Texto e ilustrações: Leandro Valquer
Maria Déa, popularmente conhecida como Maria Bonita, foi uma sertaneja baiana, natural da cidade de Santa Brígida*, fruto legítimo da fazenda de Caiçara, que se tornou uma das figuras mais emblemáticas da história da Bahia. Viveu a infância comum das meninices de sua época e de sua classe social na caatinga, entre os irmãos e a parentalha, divertindo-se no balanço dos arvoredos e nas brincadeiras de roda ou com bonecas de sabugo de milho vestidas de chita. Vez por outra, gastava a infância no labor modorrento das roças da família. Maria Déa casou-se bem jovem com o primo, o sapateiro José Neném. Cultivaram no casamento vasto pé de briga, com esparsas separações em que Maria refugiava-se na casa dos pais. Num destes retiros de Maria, por volta de 1929, Lampião rondava pelas cercanias de Santa Brígida, quando, surpreso, deparou-se com Maria Déa, ficando encantado, enlouquecido com sua beleza. Durante um ano, Lampião vagou apaixonado pelas redondezas da fazenda, visitando-a regularmente. Aí é que nasceu o personagem Maria Bonita, a bandoleira que Virgulino amaria até o fim da vida, a primeira cangaceira batizada pela mão de Lampião, num bando que era estritamente masculino.
A entrada de Maria Bonita no bando, com festiva e calorosa recepção de baile perfumado, estimulou o aparecimento de um numeroso e crescente séquito de mulheres guerreiras que mudaram o modo de vida no cangaço. Após a chegada de Maria Bonita, viriam Dadá, Lídia, Inacinha, Maria de Juriti, Verônica, entre outras. Os pequenos grupos relativamente autônomos, chefiados por diversos cangaceiros, ganharam características mais familiares. No chapéu de couro de Lampião, apareceu bordado com moedas de ouro a palavra amor. Maria Bonita foi a única pessoa que teve forte ascendência sobre Lampião, e é este signo de mulher firme e libertária que, de certa forma, modelou o comportamento das demais cangaceiras.
PEQUENA GÊNESE DO CANGAÇO
Nada, nem ninguém, impunha limite à criatividade efervescente daquele bando que perambulava incansável debaixo de sol e chuva, através dos sertões dos Estados nordestinos: ora como mendigos maltrapilhos das agrestes veredas sem futuro, ora como pomposa e perfumada corte cigana reluzente de ouro e pedras preciosas, porém, sempre portando a canga, seu penduricalho belicoso de armas e munições que deram nome à espécie cangaceira, isto é, os que carregam os apetrechos de guerra.
Foi por volta de 1877 (mas existem rastros do cangaço já em 1770, com atividades do bando de Cabeleira), durante a grande seca que culminou em grandes convulsões sociais, que se espalharam os primeiros rumores sobre esses bandos, que se opunham ferozmente à ação armada de mercenários que se agrupavam em milícias sob o mando e desmando de políticos, fazendeiros, coronéis, grileiros e latifundiários sedentos por fortuna. Lembrando que cangaceiros nunca tiveram teoria, projeto, nem visão política reformista ou revolucionária. Eram insubmissões, revoltas espontâneas, imediatas, movidas geralmente por desejos de vingança, como inicialmente ocorreu a um dos precursores desses bandos, Antônio Silvino, que buscava vingar o pai assassinado por uma dessas milícias. Entretanto, revolucionários ou não, o escritor Ruben Braga enfatizou o seguinte comentário no Diário de Pernambuco em 1935: “O cangaceiro é um homem que luta contra a propriedade, é uma força que faz tremer os grandes senhores feudais do sertão. Se alguns desses senhores se aliam aos cangaceiros, é apenas por medo, para poderem lutar contra outros senhores, para garantir sua própria situação.
Ora, para as massas pobres e miseráveis da população do nordeste, a ação dos cangaceiros não pode ser muito antipática. É até interessante.” Só lá pelos idos de 1920, é que vem à tona a figura lendária de Lampião, reformando e estabelecendo um código de honra muito peculiar no cangaço, com ritos de passagem e religiosidade próprios, fazendo do cangaço um estilo de vida e uma profissão, paramentando o cangaceiro com uma indumentária muito característica e ostentatória, e de uma soberania e autoestima que colocava o cangaceiro, chefe de grupo, num poder de negociação à altura de coronéis e autoridades locais, mesmo que na clandestinidade, e desprovidos do aparato jurídico. A imagem pública do cangaço nos meios de comunicação oficial ficava sob a vigilância e censura do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão que controlava a informação na ditadura Vargas, mas a literatura de cordel também informava – de maneira mais livre – acerca do paradeiro de cangaçeiros e suas novas aventuras.
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