Por Anchieta
Pinheiro Pinto²
https://www.youtube.com/watch?v=p5rsMmgivAQ
AUTOR EM
DESTAQUE:
Ednardo, compositor
contemporâneo, autor de composições antológicas das décadas de 70
e 80, como
Pavão Mysteriozo e Terral;
nome de
destaque no grupo chamado de
Pessoal do
Ceará e organizador ativo do coletivo cultural Massafeira (1979-1980).
Palavras
chaves: Educação, Filosofia, Música.
7.08.01.01-0
Filosofia da Educação
INTRODUÇÃO
A comunicação aqui apresentada é construída a
partir de uma leitura com análise crítica do texto da música “Artigo 26”, do
compositor cearense Ednardo, ou José Ednardo Soares Costa Sousa (nascimento em
17/04/1945), encontrando nele referências diretas à Declaração Universal dos
Direitos Humanos e indícios de resistência cultural e valorização dos elementos
regionais, em detrimento das imposições filosóficas e socioculturais do status
quo. De modo paralelo, tal análise nos possibilita a redescoberta de presságios
iniciais das estéticas simbolistas e modernistas em terras nordestinas.
A canção de Ednardo aqui analisada como
texto, divulgada inicialmente no LP Berro de 1976, chegou com maior impacto ao
grande público no final dos anos de 1970 e início da década de 1980, com o
compositor, autor de mais de trezentos textos de músicas divulgadas, ganhando
maior notoriedade nos anos 80, junto com seus conterrâneos Belchior e Fagner,
em apresentações e reuniões musicais que os definiam como o “Pessoal do
Ceará”. Para acompanharmos essa leitura, cabe-nos apresentar o escrito
por inteiro, corroborando com a posterior análise:
ARTIGO 26³
https://www.youtube.com/watch?v=wnGLWiZTpwQ
Olha o padeiro
entregando o pão
De casa em
casa entregando o pão
Menos naquela,
aquela, aquela, aquela não
Pois quem se
arrisca a cair no alçapão? (BIS)
Anavantu,
anavantu, anarriê
Nê pa dê qua,
nê pa dê qua, padê burrê
Igualitê,
fraternitê e libertê
Merci bocu,
merci bocu / Não há de quê!
Rua Formosa,
moça bela a passear
Palmeira verde
e uma lua a pratear
Um olho vivo,
vivo, vivo a procurar
Mais uma idéia
pro padeiro amassar (BIS)
Anavantu,
anavantu, anarriê
Nê pa dê qua,
nê pa dê qua, padê burrê
Igualitê,
fraternitê e libertê
Merci bocu,
merci bocu / Não há de quê!
Você já leu o
artigo 26,
ou sabe a
história da galinha pedrês?
E me traduza
aquele roque para o português
A ignorância é
indigesta pro freguês (BIS)
Anavantu,
anavantu, anarriê
Nê pa dê qua,
nê pa dê qua, padê burrê
Igualitê,
fraternitê e libertê
Merci bocu,
merci bocu / Não há de quê!
Você queria
mesmo, é ser, um sanhaçu
Fazendo fiu e
voando pelo azul
Mas nesse jogo
lhe encaixaram, e é uma loucura
Lá vem o
padeiro, pão na boca é o que te cura (BIS)
Anavantu,
anavantu, anarriê
Nê pa dê qua,
nê pa dê qua, padê burrê
Igualitê,
fraternitê e libertê
Merci bocu,
merci bocu / Não há de quê!
3. LP Berro.
Gravadora RCA Victor, 1976.
