Por Bárbara Lima
Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com).
Desde 2010 venho publicando alguns livros que compõem uma trilogia por mim denominada "CANGAÇO E CORONELISMO NO RIO GRANDE DO NORTE".
Em 2010 publiquei Massilon:
"Este livro não é uma obra científica, muito embora eu tenha tido a cautela de utilizar a metodologia apropriada quando possível, e parte do que possa ser lido tenha o rigor de pequenos ensaios. Também não é literatura, apesar das crônicas nele contidas. A bem da verdade é um livro, apenas. Sem adjetivos.
Apesar de seu tema central ser Massilon, não houve uma preocupação minha em me limitar. Ao contrário. Deliberadamente extrapolei. E não há razão objetiva para tal. Apenas senti o impulso de fazê-lo: somente assim posso explicar a presença de algumas divagações acerca do conceito de cangaço e outras quaisquer. Também foi opção pessoal transcrever, ao invés de interpretar, muitos dos textos que serão encontrados no livro, embora todos estejam conectados entre si. Preferi, ao fazer essa opção, que o leitor pudesse tirar suas próprias conclusões a partir da transcrição do texto.
A prova inconteste da minha despreocupação com os limites do tema é o “Diário de Viagem”, constituído de crônicas escritas nos locais por onde andei em busca do rastro de Massilon. Nessas viagens tudo foi gratificante: as pessoas, os lugares, os fatos. Aprendi muito, ensinei alguma coisa, aproximei-me de pessoas e me afastei de outras. Revi conceitos e posturas. Construí perspectivas inesperadas. Vivi".
Em 2015, lancei Histórias de Cangaceiros e Coronéis:
"Passados dez anos do lançamento, no Cariri cearense, de “Massilon – Nas Veredas do Cangaço e Outros Temas Afins”, eis que Honório de Medeiros nos entrega “Histórias de Cangaceiros e Coronéis”, o segundo volume de sua trilogia acerca desse tema fascinante.
Desta vez o livro é dividido em três grandes eixos: no primeiro, “Jesuíno Brilhante, Herói ou Bandido”, o autor, com base em farta documentação, em primeiro lugar nos apresenta uma face mais visível do pouco conhecido, mas muito famoso em sua época, José Brilhante, o “Cabé”, tio materno do único cangaceiro potiguar conhecido, e que foi personagem do romance “Os Brilhantes”; e, em segundo lugar, mostra o quanto talvez seja equivocada a percepção romântica, calcada no mítico Robin Hood, tanto do senso comum quanto dos escritores que se dedicaram a escrever acerca do primeiro dos grandes bandidos rurais do ciclo do cangaço, Jesuíno Brilhante.
No segundo eixo trata do famoso ataque de Lampião a Mossoró analisando-o a partir de uma perspectiva inédita e com informações até então desconhecidas da literatura específica acerca do tema. Aparece, por exemplo, pela primeira vez na história do cangaço, identificado inclusive com imagem, a “oposição oficial” ao Coronel Rodolpho Fernandes e que a ele se contrapôs veementemente nos dias que antecederam a invasão da cidade.
Por fim, no terceiro eixo, constituído de crônicas acerca de temas diversos do cangaço e do coronelismo, trata, por exemplo, de uma misteriosa amante de Antônio Silvino, bem como acerca da famosa “teoria do escudo ético”, ou mesmo do “pacto dos governadores para eliminar os cangaceiros”, dentre outros, que se colocam para o leitor como textos menos densos, mas, nem por isso, menos instigantes.
Como dito outrora, na orelha do “Massilon”, e ainda válido hoje, o que o Autor pretende, e não há razão para que não ocorra da forma como ele deseja, este livro é “nada tão sério que pareça maçante, tampouco tão leve que pareça desfrute”.
Finalmente, encerrando a trilogia, veio a tona Jesuíno Brilhante, o Primeiro dos Grandes Cangaceiros:
"Naquelas noites, no Sertão, a escuridão tomava conta do Sítio onde, à luz do lampião, no terreiro, meu Compadre – eu, menino, o tratava assim, e ele assim me tratava – reunia, no seu entorno, a família e os amigos, para ouvirem as estórias que faziam parte da antiga tradição oral dos nossos antepassados sertanejos, acompanhadas de uma xícara de café quente, coado na hora, e bolachas pretas.
Às vezes havia lua e o mar de prata criava imagens fantasmagóricas nos arbustos, lá fora, confins da luz; ao vê-las, instintivamente nos aproximávamos um pouco mais do círculo dos adultos, e somente relaxávamos quando a gargalhada do meu Compadre pontuava suas estórias. Até então, ele tinha nos deixado, a todos, em permanente suspense, por um tempo aparentemente sem fim.
