Por Paulo
Vanderley
Um mês depois
da morte do pai, Luiz Gonzaga, Gonzaguinha fez uma viagem de carro de Recife a
Exu. À noite, ligou o gravador e de uma só vez descreveu em relato emocionado e
preciso o que foi para ele a morte e o enterro do pai querido.
(Publicado no livro Gonzaguinha e Gonzagão - Uma História Brasileira de Regina Echeverria.)
-- Há
exatamente 30 dias eu estava indo por outro caminho, mas a lua era a mesma e
tinha uma estrela muito mais brilhante. O céu estava muito mais aberto. O
entardecer no sertão é bonito demais, faz a gente morrer de amores por esta
terra, mesmo não conhecendo profundamente. Trinta dias atrás acordei às 5h20 da
manhã, não sei porque, mas acordei. Dormi mal, tinha que me preparar para
voltar para casa. De repente tocou o interfone e eu pensei direto: pois é, meu
pai morreu! Acho engraçado essas coisas da gente saber antes o que vai
acontecer. Foi uma surpresa. Mas nenhum de nós esperava que ele morresse tão
rápido. Os médicos já tinham falado que poderíamos ter uma surpresa, mas a
gente sempre leva isso para o lado bom.
Daí tomei um banho calmamente, avisei as pessoas, peguei o voo Vasp 190, dona Eunice parou ali e lá fui eu. Fiquei com muita pena dela. Falei rapidamente com ela no aeroporto e quando ela foi me deixar na boca do avião ela perguntou de novo: mas o que está acontecendo? Falei baixinho no ouvido dela: meu pai morreu!
Cheguei a Recife por volta de meio dia, peguei um táxi, passei pela casa de Bira (?), bati um papo rápido com ele, peguei o carro com Vavá e fui para a Assembleia. Tudo em volta respirava Luiz Gonzaga. Uma rádio especial falava do trajeto, o corpo tinha ido para ser embalsamado e já estava seguindo para a Assembléia por outro itinerário.
E lá íamos nós, por dentro de Recife. Estacionamos perto do Palácio das Princesas, para evitar tumulto, fomos a pé, atravessamos a ponte e já podíamos ver o carro do Corpo de Bombeiros e a multidão em volta. Atravessei o rio calmamente olhando o acontecimento. Fui me aproximando da Assembléia, quando eu estava praticamente na esquina, o caixão de meu pai começou a descer do carro do corpo de bombeiros. Parei e fiquei olhando. O povo é muito bonito de se ver e de se olhar, de se sentir, de se entender. Fiquei parado olhando. E vi quando uma moça falou: aquele ali é o Gonzaguinha, o filho do Gonzagão!
Todo mundo ficou quieto. Esperando o caixão descer do carro. Dei a volta, entrei, encontrei representantes da Secretaria de Cultura, encontrei Edelzuita, conversamos, vi como estava a situação toda, fiquei no meu canto. As pessoas já começavam a visitar o corpo do meu pai. Bonito mesmo era ver um vaqueiro parado de pé ali na cabeça, como que guardando, como que tomando conta, organizando as pessoas, o caminho por onde passar, por onde ver melhor, apenas com seu silêncio, suas palavras baixas. Ele que já acompanhava o corpo de papai desde o hospital.
E as pessoas paravam, olhavam, seguiam em frente e se benziam. Tinha que falar alguma coisa para as televisões, a velha discussão sobre itinerário. Alguém tinha dito que o corpo de meu pai deveria ser levado de carro de Recife até o Exu. A BR que estou atravessando agora, eu Lelete e Marina, mais uma vez. O prefeito de Caruaru já tinha pedido para entrar na cidade. Claro que todas as cidades teriam direito. Isso era um problema, era uma delicadeza, um carinho. Outra sugestão era ir de avião até Ouricuri, 43 kms de Exu, ficaria mais fácil, simples. Era o desejo de um vereador da região, com uma visão prática, mas que iria contrariar um desejo de meu pai que já tínhamos conversado antes. Conversamos muitas vezes antes sobre a possibilidade da morte.
