aos cangaceiros, à população civil que lhes dava suporte, além de mostrar à
opinião pública a presença do Estado no sertão. Curioso que não haja, da parte
de Lampião, uma só foto de inimigo morto ou profanado. Na única foto onde
aparecem prisioneiros de Lampião estes estão misturados, quase indistintos,
como se fosse uma só família.
O cangaço é
algo que pode ser desdobrado em várias camadas, como uma cebola. A casca, que
se joga fora, sugere que se tratava de meros bandidos assassinos, que
espalharam o terror pelo sertão por mais de meio século, e que o seu fim
expressa o desejado triunfo da ordem e da modernidade naquele Brasil longínquo.
Também foi assim com Antonio Conselheiro, mas quando lemos “Os Sertões” nunca
recuperamos a inocência.
A segunda
camada é composta por aqueles que vivem da memória do cangaço. Descendentes dos
cangaceiros, fãs e admiradores da coragem, colecionadores de objetos do
cangaço; e uma certa sociologia que tem nostalgia de um Nordeste que já não há,
mas nos brinda com velhas interpretações em torno de minúsculos “novos fatos”
descobertos, ameaçando-nos sempre com a “verdade definitiva”. Constroem um
Nordeste emblemático, nunca problemático. Mas a mostra do MIS deve-se em parte
a eles. Além disso, cumprem um papel: humanizam os personagens que, de outra
forma, talvez fossem recordados apenas como uns degenerados. Sim, porque as
fotos das cabeças decepadas nos dizem exatamente isso.
Ao serem
surpreendidos e fuzilados, os cangaceiros tiveram as cabeças cortadas e
mandadas para Salvador, para serem analisadas “cientificamente” no Instituto
Nina Rodrigues, do mesmo modo como, no final do século 19, o cientista Cesare
Lombroso estudava o crânio dos criminosos sicilianos à busca de alguma anomalia
que pudesse ser compreendida e extirpada. Mumificadas, as cabeças dos
cangaceiros levaram décadas para serem enterradas (1969) -tempo em que ficaram
acusando os rebeldes de, no fundo, serem lelés da cuca.
Depois da
morte de Lampião assiste-se a um festival de traições, defecções e rendições.
Em pé só sobrou Corisco, que deambulou pelo sertão por mais dois anos, até
encerrar com chave de ouro o ciclo do cangaço. Só se entregou à morte, de
parabélum na mão, conforme a canção de Sergio Ricardo no filme de Glauber
Rocha.
Finalmente
temos, na nossa cebola histórica, várias camadas que nos mostram ecos de uma
humanidade surpreendente, vindos dos confins do mundo. Nesse núcleo, situa-se o
problema que a curadoria de Émile Jasmin sugere, que é a relação de Lampião e
seu bando com a fotografia, ou com a comunicação moderna.
Em quatro
fotos, Lampião aparece envolvido com a cultura letrada: numa segura o jornal “O
Globo”, noutra a revista “O Cruzeiro”; numa terceira lê um livro de Edgar
Wallace (o autor de novelas policias e de suspense mais popular dos anos 20) e,
noutra, escreve uma carta. Talvez estivesse a nos dizer que ali, no fim do
mundo, também era Brasil letrado.
Pouquíssima
gente contemporânea conseguiu compreendê-lo de forma útil para nós, que vivemos
há quase 70 anos do seu fim. Graciliano Ramos foi o mais lúcido. Para ele
(“Viventes das Alagoas”), o cangaço foi expressão de uma sociedade em crise
onde os valores tradicionais não encontravam mais condições de se reproduzir,
impondo um modo de vida aventureiro e avulso.
Gramsci, em
1934, teorizou sobre essas formas de luta social onde falta a “unidade” de
propósitos que só o Estado confere. Assim, numa história que se esfacela
sempre, é fundamental recolher todo vestígio de vida autônoma. Como nestas
fotos privilegiadas.
O historiador
Eric Hobsbawm escreveu, em 1959, o livro “Rebeldes Primitivos”. Nele, mostra o
cangaço como uma forma de reação camponesa contra o advento do capitalismo no
mundo rural. O milenarismo, o banditismo, as greves messiânicas, certas formas
de anarquismo -tudo expressa o grito final da ordem que desmoronava,
evidenciando a inadequação dos homens e mulheres que ainda não haviam
compreendido as novas linguagens políticas, como a ação organizada em partidos.
Por isso Hobsbawm chamou-os, indistintamente, de movimentos “pré-políticos”.
Entre nós, nos
anos 60 do século passado, os cangaceiros foram representados como
vanguardeiros políticos, profetas de uma nova ordem. Rui Facó1 e
Glauber Rocha os viram como “o prólogo da luta armada” que haveria de vencer o
latifúndio e encaminhar a revolução brasileira. Esta, como não veio, congelou
os filmes de Glauber na mesma galeria das profecias irrealizadas onde se
guardam as imagens do cangaço. Verdade e imaginação.
São todas
visões que ressaltam o arcaísmo das formas de luta. Mas o uso publicitário da
fotografia sugere mais a integração com a modernidade do que a apartação dela.
O exibicionismo cangaceiro, projetando a existência para além do seu fim,
mostra um Lampião que compreendeu claramente o papel da imagem, libertando-se
do confinamento do espaço e do tempo.
A cultura
brasileira está sempre mastigando esta história, conferindo-lhe uma espécie de
eternidade que as fotos reunidas no MIS confirmam largamente; e hoje, quando
vivemos a “pós-política”, isto é, o esgarçamento da política partidária como
instrumento de transformação, não deixa de ser surpreendente esse reencontro
com a “pré-política”. Certamente as cabeças cortadas encerram lições
imorredouras.
A exposição:
“Cangaceiros”,
com curadoria de Émile Jasmin. No MIS - Museu da Imagem e do Som (av. Europa,
158, São Paulo). Até 4/3/2007.
(Publicado em 18/12/2006)
Carlos Alberto
Dória
É sociólogo, doutorando em sociologia no IFCH-Unicamp e autor de
"Ensaios Enveredados", "Bordado da Fama" e "Os
Federais da Cultura", entre outros livros. Acaba de publicar
"Estrelas no Céu da Boca - Escritos Sobre Culinária e Gastronomia"
(ed. Senac).
http://www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/2815,1.shl
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