Decerto, nunca mais pude fugir de um compromisso alegando uma mentira inocente sem recordá-lo e a um desses “causos” que ele nos contou. Dizia respeito a alguém do seu conhecimento, “parente distante”, que para fugir de uma obrigação social, jurou, por intermédio de um bilhete, estar em casa, de repouso, por motivo de doença. Ao voltar de um forró onde se esbaldara a noite inteira, em outra localidade, mal apeou do cavalo escutou choro e lamentações, e seu pressentimento foi confirmado pelos fatos – ela, sua esposa, jazia, muito doente, nos braços das filhas.
Exposto assim parece pouco, quase nada, mas somente sabe acerca da magia sobrenatural daquelas noites quem as viveu no Sertão, à luz bruxuleante do lampião, céu estrelado, ouvindo, de quando em vez, dentre outros, o canto sinistro dos rasga-mortalhas.
Eram estórias de amores; assombrações; gestas; valentias; honras; ódio entre famílias; cangaceiros; botijas, descobertas por intermédio de sonhos que precisaram de uma sabedoria centenária para serem interpretados corretamente; raptos consensuais ou não; caçadas às onças, nas quais somente a habilidade espantosa do caçador o fez escapar com vida; pescarias milagrosas; recuperações da saúde através de feitiços, poções ou orações de benzedeiras e curandeiros; vidências; estórias de maus-olhados e mandingas; secas e invernadas desmedidas; justiças divinas a corrigirem desmandos humanos; feitos com armas; aventuras de parentes e amigos nas terras desconhecidas da Amazônia, para a qual tantos tinham ido e não mais voltado; relatos dos segredos da Serra das Almas, onde foram encontradas as ossadas de vários homens ao lado de espadas, escudos, elmos, pepitas de ouro e outros apetrechos do tempo em que o Brasil era recém-nascido; e tantas outras...
Na forma arrastada com a qual meu Compadre as contava havia uma magia que prendia nossa atenção, uma sabedoria antiga da qual ele era herdeiro e na qual era mestre; havia alguém que cultivara a tradição, o dom de contar um “causo”, uma cadência hipnótica na voz, uma lógica precisa para o encadear das frases engastadas com palavras que o mestre Luís da Câmara Cascudo não hesitaria em classificar como egressas do puro português colonial, e que os folgados das cidades grandes alcunhariam de “matutês”, por pura ignorância.
O desfecho sempre apresentava uma lição de vida e, não raro, belas conclusões a externar uma apropriada observação acerca da natureza dos homens e seu destino de desprezar o caminho certo, a senda justa, a trilha verdadeira na vida, em troca das facilidades enganosas que o diabo apresentava, enquanto armadilhas, para a perdição da alma dos incautos.
Meu Compadre não era somente um contador de estórias sem igual e um dos últimos herdeiros daquela raça de titãs que colonizara o Sertão, alguém dotado de arguta percepção a respeito dos homens e das coisas, a quem eu escutava embevecido; também era uma fonte inspiradora, a principal delas quando penso na cultura sertaneja, como se tudo quanto eu lesse acerca do tema precisasse ser confrontado com a memória de sua existência, para, em mim, adquirir a necessária credibilidade.
Passaram-se os anos, muitos, desde então, até que resolvi escrever uma história do cangaço no Rio Grande do Norte, a partir de uma perspectiva muito pessoal, em três volumes.
Eu desejei fazê-lo, primeiro, porque nasci no Sertão, e sou filho de um cantador de viola que muito cedo abandonou a profissão, mas, enquanto pôde, participou ativamente de associações de violeiros, congressos de cantadores, seja como espectador, seja como juiz, e foi amigo pessoal de grandes artistas do ramo, tais como Ercílio Pinheiro e Dimas Batista, verdadeiros gênios, a quem hospedou em sua residência, em Mossoró.
Desde muito cedo percebi que as cantorias, assim como toda a tradição oral, das quais fui testemunha maravilhado em minha infância, meninice e adolescência, são sempre um dizer acerca de tudo quanto nos cerca e envolve, formando uma complexa teia de conhecimento e memória na qual os fios que descrevem a realidade estão emaranhados com aqueles outros cuja consistência têm a dimensão do imaginário, das fabulações, mitos, lendas, e são consequências das reflexões, ansiedades, perplexidades e desejos mais profundos da alma humana.
Isso sempre me fascinou.
O segundo motivo diz respeito a uma perene insatisfação com as explicações acerca do surgimento do cangaceirismo.
Treinei-me desde muito cedo para contra-argumentar ante as explicações aparentemente fáceis, óbvias, desde as mais simples até as mais complexas, mesmo se em silêncio a mim mesmo imposto, quando minha fragilidade, tão humana, sucumbia à pressão externa.
As explicações fáceis, singelas, óbvias, existentes acerca do cangaceirismo não me convenciam.
