By: Rostand Medeiros
Quem nasce no Rio Grande do Norte, gosta de ler livros interessantes, de aprender sobre fatos, pessoas e coisas que valham a pena serem conhecidos, dificilmente vai deixar de ler alguma referência, algum livro, ou mesmo episódios da vida de Luís da Câmara Cascudo (1898-1986).
Luís da Câmara Cascudo
Felizmente para este leitor, ele estará diante de toda uma plêiade de obras que vão dos estudos folclóricos, as pesquisas históricas, antropológicas, etnológicas, sociológicas e de outras áreas do conhecimento.
Este grande pesquisador das manifestações culturais brasileiras deixou um extenso material cujo conjunto é considerável em quantidade e qualidade, onde mais de trinta dos seus livros são listados como essenciais ou no mínimo importantes para muitas áreas da pesquisa.
Mesmo tendo passado toda sua vida na provinciana Natal, distante dos grandes centros culturais do país, Cascudo obteve reconhecimento nacional, internacional e sua obra ainda não foi superada.
Romance de Costumes
Como leitor contumaz do “Mestre Cascudo”, como ele é conhecido pelos potiguares, na sua vasta produção li poucas referências às cavernas, a espeleologia e seus assuntos correlatos. Até então tinha lido somente pequenos apontamentos sobre lendas envolvendo cavernas, a utilização de nomes ligados a espeleologia na toponímia de pontos geográficos pelo Brasil afora e outras referências. Imaginava que para Cascudo, a espeleologia e o universo de assuntos que rodeiam esta área do conhecimento eram limitados. Talvez um assunto que não tenha despertado o seu interesse?
Foi então que um amigo me apresentou um livro que o próprio autor definia como um “romance de costumes”, o único escrito por ele. Este livro é “Canto de Muro”.
A primeira edição em 1959.
Confesso que depois de ler “Geografia dos Mitos Brasileiros”, “História da Cidade do Natal”, “Dicionário do Folclore Brasileiro”, “Viajando o Sertão”, “Vaqueiros e Cantadores” e outras maravilhas do universo de Cascudo, aos quais tenho como referências obrigatórias em minhas pesquisas, eu não me animei em conhecer este “Canto de Muro”. Imaginava esta obra como sendo uma viagem literária do pesquisador, por uma área das letras “nunca d’antes navegada”.
Comecei a folhear o livro, onde os personagens que se apresentavam a minha frente eram um escorpião chamado “Títius”, ou a aranha “Licosa”, ou ainda a lagartixa “Vênia” e outros. Após o exame inicial, fiquei com vontade de devolver na mesma hora o objeto oferecido.
Mas como este amigo havia tido a gentileza de me emprestar seu livro, me entregando com um largo sorriso de satisfação no rosto, tive vergonha de devolvê-lo.
Em todo caso imaginei ir para casa aproveitar o “Canto de Muro” para contar algumas “historinhas de animais” para minha filha Tainá, de apenas sete anos de idade e entretê-la na hora de dormir.
Ao folhear mais calmamente o romance de Cascudo, imaginando a “historinha” mais interessante para contar, quem verdadeiramente foi ficando no “Canto do Muro” fui eu.
O livro é verdadeiramente maravilhoso.
Cascudo fez um “romance de costumes”, mas de animais.
E que animais são estes? A maioria são justamente as espécies menos enaltecidas pelo homem. São aquelas que vivem literalmente no “Canto de Muro”. Passeiam por suas páginas aranhas, besouros, ratos, baratas, cobras, escorpiões e outros que vivem escondidos nos quintais das casas velhas, entre troncos decaídos, buracos, ripas, tijolos quebrados e em outros locais que são rejeito e entulho da desenvolvida humanidade.
O autor age unicamente como um narrador, em meio a uma primorosa escrita, aonde vai trazendo de forma romanceada, os aspectos naturais destes animais. Os capítulos se seguem como se fossem uma descrição feita em uma caderneta de campo de um pesquisador atento e minucioso. Cascudo comentou que desde cedo fora seduzido pela história natural, que foi se aprimorando quando captou, e anotou os episódios da vida dos protagonistas do livro. Ele realizou estas anotações, principalmente nos jardins e quintais da casa paterna, a chamada “Vila Cascudo”.
Com o passar do tempo, o homem crescia, mudanças surgiram em sua vida, seus caminhos literários se expandiam, mas nunca deixou de observar e anotar, desinteressadamente, o comportamento de alguns animais.
“Quiró”
Para minha satisfação, entre os animais observados e descritos por Cascudo, está o mais representativo membro da fauna cavernícola, os morcegos.
No terceiro capítulo vamos encontrar “O Mundo de Quiró”, onde o autor inicia com a citação de certo “Sr. Hemenegildo”, proprietário de um pomar em Natal, que resoluto questionava;
“- Faça-me o favor de dizer: para que Nosso Senhor fez o morcego?”
Logo após o escritor mostra uma das características mais conhecidas dos quirópteros, a forma como descansam;
“Quiró está com as unhas dos pés fincadas numa saliência da parede, voltado para ela, e com a cabeça para baixo, dormindo. Não sei de outro vivente que durma desta maneira. Dorme todo o dia e detesta a luz e mesmo as cores garridas e atraentes.”