Eu acredito que normalmente as pessoas não compreendam que meu pai nunca soube o tamanho de seu nome nem a importância dele. E acredito que mesmo que soubesse não ligaria a mínima para isso. Mesmo que fosse uma pessoa vaidosa, bastante vaidosa, que gostava de se vestir bem, de se cuidar bem, de estar bonito, bem aprumado, barba bem-feita, perfumado, cabelo penteado, sorriso brilhante, olho brilhante, igual a uma menina que vai para a festa. Era muito vaidoso, mas não nesse sentido. Se soubesse do tamanho de seu nome não ligaria a mínima.
Então conversávamos muito sobre o que seria o dia em que Luiz Gonzaga morresse. Porque ele foi sempre de sair na rua, conversar com as pessoas, gritar, cantar, chamar a atenção. Ele gostava de chamar a atenção, gostava de ser visto. Fazia parte de sua vaidade.
Então ele me disse: rapaz vai ser muito difícil, porque todo mundo vai querer um pedacinho de mim. Então não quero nem estar na tua pele, porque já sei que você é uma pessoa zelosa, cuidadosa, que vai evitar que as pessoas cheguem junto, porque você sabe que vão querer levar um pedaço não só do caixão, como da minha roupa e se bobear vão pegar um pedaço de mim para levar para casa, para ter de recordação. Mas nós somos assim mesmo, queremos sempre algo mais, alguma coisa palpável, algo para mostrar. Acho que você vai compreender isso. Você é uma pessoa inteligente, sabe do que estou falando. Mas não vou querer estar na tua pele não. Porque comigo vai ser como o padre Cícero, que vendem pedaço da batina até hoje.
Acho que a maneira mais prática de você me levar para lá seria passando sempre por Juazeiro, que é o centro das atenções do nordeste todo, tem nordestino de todos os cantos, a religiosidade está toda ali, ali se resume o Brasil, sim porque as pessoas vão sempre pra pedir alguma coisa. Não entenderam que tem que dar o tempo todo e não pedir antes de dar.
O carro de
Gonzaguinha passa num buraco e ele reclama:
- Esta estrada tem que ser consertada tem que falar com Miguel Arraes sobre isso.
Prosseguiu então com o relato:
Aí falei que ele tinha razão porque praticamente tinha razão sobre todas essas coisas. Ele sempre tinha razão em todas essas coisas. Meu pai sempre foi um profundo conhecedor do Nordeste. Era uma aula de conhecimento. Sempre foi muito agradável andar com meu pai por este país. Sabia muitas coisas. Bastava olhar a placa do caminhão da frente para dizer qual era a cidade, o que tinha lá e sempre uma história. Falava quanto tempo tinha ficado lá, quantos quilômetros ficava da cidade grande mais próxima. Era bem assim, tomava conta de tudo. Mais uma vez concordei com meu pai.
Me alertou: tome cuidado, se eu entrar em Juazeiro, não saio. As pessoas são profundamente devotas, a religiosidade é grande. Eu sei que sou uma pessoa muito querida lá, já fiz música lá. Tenho bons amigos lá. E se eu entrar lá, eu não saio. As pessoas vão querer que eu fique lá ao lado do meu padrinho Cícero. Só que eu não posso ficar lá, minha terra é Exu.
Você tome
cuidado com uma coisa histórica: Crato e Juazeiro nunca se deram bem. Nunca
não, a partir do momento em que Juazeiro se transformou na terra do padre
Cícero começou guerra entre Crato e Juazeiro. Se eu ficar em Juazeiro, o Crato
vai querer pegar meu corpo à força. Porque tive grandes amigos no Crato. Você
pode fazer alguma coisa que reúna as duas cidades. Eu sugeri: o que você acha
de uma missa campal? Reúne Crato e Juazeiro. Ele disse que era uma boa ideia.
Eu disse que o levava de helicóptero até lá, tomando vento fresquinho, passa
por cima da Chapada aí você vai ver mais ainda o lugar que você gosta de parar
na serra. Ele disse que era uma boa ideia, você é uma pessoa danada. Pode ser
assim evita confusão, evita briga, evita violência, evita que o povo fique
frustrado, se bem que o povo vai ficar frustrado porque não vai ter nenhum
pedacinho.
E ali estava eu, discutindo o trajeto e dizendo às pessoas o que iria acontecer. Até que foi chegando o momento. Falei o que eu tinha combinado com meu pai. Pegar um avião no aeroporto às 10 da manhã, descer em Juazeiro, o padre vai rezar, fazer uma missa campal para abençoar meu pai porque era desejo dele. Aí precisaria de helicóptero e o levaria a Exu. Seria bonito. Juazeiro resume tudo. E assim acaba também com o ciúme do nordestino que é muito ciumento, o que é natural também.