1. METODOLOGIA
Neste artigo, serão feitas algumas reflexões a respeito do assunto
Direitos Humanos a partir da educação, construindo-se um estudo
hermenêutico epistemológico que toma como base inicial o texto da música
“Artigo 26”, no qual surge de forma emblemática a reflexão filosófica acerca da
necessidade de oferta de educação e conhecimento para todos. A fim de alcançar
os objetivos propostos ao longo de tal estudo, pretende-se analisar o texto em
foco observando-se, em seu corpus, elementos e excertos que podem: a) ser
comparados ou mediatizados com a alegação de que, pela ótica da análise do
discurso (ORLANDI, 2002), a linguagem jamais é neutra; b) sugerir, de
encontro com o Diálogo de Platão (PLATÃO, 1993), a descoberta da educação como
“órgão” de visão que faz o “ser” sair integralmente das trevas, agregando-se à construção
do cidadão da polis; c) demonstrar o elo filosófico com a mensagem humanística
do Iluminismo francês; d) expressar a coerência do discurso ednardiano com o da
Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU; e) dimensionar a função
didática e social dos “padeiros” aludidos pelo compositor, face à influência da
belle époque e à doutrina assumida pelos estatutos da padaria espiritual que,
conforme Sânzio de Azevedo (AZEVEDO, 1983), visaram normatizar a atuação da
agremiação; Ademais, será desenvolvida uma discussão sobre os valores
circulantes, em especial os de natureza cultural, guindando-os aos fatores
sócio-históricos, artísticos ou científicos nos quais a educação está sempre
imbricada.
2. PADEIRO: UM
OLHO VIVO A PROCURAR MAIS UMA IDEIA
Aparentemente, o texto musical do “Artigo 26” foi
composto como homenagem à Padaria Espiritual, uma curiosa agremiação cultural
criada na cidade de Fortaleza, Ceará, em 1892 por alguns “rapazes de Letras e
Artes”, dentre eles o músico Henrique
Jorge (10/02/1872 a 06/10/1928), os poetas simbolistas Lopes
Filho (1868 – 1900) e Lívio Barreto (1870 – 1895), e o romancista e poeta
Antonio Sales (13/06/1868 a 14/11/1940). Porém, uma leitura mais aguçada de suas
linhas pode nos sugerir uma visão mais didática e filosófica do texto em
questão. Comecemos essa análise pelo título, compreendendo sua significação.
O título, enunciado como um mote direto para a
significação da mensagem, tem referência literal expressa no Artigo 26 da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, que dispõe que: "Todo ser
humano tem direito à instrução." E dela não sendo servido, certamente vai
ficar no prejuízo posterior.
Compreendendo
a concepção de “instrução” como essência das prerrogativas de uma educação para
todos, coerente com as concepções humanísticas dos Iluministas franceses, por
exemplo ̶ para lembrar dos ideais do Humanismo europeu ̶, ocorre-nos que, de
modo embrionário, essa noção filosófica e educacional já preexistia desde a
constituição filosófica do homem grego, perspassando os objetivos da Retórica
ou da Matemática, posto que a finalidade maior concentrava-se na
construção das potencialidades do homem social em si e na consecução deste como
indivíduo cidadão da polis. Nesse caso, é na República de Platão que o assunto
se acentua, quando está dito o seguinte:
(…) Como um
olho que não fosse possível voltar das trevas para a luz, senão juntamente com
todo o corpo, do mesmo modo esse órgão deve ser desviado juntamente com a alma
toda das coisas que se alteram, até ser capaz de suportar a contemplação do ser
e da parte mais brilhante do ser. A isso chamamos o bem.
Ou não? -
Chamamos.
- A educação
seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais fácil e mais eficaz
de fazer dar a volta a esse órgão, não a de fazer obter a visão, pois já a tem,
mas uma vez que ele não está na posição correta e não olha para onde deve,
dar-lhe os meios para isso (…) (PLATÃO, 1993, 518 C-D).
Textualmente,
a composição da canção de Ednardo começa com os versos “Olha o padeiro
entregando o pão / de casa em casa, entregando o pão”. A referência inicial é a
dos “padeiros” (como eram chamados os sócios da Padaria Espiritual)
distribuindo o “Pão” (o folhetim cultural da padaria) de porta em porta. A
idéia de criar uma espécie de “padaria” para produzir cultura e conhecimento,
para gerar/produzir um pão para alimentar o espírito dos necessitados,
parece-nos que brotou de um ''insight'' do gênio inventivo de Antônio Sales, no
momento em que o romancista e poeta degustava um pão. Nascia dali a idéia de
fabricar um pão para alimentar o espírito do povo, concebido como metáfora da
multiplicação do conhecimento. Certamente é dessa relação metafórica, mais filosófica
e cultural do que religiosa, que se alimenta a construção do texto musical de
Ednardo.
