Por: Rangel Alves da Costa*
AMIGO TROGLÓ, O DAS CAVERNAS
Conheci Trogló quando eu ainda estudava o ginasial ou coisa parecida, naquela época em que o estudo era dividido em séries ou anos. E foi durante uma aula de história que o avistei pela primeira vez.
Durante uma lição, estava folheando o velho livro didático na parte que tratava acerca dos primórdios da humanidade, mas precisamente sobre os períodos históricos do homem. Como o texto possuía muitos desenhos exemplificativos, de repente me deparei com o amigo que conservo até hoje.
Estava ele lá desenhado todo disforme, cabeludo, coberto com poucas roupas de pele de animais, acocorado junto a uma fogueira encimada por um animal estirado em vara para assar, com um instrumento feito de osso à mão e tendo ao fundo uma caverna. A etapa era o da pré-história, o período o do paleolítico, a idade a da pedra lascada, e o nome do meu amigo a partir daquele momento passou a ser Trogló.
Trogló porque no momento lembrei-me dos trogloditas, homens primitivos que viviam em cavernas nos tempos antigos. Contudo, o mais interessante é que gostei tanto do desenho que acabei arrancando a página do livro e colando-a bem ao lado do guarda-roupa do meu quarto. Todos os dias, até por diversas vezes, eu ia olhar o desenho e imaginar como seria viver naqueles tempos.
E não durou muito e eu já conversava com a figura de Trogló como se ali estivesse um amigo em carne e osso, de verdade. O tempo foi passando e a amizade aumentando, até que um dia comecei a sonhar com o estranho primitivo. No sonho, o acompanhava em caçadas, batendo pedra em pedra, friccionando para sair faísca e queimar garranchos, fazendo surgir enormes fogueiras, se lambendo deliciosamente com pedaços de javali apenas chamuscados de fumaça.
Mas numa noite o sonho veio mais estranho ainda. Depois de jogar ao lado da fogueira um animal que trazia às costas, virou-se e começou a grunhir como se quisesse falar comigo, apontando na minha direção. Falava, pulava batendo no peito, e depois apontava. Já no sonho seguinte disse, falando claramente, que um dia me faria uma visitinha.
Estava tão acostumado que não tive medo. No outro dia não sosseguei esperando a visita do amigo Trogló. A todo instante ia até o desenho avistá-lo e depois corria até a janela para olhar adiante; ficava atendo para ouvir se alguém batia na porta, e até debaixo da cama olhava de vez em quando. Contudo, passaram-se mais de trinta anos sem que o visitante aparecesse. Uma decepção que não me tirou totalmente a esperança de um dia encontrá-lo.
Os sonhos foram rareando, quase não surgindo mais, mas de vez em quando eis o amigo dizendo que não havia esquecido a visitinha. Mudei de casa, de cidade, mudei minha vida completamente, pois já exercendo profissão, mas nunca deixei nem de conversar com o desenho nem de esperar Trogló aparecer a qualquer momento.
Até que um dia, sem que eu possa nem de longe imaginar como aquilo pôde acontecer, eis que o estranho visitante surge no meu quintal. Assim que abri a porta cedinho e lá estava o primitivo da pedra lascada acocorado, com as mesmas vestimentas – ou quase nenhuma - e feições mostradas no desenho. Olhou em minha direção e atirou um enorme pedaço de osso que quase me acerta de cheio. Era o seu jeito de cumprimentar e presentear.
Depois levantou, e talvez também tendo sonhado comigo lá por onde vivesse, começou a falar a mesma língua que eu não conseguia pronunciar no momento. Antes que eu dissesse alguma coisa, se antecipou e falou que havia demorado mas não havia esquecido o prometido, e por isso mesmo estava ali.
Contudo, ainda diante de minha mudez espantada, prosseguiu dizendo que só havia aparecido agora mas já estava pelos arredores, passando de lugar a lugar, desde muito tempo, a mais de trinta anos andando de lado a outro. E o seu último lugar de visita seria ali, pois dali mesmo iria embora sem nem olhar pra trás.
Com o aparecimento da voz, pude então perguntar por que já ia embora assim sem ao menos querer olhar pra trás. E ele respondeu: “Pensei que a humanidade havia progredido, mas não. Todo mundo estuda para conhecer o jeito rude, grosseiro e até violento que o homem primitivo vivia. No entanto, não troco minha pedra lascada pela modernidade. A gente só tem a pedra, o fogo, a água, a caça e a caverna para morar. E vocês têm de tudo, e têm até demais. Mas para que serve, se humanamente não progrediram nada?”.
E foi embora em seguida. E teve razão em ir embora daquele jeito tão desgostoso. Também não entendo o que nós, ditos civilizados, fazemos aqui. Qualquer dia desses vou embora também. Juro que uma caverna é bem melhor do que o muro baixo do vizinho ou a janela que se abre do outro lado da rua.
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
Parabéns, Rangel, pela sua excelente crônica, o TROGLÓ.
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