O avião já estava preparado para as 10 horas, o governo Arraes já tinha cedido, fomos atrás do helicóptero, houve alguma dificuldade, tentei falar, tentei o exército, deixei o tempo rolar, eu sempre gostei muito de trabalhar com o tempo. Meu pai e eu. Somos respeitadores do tempo.
São 6 e 32. O presidente da Assembléia veio falar comigo. Expliquei. Reuni a televisão, falei em alto e bom som para que ficasse gravado o que iria acontecer. Olhei para a rua tinha um menino grafitando na parede, escrevendo uma frase sobre Luiz Gonzaga. Falei pra televisão: vocês deviam filmar isso!
E o povo continuava ali. Vendo, rezando, pedindo, cantando. Uma chuvinha fina. Daqui a pouco chegou a Chiquinha Gonzaga, com aquele seu jeito nervoso, jeitinho falador, rápido, e Zé Gonzaga também. Tinha se machucado no avião. Zé consegue umas coisas inéditas. Devia estar muito nervoso e acho que caiu da escada do avião. A morte sempre incomodou muito a Zé Gonzaga, mas estava ele estava lá, de chapéu, parecendo um vaqueiro americano.
Daqui a pouco chegou Helena e Maria Lafaiete. Era chegado o momento de apresentar as duas. Helena, 41 anos de vida com meu pai e Edelzuita, uma longa e bonita história. Certo ou errado era bonito. As duas se abraçaram chorando e ficaram conversando. O mais importante disso tudo é o respeito. Respeito não se compra. Ou a gente tem dentro da gente ou não vai conseguir nunca. As duas estavam muito abatidas. Edelzuita pela virada de muitos dias de hospital e Helena também pela virada da ansiedade de quem não pode estar ali do lado. Renato que trabalha comigo também chegou para ajudar e participar, junto com Fernando. Duas pessoas que me ajudariam muito no dia seguinte.
O corpo de meu pai saiu de lá depois de uma missa rezada por dom Helder.
Câmara. Missa bonita, não só a missa, mas a figura de dom Hélder. Sua voz cadenciada, seus gestos leves, sua tranqüilidade, doçura e firmeza. Respeitado por onde anda. Sua postura. Fez uma bela missa e durante a missa as pessoas continuavam passando, passaram a noite toda e mais ficasse mais passariam.
O corpo que ia sair as dez acabou saindo as onze. Subiu no carro do Corpo de Bombeiros e foi para o aeroporto. Desci, peguei o carro e fui para o aeroporto também. Pedi para os bombeiros para fazer um trajeto rápido para não tumultuar a cidade, mas não adiantou nada. O povo saiu atrás e na frente. E o trajeto que demoraria normalmente 15 minutos, demorou 3 horas, com o povo atrás, na frente, rezando, cantando, caminhando, crianças brincando. De qualquer maneira ali, por mais triste que fosse, havia uma festa em volta. Ficamos esperando no aeroporto, fui comer alguma coisa no outro aeroporto, voltei. Passava pelo meio do povo e as pessoas demonstravam o maior respeito. Fiquei esperando na porta do hangar, cansei, fui lá para dentro para ficar com Edelzuita e Helena.
Daqui a pouco chegou o corpo com milhares de pessoas atrás. As pessoas foram tomando o aeroporto. O carro do Corpo de Bombeiros chegou perto do avião. Abriram-se as portas. Edelzuita entrou, sentou de costas para a frente, eu sentei em frente a ela. E a gente com medo de que alguém morresse. Em meio ao tumulto e a confusão, as pessoas começaram a colocar o caixão no avião e era difícil porque era espremido e aos poucos foi. Todos queriam encostar no caixão pela última vez. Meu sinto de segurança ficou preso debaixo do caixão. Viajei sem cinto. Fechou-se a porta, teve que tirar o cinzeiro porque senão a porta não fechava. Piloto e co-piloto entraram, ligaram o motor e a multidão não saia de volta. Saíram um pouco, o avião foi andando devagar e nos com medo de que de repente alguém morresse. O avião foi saindo e no meio daquelas pessoas todas eu vi aquela figura do vaqueiro. Ali pela segunda vez eu chorei emocionado pela presença daquela pessoa que tinha atravessado a noite em pé velando pelo corpo de um amigo, de um companheiro, de um ídolo, de uma pessoa chamada Luiz Gonzaga. Tirou o chapéu, a cabeça suada, ele balançava, chorava muito. Mandou adeus com o chapéu de couro que papai gostava de dar de presente às pessoas. O avião foi chegando mais perto da pista e eu ali sentado com o braço em cima do caixão, Edelzuita veio falar comigo e eu disse: tudo isso que você está acontecendo aqui eu já vivi isso antes. Ela não entendeu o que eu falei. Como já viveu? Pois é. Essa noite eu vi isso tudo. Expliquei para ela que eu tinha acordado na hora que meu pai tinha morrido e que tinha sonhado com aquilo tudo que estava acontecendo.
