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quarta-feira, 26 de julho de 2017

LAMPIÃO O REI DE UMA FACÇÃO CRUEL

Por Alan de Farias

Conhecido por ataques horripilantes no cangaço, Virgolino Ferreira da Silva usou e abusou das ferramentas de comunicação do começo do século XX a fim de ser mais reconhecido como Robin Hood à Brasileira do que um vilão. 

“Lampião gostava de se sentir um coronel entre coronéis e tinha entre estes muitos protetores. Foi igualmente cruel com ricos e pobres que ousaram descontentá-lo e tiveram a infelicidade de cair nas suas mãos.” É com essas palavras que a historiadora e escritora Isabel Lustosa descreve Virgulino Ferreira da Silva no livro De olho em Lampião – Violência e esperteza (Claroenigma). De 1919, ano em que inicia sua carreira no cangaço, até 1938, quando seria assassinado, aos 40 anos, em 28 de julho, por soldados na Grota de Angico, no atual município de Poço Redondo, no Sergipe, Lampião se tornaria uma das figuras mais conhecidas no país. E não por seu caráter benevolente. Na realidade, longe disso.

Pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, Isabel destaca que, ao longo de quase 20 anos, o rei do cangaço, título que acabou ganhando devido ao seu domínio no sertão nordestino na primeira metade do século 20, carregaria em seu currículo as manchas de diversos crimes. Entre eles, o assassinato e a tortura de pais de família e jovens rapazes, o estupro e sequestro de mulheres e a destruição de fazendas. Sem contar o roubo de economias de gente simples, acentuando a miséria dessas famílias. 


Se por ventura, em algum momento, distribuiu dinheiro para os mais necessitados, sendo considerado uma espécie de “Robin Hood à brasileira”, foram apenas moedas, obviamente mais pesadas para carregar em uma vestimenta típica de um cangaceiro, que incluía cartucheira, um rifle, uma pistola, um punhal, várias bolsas e duas cobertas. O cangaceiro, vale ressaltar, realizava uma espécie de pagamento. Neste caso, aos coiteiros, como são chamados aqueles que forneciam a ele e ao grupo que liderava moradia provisória ou informações sobre possíveis ataques de soldados e policiais. Mas esses poderiam ser os mais pobres, os coronéis ou até mesmo os políticos do sertão nordestino, que temiam a ferocidade cangaceira.

Segundo a antropóloga da Universidade de São Paulo Ana Claudia Duarte Rocha Marques, Lampião era um líder poderoso e rico, mas sem terras e sem partido político, com movimentos inesperados. “Essa imprevisibilidade lhe conferiu seu caráter tático mais importante. Os momentos de parada aumentavam a vulnerabilidade do bando. A ideia de ‘movimento’ neste caso precisa ser encarada um tanto literalmente, e menos no sentido mais sociológico que o termo tem entre nós”, afirma ela, autora de Domínios de Lampião: nomadismo e reciprocidade.

Devido a essa característica nômade, Lampião e seu bando deixaram marcas em ao menos sete Estados nordestinos (Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará). Para Wescley Rodrigues Dutra, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras, naquele período a opinião dos moradores desses locais era unânime: o rei do cangaço e seus seguidores nada mais eram do que bandidos sanguinários, feras que atentavam contra a honra e a propriedade. 

Um fato curioso, por outro lado, aconteceu em 1926, quando Virgulino passou alguns dias na cidade cearense de Juazeiro do Norte, onde se encontrou com Padre Cícero, a quem admirava, e deu uma entrevista ao periódico O Ceará. Ele e seus comandados foram enviados para lá para combater a Coluna Prestes, movimento liderado por jovens militares insatisfeitos com a República Velha. O confronto não aconteceu, mas Lampião provocou um alvoroço na região: cerca de 4 mil pessoas se concentraram ao redor da fazenda onde ele passava as noites.

“A população que se amontoou na frente do sobrado onde o cangaceiro estava hospedado o fez mais por curiosidade do que por adoração ou admiração. A ‘fera’ estava na cidade, estava mansa, pacífica, controlada. Queriam saber se realmente ele seria tudo aquilo que afirmavam as notícias que vinham dos mais longínquos sertões”, diz Dutra, autor de Nas trilhas do ‘rei do cangaço’ e de suas representações.




OLHA A POSE! 


Virgulino era uma personalidade da época. Uma celebridade, se o termo já fosse popular como é nos dias de hoje. E isso não se devia somente às verdades ou às lendas relacionadas aos ataques que protagonizava. Ele era, desde os anos 1920, notícia em jornais e revistas, onde fotos do pernambucano, nascido em 1897, em Serra Talhada, de estatura mediana, com um defeito no olho direito, letrado e extremamente vaidoso, eram publicadas. “Fotografia era um recurso reservado a poucos nesse período e região. Somente as famílias mais abastadas preservam fotografias daquele período. Assim, o próprio fato de ser fotografado e filmado é sinal de seu prestígio e fama”, salienta Rocha Marques. “Acho Lampião um grande assessor de imprensa de si. Ele era vaidoso e trabalhava sua imagem com muita consciência ideológica, o que o levava a ter outros benefícios de negociação e atuação”, completa Matheus Andrade, professor do curso de cinema e audiovisual da Universidade Federal da Paraíba e autor de A saga de Lampião pelos caminhos discursivos do cinema brasileiro.

