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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

EDUCAÇÃO E DIREITOS HUMANOS NO TEXTO DO ARTIGO 26, DO COMPOSITOR CEARENSE EDNARDO

Por Anchieta Pinheiro Pinto²
https://www.youtube.com/watch?v=p5rsMmgivAQ

AUTOR EM DESTAQUE:

Ednardo, compositor contemporâneo, autor de composições antológicas das décadas de 70 
e 80, como Pavão Mysteriozo e Terral; 
nome de destaque no grupo chamado de 
Pessoal do Ceará e organizador ativo do coletivo cultural Massafeira (1979-1980). 
Palavras chaves: Educação, Filosofia, Música.
7.08.01.01-0  Filosofia da Educação

INTRODUÇÃO
             
A comunicação aqui apresentada é construída a partir de uma leitura com análise crítica do texto da música “Artigo 26”, do compositor cearense Ednardo, ou José Ednardo Soares Costa Sousa (nascimento em 17/04/1945), encontrando nele referências diretas à Declaração Universal dos Direitos Humanos e indícios de resistência cultural e valorização dos elementos regionais, em detrimento das imposições filosóficas e socioculturais do status quo. De modo paralelo, tal análise nos possibilita a redescoberta de presságios iniciais das estéticas simbolistas e modernistas em terras nordestinas.
              
A canção de Ednardo aqui analisada como texto, divulgada inicialmente no LP Berro de 1976, chegou com maior impacto ao grande público no final dos anos de 1970 e início da década de 1980, com o compositor, autor de mais de trezentos textos de músicas divulgadas, ganhando maior notoriedade nos anos 80, junto com seus conterrâneos Belchior e Fagner, em apresentações e reuniões musicais que os definiam como o “Pessoal do Ceará”.  Para acompanharmos essa leitura, cabe-nos apresentar o escrito por inteiro, corroborando com a posterior análise:

ARTIGO 26³

https://www.youtube.com/watch?v=wnGLWiZTpwQ

Olha o padeiro entregando o pão 
De casa em casa entregando o pão 
Menos naquela, aquela, aquela, aquela não 
Pois quem se arrisca a cair no alçapão? (BIS)
Anavantu, anavantu, anarriê 
Nê pa dê qua, nê pa dê qua, padê burrê 
Igualitê, fraternitê e libertê 
Merci bocu, merci bocu / Não há de quê!
Rua Formosa, moça bela a passear 
Palmeira verde e uma lua a pratear 
Um olho vivo, vivo, vivo a procurar
Mais uma idéia pro padeiro amassar (BIS) 
Anavantu, anavantu, anarriê 
Nê pa dê qua, nê pa dê qua, padê burrê 
Igualitê, fraternitê e libertê 
Merci bocu, merci bocu / Não há de quê! 
Você já leu o artigo 26, 
ou sabe a história da galinha pedrês? 
E me traduza aquele roque para o português 
A ignorância é indigesta pro freguês (BIS)
Anavantu, anavantu, anarriê 
Nê pa dê qua, nê pa dê qua, padê burrê 
Igualitê, fraternitê e libertê 
Merci bocu, merci bocu / Não há de quê! 
Você queria mesmo, é ser, um sanhaçu  
Fazendo fiu e voando pelo azul 
Mas nesse jogo lhe encaixaram, e é uma loucura  
Lá vem o padeiro, pão na boca é o que te cura  (BIS) 
Anavantu, anavantu, anarriê 
Nê pa dê qua, nê pa dê qua, padê burrê
Igualitê, fraternitê e libertê 
Merci bocu, merci bocu / Não há de quê! 
3. LP Berro. Gravadora RCA Victor, 1976.

1. METODOLOGIA
       
Neste artigo, serão feitas algumas reflexões a respeito do assunto Direitos Humanos a partir da educação, construindo-se um  estudo hermenêutico epistemológico que toma como base inicial o texto da música “Artigo 26”, no qual surge de forma emblemática a reflexão filosófica acerca da necessidade de oferta de educação e conhecimento para todos. A fim de alcançar os objetivos propostos ao longo de tal estudo, pretende-se analisar o texto em foco observando-se, em seu corpus, elementos e excertos que podem:  a) ser comparados ou mediatizados com a alegação de que, pela ótica da análise do discurso (ORLANDI, 2002), a linguagem jamais é neutra;  b) sugerir, de encontro com o Diálogo de Platão (PLATÃO, 1993), a descoberta da educação como “órgão” de visão que faz o “ser” sair integralmente das trevas, agregando-se à construção do cidadão da polis; c) demonstrar o elo filosófico com a mensagem humanística do Iluminismo francês; d) expressar a coerência do discurso ednardiano com o da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU; e) dimensionar a função didática e social dos “padeiros” aludidos pelo compositor, face à influência da belle époque e à doutrina assumida pelos estatutos da padaria espiritual que, conforme Sânzio de Azevedo (AZEVEDO, 1983), visaram normatizar a atuação da agremiação; Ademais, será desenvolvida uma discussão sobre os valores circulantes, em especial os de natureza cultural, guindando-os aos fatores sócio-históricos, artísticos ou científicos nos quais a educação está sempre imbricada.
    