E fomos nós, sem o cinto de segurança, com dor-de-cabeça, enjoado, passando mal, os pilotos e ela fumando e o cigarro me fazendo mal. Daqui a pouco uma nuvem pesada, o avião vai balançar, eu amarrei o cinto de segurança na alça do caixão do meu pai. E eu rindo sozinho daquela situação ridícula, vivendo uma história pela segunda vez, com medo de acontecer alguma coisa com o próprio caixão, as nuvens pesadas na frente e o piloto oferecendo um gole de café e aquele cheiro me enjoando ainda mais. E a vontade de fazer xixi. E o avião indo para Juazeiro e já sabendo que a cidade estava em polvorosa. E que o aeroporto estaria tomado e sabia que teria que enfrentar aquela situação toda. Claro que gostariam que o corpo de meu pai fosse levado para a matriz. Perfeitamente natural. Mas o helicóptero tinha sido contatado, chegaria na cidade, e poderia levantar vôo de Juazeiro até 16h30. Chegamos no Juazeiro as 3 e 45. Atrasos. Deveríamos ter chegado às 12h00. E só na volta já deu para ver que o aeroporto estava tomado de gente. As pessoas já tomando um lado da pista. Descemos, falei com o piloto para taxear devagar, estacionar distante das pessoas para não ferir ninguém. Ficamos parados, as portas abriram, apareceu o prefeito de Exu, gente boa. Tinham vindo em caravana do Exu para receber o corpo de meu pai no aeroporto de Juazeiro. Apareceu logo o rosto de um vereador, dizendo que queriam levar o corpo para a matriz.
Ali começou a outra batalha, aquilo que eu tinha conversado com meu pai. Aquilo batia na minha cabeça. Falei para o Agnaldo, o vereador: não vai não. Estou cumprindo exatamente o que meu pai me pediu. Se viemos a Juazeiro é porque um lugar que reúne todos os nordestinos. Ele pediu para que fosse rezada uma missa aqui. Eles insistiram. Por favor, chame o padre. Pusemos o corpo de novo em cima do carro do Corpo de Bombeiros e esperamos o padre estacionados na pista. Pessoal estava agitado. Exatamente como meu pai falou que aconteceria.
Duas, três ou quatro berravam muito, agitadas. Exatamente como nas reuniões de políticos, duas ou três pessoas conseguem fazer com que todos esquentem. Seria útil ali minha pratica política de muitos anos. Estava sereno em cima do carro, segurando o gibão e o chapéu de couro do meu pai, abraçado. Calmo. Conversando com o pessoal da policia militar de Juazeiro.
De repente fui falar com as pessoas o que estava acontecendo. Falei a elas do pedido do meu pai e entenderam, serenaram. Viram que não era eu que estava tomando aquela decisão. Tudo serenou ficamos esperando o padre. E com o padre que chegou voltou toda a agitação. Ele começou a pedir e a concordar que o corpo deveria ir para a Matriz. E a agitação começou de novo. O moço da PM dizia que se eu descesse eu morreria. Pedi ao padre para subir e conversar comigo. Tudo o que eu conversei com o padre está gravado por um jornalista do Correio Braziliense (que ainda não mandou a fita).
O padre disse que não acreditava que o meu pai tivesse dito aquilo, porque o lugar certo era a igreja. Como se Jesus Cristo tivesse sido abençoado na igreja. Falou que eu não entendia o povo nordestino.