O terceiro e último motivo diz respeito a descobertas que fiz enquanto analisava a trajetória de Massilon, o grande responsável pelo ataque de Lampião e seu bando a Mossoró, no Rio Grande do Norte, bem como, no caso de Jesuíno Brilhante, quando encontrei algumas fontes fundamentais para a elaboração de uma imagem diferente do grande cangaceiro potiguar, que se contrapunha, como em uma composição chiaroscuro, à do “cangaceiro romântico”, “Robin Hood”, do “bem”, onipresente, desde há muito, no imaginário nordestino sertanejo, assim como entre os estudiosos do assunto.
Não que ele tenha sido ruim, no sentido em que o senso comum percebe Lampião e Corisco, mas, com certeza, não foi aquilo que a tradição oral e o talento de Câmara Cascudo construíram ao longo do tempo.
Ou seja, talvez, quem sabe, no caso de Jesuíno Brilhante, o senso comum estivesse errado.
Então escrevi Massilon, uma história de vida, uma biografia, mas não somente. Depois, Histórias de Cangaceiros e Coronéis, na qual apresentei algumas hipóteses acerca das causas ocultas que motivaram a invasão a Mossoró, até hoje incontestadas. Finalmente, escrevi Jesuíno Brilhante, o Primeiro dos Grandes Cangaceiros, este livro, o último da trilogia, um misto de biografia e ensaio acerca do cangaceirismo.
A imagem de Jesuíno Brilhante é bem um produto cultural do Sertão Arcaico. É quase consensual a lenda de que ele foi um cangaceiro diferente, mas, enquanto fato, isso provavelmente não é verdade. Creio que a Luís da Câmara Cascudo devemos, em grande parte, a construção dessa imagem de cangaceiro “romântico”, a ele atribuída.
Entretanto, antes de partirmos para qualquer opinião mais complexa, e enquanto tributo pago à Academia e seus métodos, ouso apresentar, desde logo, a hipótese de que Jesuíno Brilhante foi um homem do seu tempo, nada mais, nada menos.
Que se abra, pois, o debate!
Nunca podemos julgar quem quer que seja, se não for possível fugir de julgamentos, com os olhos de um observador onisciente. Essa é uma tarefa para os deuses, se é que eles existem.
Não por outra razão uma verdadeira história do cangaceirismo precisa começar com uma pergunta que jaz à disposição de quem se proponha enfrentar o desafio de escrevê-la segundo as regras da ciência, fugindo do “achismo” próprio das opiniões superficiais: o que levou alguns homens a não se conformarem com o papel que lhes destinavam suas circunstâncias, e ousarem tomar seus destinos com as mãos, construindo suas próprias histórias?
De outra forma: por que surgiram homens como Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino, Sinhô Pereira, Lampião e Corisco, para ficar na senda do cangaceirismo?
Tarefa ousada, a ser desenvolvida por muitas mãos apropriadas. Resolvi dar o primeiro passo questionando a imagem consagrada de Jesuíno Brilhante. Trazendo-o do cume à planície, se for o caso, apresentando, a seguir, uma conjectura ousada como resposta.
Na medida em que escrevia este livro e apresentava, através de fatos, um Jesuíno Brilhante diferente daquele que nos acostumamos a conhecer ou mesmo imaginar e pensava acerca do surgimento do cangaceirismo, quando o cansaço tomava conta de mim ante tão árdua tarefa, e a vontade de largar tudo queria assumir o controle, eu me lembrava daquelas noites no Sertão, e do quanto meu Compadre gostaria de escutar essas minhas histórias (ou estórias), à luz da fogueira.
Pois se ele, quando se foi, há muito tempo, imaginasse que um dia alguém ia lembrar daquelas noites no terreiro de sua casa, no Sítio, Encanto, beiradas da Serra das Almas, à luz das estrelas, da lua, e de uma fogueira bruxuleante, daria uma grande risada e ficaria muito satisfeito.
Então tal livro também é, além do fecho de uma trilogia, a homenagem que posso fazer ao Sertão da minha infância e meninice, personificada na lembrança que tenho do meu Compadre, e materializada nesse relato acerca de uma de suas lendas mais significativas, a de Jesuíno Brilhante, o primeiro dos grandes cangaceiros.
Finalizo lembrando que os textos que iniciam os capítulos são história ou estórias tendo Jesuíno Brilhante como personagem principal, e foram colhidas no estuário esplêndido da tradição oral nordestina sertaneja, por Gustavo Barroso, Câmara Cascudo, Raimundo Nonato, Alicio Barreto e José Gregório. Não têm um autor, são construções coletivas. O meu trabalho consistiu em cruzá-las umas com as outras e transcrevê-las, mudando um pouco a forma, mas mantendo o conteúdo. O objetivo foi mostrar como Jesuíno Brilhante era (e é) “percebido” pelos sertanejos nordestinos. Aos pesquisadores que me antecederam, minha gratidão.
Deus tenha a todos em sua infinita bondade".
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