2. PADEIRO: UM OLHO VIVO A PROCURAR MAIS UMA IDEIA
            
Aparentemente, o texto musical do “Artigo 26” foi composto como homenagem à Padaria Espiritual, uma curiosa agremiação cultural criada na cidade de Fortaleza, Ceará, em 1892 por alguns “rapazes de Letras e Artes”, dentre eles    o    músico    Henrique    Jorge  (10/02/1872 a 06/10/1928), os poetas simbolistas Lopes Filho (1868 – 1900) e Lívio Barreto (1870 – 1895),  e o romancista e poeta Antonio Sales (13/06/1868 a 14/11/1940). Porém, uma leitura mais aguçada de suas linhas pode nos sugerir uma visão mais didática e filosófica do texto em questão. Comecemos essa análise pelo título, compreendendo sua significação.
            
O título, enunciado como um mote direto para a significação da mensagem, tem referência literal expressa no Artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que dispõe que: "Todo ser humano tem direito à instrução." E dela não sendo servido, certamente vai ficar no prejuízo posterior. 

Compreendendo a concepção de “instrução” como essência das prerrogativas de uma educação para todos, coerente com as concepções humanísticas dos Iluministas franceses, por exemplo ̶ para lembrar dos ideais do Humanismo europeu ̶, ocorre-nos que, de modo embrionário, essa noção filosófica e educacional já preexistia desde a constituição filosófica do homem grego, perspassando os objetivos da Retórica ou da Matemática,  posto que a finalidade maior concentrava-se na construção das potencialidades do homem social em si e na consecução deste como indivíduo cidadão da polis. Nesse caso, é na República de Platão que o assunto se acentua, quando está dito o seguinte:

(…) Como um olho que não fosse possível voltar das trevas para a luz, senão juntamente com todo o corpo, do mesmo modo esse órgão deve ser desviado juntamente com a alma toda das coisas que se alteram, até ser capaz de suportar a contemplação do ser e da parte mais brilhante do ser. A isso chamamos o bem. 
Ou não? - Chamamos. 

- A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais fácil e mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de fazer obter a visão, pois já a tem, mas uma vez que ele não está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso (…) (PLATÃO, 1993, 518 C-D).

Textualmente, a composição da canção de Ednardo começa com os versos “Olha o padeiro entregando o pão / de casa em casa, entregando o pão”. A referência inicial é a dos “padeiros” (como eram chamados os sócios da Padaria Espiritual) distribuindo o “Pão” (o folhetim cultural da padaria) de porta em porta. A idéia de criar uma espécie de “padaria” para produzir cultura e conhecimento, para gerar/produzir um pão para alimentar o espírito dos necessitados, parece-nos que brotou de um ''insight'' do gênio inventivo de Antônio Sales, no momento em que o romancista e poeta degustava um pão. Nascia dali a idéia de fabricar um pão para alimentar o espírito do povo, concebido como metáfora da multiplicação do conhecimento. Certamente é dessa relação metafórica, mais filosófica e cultural do que religiosa, que se alimenta a construção do texto musical de Ednardo. 