Edelzuita e Helena já tinham ido para Exu e eu tinha que tomar a decisão sózinho. Chamei Fernando conversei com ele, falei com Renato, ponderamos, Fernando achou que as pessoas tinham concordado. Edelzuita também já tinha se manifestado para não entrar na igreja, porque meu pai tinha falado com ela também. Demorei um pouco resolvendo e pensando e acendi ao bom conselho do padre. Ele tinha toda razão. Resolvemos então passar pela cidade, com certeza. Mais tarde esse mesmo padre disse que eu estava fazendo cena, através de uma entrevista de jornal. Também compreendo a sua ansiedade.
Corpo de Bombeiros ligou, as pessoas foram se dispersando e saímos pela cidade. Foi uma das cenas mais bonitas que vi na minha vida. Porque se por um lado eu estava contrariando um pouco o que meu pai falara, por outro ganhava em beleza o tempo todo. Desde Recife estava tudo bonito demais. Em Juazeiro foi lindo pela religiosidade que cerca a cidade, pela dramaticidade, pelas ruas estreitas e assim fomos passando. Todos vieram atrás.
Palmas, gritos, fogos, choro, crianças, festas, brincadeiras. E eu sentado ali com um casaco do meu pai e com o chapéu, abraçado a meu corpo. Olhando e procurando guardar tudo aquilo. Vai por ali, passa por lá, sobre para cá.
Chegamos na Praça da Sé cheia, as pessoas esperavam para que o caixão descesse e fosse para a Igreja. Ali eu disse não.
Padre falou: eu vou descer aqui e eu disse não. Imaginava o caixão sendo arrebentado e não sairmos mais dali. Fomos em frente e deixamos a multidão para trás, o povo em festa e um pouco aborrecido. Claro que eles não estavam entendendo o que estava acontecendo. Claro que eles queriam a compreensão do seu desejo. Claro que eu teria que contrariar aquele desejo. E assim seguimos. Mais à frente o padre falou: vou descer aqui e mais uma vez eu disse não, por favor, gostaria que me acompanhasse até a saída da cidade. O senhor é o meu salvo-conduto. E assim ele fez.
E lá íamos nós para o Crato. Os políticos disseram: agora não, temos que entrar no Crato e eu ri, porque era exatamente o que meu pai tinha dito. Ele sabia que o Crato ia querer tirar o corpo de Juazeiro. As pessoas todas tinham corrido para passar por fora, porque eu já tinha avisado que o corpo iria passar por fora. O prefeito do Crato tinha pedido para o corpo passar pela prefeitura. Entramos no Crato, pessoas vieram correndo, as ruas vazias e perto do centro mais cheio. Chegamos no largo da prefeitura e íamos subir, não pudemos, passamos pelo largo tomado de gente, não paramos na prefeitura, porque se corpo descesse não subiria mais e eu chegaria a Exu só no dia seguinte. Dei uma saudação para o prefeito, senti muito, mas não podíamos parar.
Seguimos para Exu, a temperatura já mudando porque ali fica o pé de serra e lá estava ela, a mesma lua de 30 dias atrás, mais brilhante, mais forte, mais alta, com a estrela na sua cauda. Luiz Lua Gonzaga e eu ali abraçado ao casaco e pela primeira vez vesti o casaco de meu pai por causa do frio. E à medida que íamos chegando a Exu a lua e a estrela iam baixando na cidade. A cidade de Exu de Luiz Gonzaga. E os carros e motoqueiros seguiam atrás pela noite. E de cada buraco surgia alguém para saudar o corpo de Luiz Gonzaga naquela chapada, naquela serra. E a sirena gritava de volta agradecendo a presença das pessoas.
E lá íamos nós. E a estrela e a lua baixando e nós nos aproximando. Pedi para o carro parar, parou, comecei a sentir muito frio, a voz rouca, o cansaço, fui para dentro da boléia com o Renato e fomos conversando sobre aquilo tudo. Chegamos ao local preferido do meu pai, ele tinha mania de subir a serra nas noites de lua cheia, parar num determinado ponto e ficar olhando lá embaixo. Dali acho que ele via o nordeste todo. Mas ali ele gostava de ver Exu e a serra. Exatamente o que acontecia quando ia para Belo Horizonte. Ele pedia para levá-lo pelo lado do aeroporto de Confins porque ele tinha a sensação de quando passava num lugar perto de Confins ele via a Serra do Araripe. E aí passamos por lá, descemos e entramos no Araripe. O corpo estava na rua. O povo estava em volta da igreja. O povo estava em tudo quanto é lugar.