3. A PADARIA
ESPIRITUAL E SEU ESTATUTO
Todavia, em se
tratando de Padaria Espiritual, observemos que, indo além de uma “alimentação”
despretensiosa, a proposta cultural daqueles aludidos padeiros traz inerentes
marcas de pioneirismo e pré-modernidade, uma vez que, numa época marcada pelo
academicismo da literatura (1892-1896), é possível notar no gesto cultural e
pedagógico o traço transgressor que dá forma às manifestações públicas e
privadas realizadas pelo grupo, que enfatiza a rigor a defesa do localismo e a
aversão ao estrangeirismo, em especial o francês. Isso, notadamente, na esteira
da dinâmica movimentação sócio-politica e cultural da transição do século
XIX para o XX (nossa passagem da Monarquia para a República). A defesa desses
pontos de vista aludidos, que nitidamente antecipam ideias do nosso modernismo
literário, fica patente no Estatuto da Padaria Espiritual, publicado com
quarenta e oito (48) artigos nas páginas do Pão. Contrariando o espírito
cultural do período, este Estatuto pregava, por exemplo, a proibição do uso de
palavras estranhas à língua vernácula, no artigo 14, e a recusa do tom oratório
(tão ao gosto dos parnasianos) nas palestras e publicações, pretensão do artigo
11. Todavia, seguramente os dois artigos que davam maior seriedade à agremiação
eram os seguintes:
02) A Padaria
Espiritual se comporá de um Padeiro-Mor (presidente), de dois Forneiros
(secretários), de um Gaveta (tesoureiro), de um Guarda-livros na acepção
intrínseca da palavra (bibliotecário), de um Investigador da Coisas e das
Gentes, que se chamará Olho da Província, e demais Amassadores (sócios). Todos
os sócios terão a nomeação geral de Padeiros. […]
21) Será
julgada indigna a publicação de qualquer peça literária em que se falar de
animais ou plantas estranhos à Fauna e à Flora brasileiras […]
Embora
nitidamente adotando um ideário nacionalista de oposição ao pensamento do
colonizador, e a despeito da empolgação própria dos discursos juvenis, esses
rapazes não negaram o valor dos grandes escritos e dos pensadores anteriores,
como Goethe e suas obras, além de Shakespeare, Dante, Hugo, Camões, Homero e
José de Alencar, tomando-os também como referência e mostrando o caráter
consciente da agremiação, uma vez que, assim, recusava-se qualquer nacionalismo
deformado, exacerbado, e compreendia-se num pensamento nacionalista abraçado à
causa da valorização das referências da terra. Certamente, similar ao que foi
feito pela Semana de 1922, estavam com antecipação de três décadas, procurando
amadurecer a vitória de nossa brasilidade, aglutinando parcela salutar dos
conhecimentos europeus, em benefício da construção da identidade nacional; com
o Pão, ofertado diretamente aos cidadãos, na função de veículo dessas valorosas
pretensões didáticas.
4. O PÃO E OS
PERIGOS DO ALÇAPÃO
Com alma livre
e irreverente, a distribuir o “Pão” da cultura em todos os meios de uma
metrópole encantada com o espírito da Belle Époque, esses padeiros negavam a
aristocracia e vestiam seus ideais de irreverência e senso crítico, além
do sincretismo literário, como exemplo de dispersão do saber. Reiteramos: a
idéia da dispersão do saber é a referência mais marcante a seguir, exposta a partir
do título da canção de Ednardo: “Artigo 26”.