3. A PADARIA ESPIRITUAL E SEU ESTATUTO

Todavia, em se tratando de Padaria Espiritual, observemos que, indo além de uma “alimentação” despretensiosa, a proposta cultural daqueles aludidos padeiros traz inerentes marcas de pioneirismo e pré-modernidade, uma vez que, numa época marcada pelo academicismo da literatura (1892-1896), é possível notar no gesto cultural e pedagógico o traço transgressor que dá forma às manifestações públicas e privadas realizadas pelo grupo, que enfatiza a rigor a defesa do localismo e a aversão ao estrangeirismo, em especial o francês. Isso, notadamente, na esteira da dinâmica movimentação sócio-politica e cultural da  transição do século XIX para o XX (nossa passagem da Monarquia para a República). A defesa desses pontos de vista aludidos, que nitidamente antecipam ideias do nosso modernismo literário, fica patente no Estatuto da Padaria Espiritual, publicado com quarenta e oito (48) artigos nas páginas do Pão. Contrariando o espírito cultural do período, este Estatuto pregava, por exemplo, a proibição do uso de palavras estranhas à língua vernácula, no artigo 14, e a recusa do tom oratório (tão ao gosto dos parnasianos) nas palestras e publicações, pretensão do artigo 11. Todavia, seguramente os dois artigos que davam maior seriedade à agremiação eram os seguintes:

02) A Padaria Espiritual se comporá de um Padeiro-Mor (presidente), de dois Forneiros (secretários), de um Gaveta (tesoureiro), de um Guarda-livros na acepção intrínseca da palavra (bibliotecário), de um Investigador da Coisas e das Gentes, que se chamará Olho da Província, e demais Amassadores (sócios). Todos os sócios terão a nomeação geral de Padeiros. […]

21) Será julgada indigna a publicação de qualquer peça literária em que se falar de animais ou plantas estranhos à Fauna e à Flora brasileiras […] 

Embora nitidamente adotando um ideário nacionalista de oposição ao pensamento do colonizador, e a despeito da empolgação própria dos discursos juvenis, esses rapazes não negaram o valor dos grandes escritos e dos pensadores anteriores, como Goethe e suas obras, além de Shakespeare, Dante, Hugo, Camões, Homero e José de Alencar, tomando-os também como referência e mostrando o caráter consciente da agremiação, uma vez que, assim, recusava-se qualquer nacionalismo deformado, exacerbado, e compreendia-se num pensamento nacionalista abraçado à causa da valorização das referências da terra. Certamente, similar ao que foi feito pela Semana de 1922, estavam com antecipação de três décadas, procurando amadurecer a vitória de nossa brasilidade, aglutinando parcela salutar dos conhecimentos europeus, em benefício da construção da identidade nacional; com o Pão, ofertado diretamente aos cidadãos, na função de veículo dessas valorosas pretensões didáticas.

4. O PÃO E OS PERIGOS DO ALÇAPÃO

Com alma livre e irreverente, a distribuir o “Pão” da cultura em todos os meios de uma metrópole encantada com o espírito da Belle Époque, esses padeiros negavam a aristocracia e vestiam seus ideais de  irreverência e senso crítico, além do sincretismo literário, como exemplo de dispersão do saber. Reiteramos: a idéia da dispersão do saber é a referência mais marcante a seguir, exposta a partir do título da canção de Ednardo: “Artigo 26”. 
              
Vale aqui lembrar que a canção foi escrita nos primeiros anos do Regime Ditatorial no Brasil (1964-1984), numa época onde predominava na Educação uma forte influência externa e uma crescente evolução do domínio cultural norte-americano sobre o país. Repito aqui os versos musicados que dizem: “Você já leu o artigo 26; Ou sabe a história da galinha pedrês?; E me traduza aquele roque para o português; A ignorância é indigesta pro freguês”. Como já citamos anteriormente, a música de Ednardo, aqui em análise, veio ao público no LP Berro, de 1976 (Gravadora RCA Victor). Neste Long Play, de espírito tão próximo da visionária padaria citada, ressalta-se a necessidade da distribuição da cultura, especialmente a partir da valorização dos elementos regionais, nada obstante o grito de alerta ainda não tenha sido escutado pela maioria das pessoas, que preferem, ainda hoje, por desconhecimento, o encanto das culturas alheias dominantes. Somente escapando desse encantamento e da “ignorância” é que cada pessoa pode ser livre, como o sanhaçu da música, citação do pássaro rebelde genuinamente brasileiro; livre para cantar solto no céu, mas sempre nas asas da educação, porque sem instrução e sem cultura o cidadão torna-se uma presa fácil da manipulação do sistema sociocultural. Como diz o texto: “Você queria mesmo é ser um sanhaçu; Fazendo fiu e voando pelo azul; Mas nesse jogo lhe encaixaram, e é um loucura; Lá vem o padeiro, pão na boca é o que te cura."