Fernando Sá, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe e autor de Lampião revisitado: cangaço, cinema e identidade, lembra que, durante o período em que atuou como principal líder nos sertões nordestinos, Virgulino fez questão de registrar alguns momentos marcantes de sua vida. Cita, por exemplo, “a ascensão à liderança do grupo de Sinhô Pereira [outro famoso cangaceiro nordestino] em 1922; a visita a Juazeiro do Norte, em 1926; o encontro com Eronildes de Carvalho [capitão do Exército brasileiro, que seria coiteiro de Lampião em Sergipe], em 1929; a entrada das mulheres no cangaço [entre elas, Maria Bonita, que viria a ser mulher de Lampião], nos anos 1930; e a visita de Benjamin Abrahão. Este último, um mascate sírio-libanês, seria responsável por registrar, no ano de 1936, algumas das mais icônicas e célebres imagens de Virgulino. “Um dos maiores desejos do Benjamin era filmar e fotografar um combate entre os cangaceiros e as forças volantes [que lutavam contra os integrantes do cangaço]. No entanto, Lampião nunca permitiu tal feito, talvez por saber a carnificina que era um combate, com troca de insultos e mesmo atos de tortura e bestialidade desumanas. Dessa feita, se o grande público tivesse contato com tais imagens, sem sombra de dúvidas, isso contribuiria para piorar a concepção que havia sobre os cangaceiros”, afirma Dutra. 

O pesquisador acredita que a mensagem central que o cangaceiro buscou passar ao longo da filmagem e da fotografia era a de pessoas felizes, realizadas no exercício da sua “profissão”, banqueteando-se com farta comida, mesmo isso sendo raro, divertindo-se por meio de festas e danças nas veredas da caatinga, recobertos de joias e roupas extravagantes e exóticas. “Ele queria passar a imagem de que era um homem comum, amigável, bom líder, vaidoso, alegre, valente, forte, amoroso com a sua Maria Bonita, bom pagador e amigo daqueles que o ajudavam.”

O filme de Abrahão foi censurado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, que criara o Departamento de Imprensa e Propaganda com o objetivo de controlar a comunicação que atuava em todo o país – acredita-se que tenham sido as próprias forças do governo federal que executaram Abrahão dois meses antes da morte de Lampião, embora o crime nunca tenha sido esclarecido. Suas filmagens dos cangaceiros só apareceriam nos anos 1960, quando a película, como lembra o pesquisador da UFPB, foi encontrada e restaurada. No longa Memórias do cangaço, dirigido por Paulo Gil e lançado em 1964, tais imagens seriam colocadas em circulação. E, desde então, reutilizadas em filmes como Corisco e Dadá (1996), de Rosemberg Cariry, Baile perfumado (1996), de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, e Os últimos cangaceiros (2011), de Wolney Oliveira. Tamanho interesse em torno da figura pública de Lampião fez com que ele se tornasse o personagem da história do Brasil que mais vezes foi narrado pelo cinema nacional. 




ETERNAMENTE LEMBRADO

Lampião e seu bando tinham uma série de táticas para, mesmo muitas vezes em menor número em relação aos soldados ou aos policiais, garantirem vitórias nos combates no sertão nordestino. Para isso, valiam-se de artimanhas possíveis de comparação às de grupos criminosos da sociedade brasileira contemporânea, como o PCC (Primeiro Comando da Capital) ou as facções das comunidades cariocas. Entre elas, a escolha de lugares inacessíveis para se esconderem, a manutenção de informantes e a união com outros bandos para assaltos grandiosos.

Para Dutra, o contexto social produtor do cangaceiro sertanejo, marcado pelo domínio político dos grandes latifundiários, pela derrocada da economia açucareira e pelas severas secas, é totalmente díspar da que produz as organizações criminais atuais. “No entanto, se poderia dizer que há um único ponto em comum, que seria a incapacidade do Estado em criar mecanismos eficazes promotores de dignidade humana. Seja nas favelas atuais ou no sertão de outrora, esses espaços refletem a ausência de políticas públicas em prol da população e o desinteresse dos representantes estatais em ouvirem o clamor que emanou e emana desses lugares”, acredita.

Quanto a essa discussão, Andrade concorda que tanto os cangaceiros quanto o PCC ou o Comando Vermelho, por exemplo, podem até se organizar de maneira parecida. Por outro lado, questiona a popularidade dos líderes desses últimos grupos. “Será que as organizações criminosas de hoje construirão personagens históricos como Lampião?” Só o tempo ou, tomando como exemplo a própria vida do rei do cangaço, os jornais, o cinema, as fotografias, as verdades ou as lendas dirão.



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