Vale aqui lembrar que a canção foi escrita
nos primeiros anos do Regime Ditatorial no Brasil (1964-1984), numa época onde
predominava na Educação uma forte influência externa e uma crescente evolução
do domínio cultural norte-americano sobre o país. Repito aqui os versos
musicados que dizem: “Você já leu o artigo 26; Ou sabe a história da galinha
pedrês?; E me traduza aquele roque para o português; A ignorância é indigesta
pro freguês”. Como já citamos anteriormente, a música de Ednardo, aqui em
análise, veio ao público no LP Berro, de 1976 (Gravadora RCA Victor). Neste
Long Play, de espírito tão próximo da visionária padaria citada, ressalta-se a
necessidade da distribuição da cultura, especialmente a partir da valorização
dos elementos regionais, nada obstante o grito de alerta ainda não tenha sido
escutado pela maioria das pessoas, que preferem, ainda hoje, por
desconhecimento, o encanto das culturas alheias dominantes. Somente escapando desse
encantamento e da “ignorância” é que cada pessoa pode ser livre, como o sanhaçu
da música, citação do pássaro rebelde genuinamente brasileiro; livre para
cantar solto no céu, mas sempre nas asas da educação, porque sem instrução e
sem cultura o cidadão torna-se uma presa fácil da manipulação do sistema
sociocultural. Como diz o texto: “Você queria mesmo é ser um sanhaçu; Fazendo
fiu e voando pelo azul; Mas nesse jogo lhe encaixaram, e é um loucura; Lá vem o
padeiro, pão na boca é o que te cura."
Como a ousada aventura contava com alguns
contraditórios – especialmente daqueles para quem a instrução do povo sempre
foi algo assustador –, para os padeiros havia o receio de entregar o
"Pão" naquela casa e ser alvo de violência verbal ou contestação. É
por isso que se diz "Menos naquela, aquela, aquela, aquela não; Pois quem
se arrisca a cair no alçapão?". E alçapão, um termo tão usual no período
posterior ao AI-5 no Brasil, quando predominaram as prisões de intelectuais nos
porões e alçapões do Estado opressor.
Ainda sugerindo ideais de liberdade é que a
canção exalta a tríade “Igualité, Fraternité e Liberté”, paradigmas cultuados
pela Revolução Francesa, mas menosprezados cotidianamente, na prática, pela
burguesia já vitoriosa. No caso do exercício de distribuição da cultura pelos
“padeiros”, o “educando” agradecia o "Pão" recebido, em francês,
idioma à moda na época (Merci bocu, merci bocu – Obrigado, obrigado), ao que o
padeiro respondia, inicialmente em francês (Nê pa dê qua, nê pa dê qua – de
nada, de nada), sugerindo passos de balé (padê burrê), para depois
sublinhar em português que "não há de quê!", após citar de modo
brejeiro, os passos em francês de nossa quadrilha matuta: “anavantu, anavantu,
anarriê”.
5.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para além de uma mera homenagem, a composição
de Ednardo abraça uma mensagem bem mais didática e filosófica. Como Orlandi
(2002, p. 95) afirma, “a linguagem não é jamais inocente”; ou seja, ela não se
mostra ou se apresenta como neutra. Pelo contrário, sempre há algo a mais a ser
dito, além do que está exposto nas palavras que compõem o “dizer”, e
atravessando os sentidos possíveis, porém escondidos nas entrelinhas.
Ainda mais se tratando de obra realizada no período em questão, oriunda de um compositor
tão polissêmico. Um compositor que, embora pouco acionado pelos atuais veículos
de mídia, mantém público fiel, que mais se aproxima da sua obra com o
hoje estrondos o avanço da internet. E para Ednardo, certamente o
que muito caracteriza seu pensamento é a marca inconteste de nunca ter se
reconciliado candidamente com o mundo em que vive, construído por desigualdades
econômicas e sócioculturais. Na composição em foco, sobressalta claramente sua
verve desconcertante, resgatando a utopia didática dos padeiros da Padaria
Espiritual e confirmando, num tempo onde quase todos os valores assumem
identidade de produto, a sua marca de permanente desafiador de ideias
prontas.
6. REFERÊNCIAS
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Ednardo Soares Costa. Letras, de Ednardo. Disponível em: <http://www.letras.com.br/ednardo>
Acesso em 27/11/2016.
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzagueano José Romero de Araújo Cardoso.
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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