O povo estava em volta da igreja, em tudo quanto é lugar. O corpo de bombeiros parou do lado da igreja, o corpo desceu, as pessoas fizeram uma passagem e eu entrei atrás do caixão com o chapéu e gibão apertados contra o peito. Helena estava esperando. Edelzuita não estava lá. Peguei o chapéu de couro, o gibão, saí peguei o carro e fui pegar Edelzuita. Era importante que as duas estivessem juntas. Era muito importante. Dei a Edelzuita o gibão e o chapéu para que pusesse em cima do caixão de meu pai.
Era muito importante isso. Ali as duas ficaram juntas um determinado tempo, para que o povo entendesse um pedaço da vida de Luiz Gonzaga, sem subterfúgio e sem mentira.
E aí começou de novo o povo a visitar meu pai. Pela primeira vez olhei para o rosto de meu pai. Estava lá, sereno, cinza, já tão gordo quanto estava porque tinha voltado a comer no hospital, cara de lua, séria, mas não dura.
Foi a primeira e ultima vez que olhei.
Muitas e muitas recordações passaram pela minha cabeça naquele momento. As pessoas passavam em volta, tumulto na igreja, subiam no banco, tinha gente de todo lugar. Ouricuri, Salgueiro, Bodocó, todo aquele povo que não tinha podido ver meu pai pela estrada estava ali. E mais chegaria ainda, no dia seguinte. Fui dormir. No dia seguinte soube que teve uma moça que quis abrir o caixão do meu pai, minha prima é que não permitiu. Cada um gosta de aparecer à sua maneira.
Acordei no dia seguinte, dia do enterro, marcado para as quatro da tarde. Conversei com minhas tias, minhas primas, pessoal da maçonaria me falou sobre o que deveria ser feito, concordei, afinal de contas meu pai era maçom e essas pessoas merecem todo o meu respeito. Minha tia Geni falou que gostaria que o corpo de papai ficasse exposto no Parque Asa Branca, mas iriam quebrar tudo do Museu, não daria certo. Por isso o corpo do meu pai ficou na igreja e não na casa branca. Houve a missa encomendando o corpo. Uma missa muito bonita que o pessoal de Exu fez. Sanfoneiros, entre eles Dominguinhos, que tinha saído de casa dois dias antes as quatro da manhã e no meio da estrada soube da morte de Luiz Gonzaga e me telefonou do meio da Rio-Bahia, de Vitória, já chorando. Dominguinhos que sempre foi como um filho para o meu pai, um irmão para mim, uma pessoa bonita com sua simplicidade. Sua cara de menino triste tocando sua bela sanfona. Mais uma vez, Ele que acompanhou meu pai tantas e tantas vezes. Neném do Acordeom.
E outros sanfoneiros tocando. Bonita missa.
Houve as despedidas, fechamos o caixão, as pessoas pegaram o caixão e fomos para o carro do Corpo de Bombeiros mais uma vez. Pedi aos cinegrafistas, fotógrafos e jornalistas que descessem porque estava apinhado de gente. Todos os maçons quiseram subir e não deixei. E ali fomos nós para o cemitério. As ruas de Exu cheias como nunca tinham estado antes. Lindíssimo. Eu olhava mais uma vez aquela beleza para guardar. Festas, choro, gritos de crianças, cachorro latindo, ruas cheias. Minhas tias se perderam naquele meio todo. Procurava por Helena, onde estava? Edelzuita estava do meu lado. Paramos na porta do cemitério e um casal começou a cantar: minha vida é andar por este país. E eu cantei junto. Porque essa era a música de vida, de alegria e representava aquilo tudo. Uma festa em torno da tristeza.
O corpo de meu pai desceu do Corpo de Bombeiros, eu desci também antes, fui lá pra dentro, houve o ritual da maçonaria também bonito, as espadas tinindo e lá fomos nós. Dominguinhos começou a tocar espremido na beira da sepultura, Helena espremida, Edelzuita espremida, todo mundo espremido, aquele túmulo que tinha sido construído de um dia para o outro (queriam tirar o corpo de meu tio Severino para por o corpo de meu pai e eu não deixei, mandei construir outro), então o cimento estava fresco ainda. E estava ali o corpo do meu pai na boca do tumulo, eu podia ver as barras de ferro no chão. Incrível isso. E o povo empurrando e eu com chapéu de couro e gibão de meu pai abraçado. Teve um menino de Exu que fez um discurso pedindo para que fosse preservado culturalmente tudo aquilo.