Como a ousada aventura contava com alguns contraditórios – especialmente daqueles para quem a instrução do povo sempre foi algo assustador –, para os padeiros havia o receio de entregar o "Pão" naquela casa e ser alvo de violência verbal ou contestação. É por isso que se diz "Menos naquela, aquela, aquela, aquela não; Pois quem se arrisca a cair no alçapão?". E alçapão, um termo tão usual no período posterior ao AI-5 no Brasil, quando predominaram as prisões de intelectuais nos porões e alçapões do Estado opressor.

Ainda sugerindo ideais de liberdade é que a canção exalta a tríade “Igualité, Fraternité e Liberté”, paradigmas cultuados pela Revolução Francesa, mas menosprezados cotidianamente, na prática, pela burguesia já vitoriosa. No caso do exercício de distribuição da cultura pelos “padeiros”, o “educando” agradecia o "Pão" recebido, em francês, idioma à moda na época (Merci bocu, merci bocu – Obrigado, obrigado), ao que o padeiro respondia, inicialmente em francês (Nê pa dê qua, nê pa dê qua – de nada, de nada), sugerindo  passos de balé (padê burrê), para depois sublinhar em português que "não há de quê!", após citar de modo brejeiro, os passos em francês de nossa quadrilha matuta: “anavantu, anavantu, anarriê”.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para além de uma mera homenagem, a composição de Ednardo abraça uma mensagem bem mais didática e filosófica. Como Orlandi (2002, p. 95) afirma, “a linguagem não é jamais inocente”; ou seja, ela não se mostra ou se apresenta como neutra. Pelo contrário, sempre há algo a mais a ser dito, além do que está exposto nas palavras que compõem o “dizer”, e atravessando os sentidos possíveis, porém escondidos nas entrelinhas.  Ainda mais se tratando de obra realizada no período em questão, oriunda de um compositor tão polissêmico. Um compositor que, embora pouco acionado pelos atuais veículos de mídia,  mantém público fiel, que mais se aproxima da sua obra com o hoje estrondos  o   avanço da internet. E para Ednardo, certamente o que muito caracteriza seu pensamento é a marca inconteste de nunca ter se reconciliado candidamente com o mundo em que vive, construído por desigualdades econômicas e sócioculturais. Na composição em foco, sobressalta claramente sua verve desconcertante, resgatando a utopia didática dos padeiros da Padaria Espiritual e confirmando, num tempo onde quase todos os valores assumem identidade de produto, a sua marca de permanente desafiador de ideias prontas. 

6. REFERÊNCIAS

ALVAREZ, KLÁUDIA. Música do Ceará. Disponível em:   
AZEVEDO, Sânzio de. A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará. Fortaleza-CE: Edições IOCE, 1983. 
AZEVEDO, Sânzio de. Literatura Cearense. Fortaleza-CE: Edições Academia Cearense de Letras, 1976. 
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura brasileira. São Paulo: Edções Cultrix, 2001.
FEITOSA, Soares. Estatutos da Padaria Espiritual. Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/espi.html> Acesso em 27/11/2016.
MELHORAMENTOS. Michaelis Dicionário Escolar Francês. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/escolar-frances/> Acesso em 27/11/2016.
OBVIOUS. A Padaria Espiritual: movimento cultural precursor da Semana de Arte Moderna de 22. Disponível em: <http://lounge.obviousmag.org/promiscuidade_artistica/2013/10/a.html#ixzz4RQ9JaYH4> Acesso em: 27 de nov. 2016.
ORLANDI, Eni P.  Análise de Discurso. 4.a edição. Editora Pontes. Campinas-SP: Edições Pontes,  2002.
OLIVEIRA, Paulo Eduardo de (org.) Filosofia e educação: aproximações e convergências.
Curitiba-PR: Círculo de Estudos Bandeirantes, 2012. 
PEIXOTO, Mariana. Ednardo Lança Livro e Álbum Massafeira. Disponível em:
Acesso em 27/11/2016.
PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. 
QUADRADA DOS CANTURIS. Ednardo, discografia. Disponível em: <http://quadradadoscanturis.blogspot.com.br/2014/09/ednardo-discografia.html>
Acesso em 27/11/2016.
SOUSA, José Ednardo Soares Costa. Ednardo.Disponível em:<  http://www.ednardo.art.br/novo> Acesso em 27/11/2016.     
SOUSA. José Ednardo Soares Costa. Letras, de Ednardo. Disponível em: <http://www.letras.com.br/ednardo> Acesso em 27/11/2016.

Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzagueano José Romero de Araújo Cardoso.

http://blogdomendesemendes.blogspot.com


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