Vai descrevendo de forma clara e simples o único mamífero voador, comparando-o a outros animais e de como utilizava suas características naturais.
Em meio a deliciosas informações biológicas, que certamente podem fazer muitos cientistas desta área torcerem o nariz, Cascudo afirmou que suas observações sobre os morcegos foram feitas em expedições noturnas no centro de Natal, nos bancos da tradicional Praça Sete de Setembro, defronte ao antigo Palácio do Governo.
Cascudo não estava escrevendo um chato, monótono e, como muitos realizam, inútil texto acadêmico. Suas informações fluem de uma maneira tranqüila, fazendo com que o leitor, de forma fácil, conheça sobre o peculiar mundo destes animais.
Como de praxe em suas obras não faltam citações explicativas de figuras históricas, como a do naturalista e escritor francês, George Louis Buffon, que tinha otítulo de conde de Leclerc (1707 – 1788), que afirmava serem os quirópteros “mais um capricho que uma obra regular do Criador”.
Lembrava o jesuíta e naturalista italiano, Lazzaro Spallanzani (1729 – 1799), aquele que em 1756 cegou quatro morcegos, colocou todos em um quarto escuro, com uma teia de fios verticais embebidos em forte visgo, para assim prender os pequenos animais ao menor esbarrão e, mesmo sem compreender, percebeu que os morcegos conseguiam se desviar dos finos obstáculos.
Ou uma citação do também naturalista francês, Georges Cuvier (1769 – 1832), que descreveu aspectos da gênese destes mamíferos e em 1797 batizou a família dos morcegos com o termo “quiróptero”.
Afirmava que o mamífero estava em terras brasileiras desde o início dos tempos, mas comentava com certa decepção que estes animais não tinham mito, ou lenda na memória popular no Brasil, servindo “apenas para fantasias de carnaval”.
Cascudo não procurou desfazer a triste lenda que afirmava “serem os morcegos, uma evolução dos roedores mortos”. Mostrava inclusive as ligações que havia entre os termos “morcego” e “rato” nos idiomas inglês, alemão e francês. Mas não fechou a questão da falsa evolução voadora dos roedores e deixava o tema em aberto.
Outra faceta dos quirópteros que o autor comentou, foi em relação ao sentido de orientação destes animais. Apontando que milhares de anos antes, estes já possuíam um radar.
Cascudo, a Cobaia dos “Morcegos-Vampiro”
Entre as espécies deste mamífero, a que mais chamou a atenção do folclorista foram os membros da família dos morcegos-vampiro (Desmodus rotundos). Cascudo buscou detalhar a forma como estes estranhos animais agiam em busca do seu alimento. Lembrou que foi o cronista português Gabriel Soares de Sousa, em seu “Tratado Descritivo do Brasil em 1587”, o primeiro estudioso a analisar a ação dos morcegos-vampiro.
Cascudo chega a afirmar que em algumas ocasiões, em locais onde proliferavam estes mamíferos, o famoso folclorista chegou a dormir despido da cintura para cima, na intenção de se transformar em cobaia. Seu desejo era conhecer os mecanismos do analgésico que estes animais utilizam para manter a vítima adormecida enquanto retiravam sangue.
Devido à tez bastante clara da sua pele e sua compleição forte, o pesquisador era um alvo fácil para estes quirópteros. Mas afirmava decepcionado que nunca foi mordido. Ele não podia então “dar seu depoimento pessoal sobre a ação destes mamíferos”.
Contudo informa que em uma ocasião viu um destes animais “saborear” o sangue de um jumento “Catolé” e este nem dar atenção ao banquete que faziam nele. Relembrou que no antigo Brasil colonial, os homens do campo atribuíam ao “Saci-Pererê”, a responsabilidade pelas sangrias nos pescoços e dorsos dos diversos tipos de alimárias que eram utilizados nas antigas fazendas.
Para quem gosta da espeleologia e não tem medo de quirópteros, o terceiro capítulo de “Canto de Muro” é uma ótima pedida de leitura.
Luis da Câmara Cascudo, nas últimas páginas, confessa que esta obra parecerá estranha aos que haviam lido seus trabalhos anteriores. Ele não pensava em publicá-lo, se assim o fizesse seria com um pseudônimo. O amigo e editor José Olympio aceitou as condições, mas a família e outros amigos convenceram-no a assinar o “Canto de Muro”.
Lançado em 1959, quando o autor tinha então setenta e três anos foi um sucesso e uma surpresa para a intelectualidade brasileira. Este livro teve mais três edições, todas acolhidas de forma positiva por parte do grande público, principalmente aqueles que não se entregam ao cotidiano, que com olhos atentos sempre focalizam as coisas naturalmente interessantes. Mesmos as pequenas.
P.S. – Desde 1990 que participo de grupos dedicados ao conhecimento e preservação de cavidades naturais no Rio Grande do Norte, visitando estes ambientes na Região Oeste do estado e vendo muitos morcegos. Na foto abaixo estou na Gruta Três Lagos, no município de Felipe Guerra.
Foto - Solón R. Almeida Netto.
Extraído do blog "Tok de História", do historiógrafo e pesquisador do cangaço: Rostand Medeiros
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