Havia todo um clima de que o museu do meu pai seria construído no Rio, em Fortaleza, Brasília, São Paulo, Recife, Salvador. Mas não era nada daquilo. Meu pai ser enterrado em Exu de preferência no parque Asa Branca, o que acontecerá daqui mais algum tempo. Será feita uma capela, os corpos dos meus avós e tios serão transferidos para lá. O parque Asa Branca será doado para abrigar o museu. Será criada uma fundação e um centro cultural.
Teremos doação do Brasil inteiro e poderemos movimentar aquilo.
Quantas pessoas compreenderam a visão de meu pai?
Muitos anos antes tinha voltado para Exu para viver. Ajudou a pacificar a terra. Pouca gente compreendeu que Exu era uma cidadezinha de pé de serra, onde Januário tinha tocado. Quando meu pai saiu dali Exu não tinha nada. Foi Luiz Gonzaga quem colocou a luz, que trouxe o banco do Brasil, o Bandepe, verbas para calçamento e etc. Foi ele quem trouxe telefone, que conseguiu de Antonio Carlos Magalhes que fosse implantado o sistema DDD. Coisa que vou cobrar daqui a pouco. Quem colocou o nome da cidade no mapa. Porque sempre acreditou numa posição estratégica daquela cidade. Exu tem toda condição de se transformar num entroncamento. Pode ser uma ótima passagem para o Ceará e também já cortando caminho, para Salvador. Basta asfaltar a estrada que liga Exu a Serrita e encurta mais 150 kms de estrada.
A morte de meu pai e o enterro em Exu significam que as pessoas vão visitar o túmulo do meu pai. Significa também que a cada Missa do Vaqueiro, as pessoas poderão ir ao museu, pegar o gibão e o chapéu de couro e cavalgarem até Serrita para que esta seja a abertura da Missa do Vaqueiro, que ele foi um dos incentivadores e criadores.
Como Luiz Gonzaga significa São João, a festa de Exu tem tudo para ser uma das melhores e mais bonitas festas de todo o sertão nordestino. Podemos fazer semanas culturais movimentando toda a riqueza da região. A casa de meu avó em São João do Araripe pode ser mais um ponto ligado ao museu de Luiz Gonzaga. A casa de Bárbara de Alencar também pode ser tombada e se transformar em mais um ponto de visitação. Casas podem ser tombadas, para formar um corredor cultural de Juazeiro à Missa do Vaqueiro, passando obrigatoriamente pelo museu de Luiz Gonzaga. Podemos fazer um concurso para escolher uma imagem de Luiz Gonzaga e ela seja vendida. Essa movimentação toda vai gerar empregos. Podemos também fazer um plantio de árvores na cidade do Exu, começando pelo posto Gonzagão, para que seja arborizada e trazer de novo o costume saudável para manutenção das águas todas. Uma cidade arborizada de pé de serra. Exu tem um clima maravilhoso. Essa foi a visão do meu pai. E essa foi a maior riqueza que está em minhas mãos. Por isso mesmo evitar ciúmes políticos, evitar que pessoas cheguem a Exu armadas querendo raptar o corpo e levar para Juazeiro (chegou aos meus ouvidos mas não acredito que seja verdade, daria uma guerra insana). Espero que Helena e Rosinha se juntem e não vendam absolutamente mais nada. E juntos administremos as coisas.
A única coisa que espero é poder ajudar Edelzuita por todo o seu amor devotado. Isso eu vou fazer mesmo que as pessoas não concordem.
Há 30 dias meu roteiro não era esse. Era outro. Agora estou na BR. Sai de Recife as onze meia, parei em Caruaru e ontem houve uma missa em Recife de 30 dias e na qual autografei muitos retratos de meu pai e sei que vou autografar muitos ainda.
Estamos quase chegando em Exu, falta pouco. Há 30 dias eu estava perseguindo a mesma lua e a mesma estrela.
Publicado no
livro Gonzaguinha e Gonzagão - Uma História Brasileira de Regina Echeverria.
Fonte: facebook
Página: Paulo Vanderley
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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