O historiador
cearense Capistrano de Abreu sugere um estudo mais aprofundado da colonização
dos sertões brasileiros. Ressente-se que a maior parte da nossa historiografia
não vai além do litoral. Isto é compreensível porque foi no litoral que
cresceram as grandes cidades e escolas, ficando os sertões num isolamento que
só diminuiu com o avanço das estradas e dos meios de comunicação. Esse desterro
em que viveram populações inteiras justifica a permanência de hábitos
alimentares, narrativas orais, cantos e danças. Jorge Luis Borges afirmava não ter
encontrado o Oriente em Israel, encontrando-o na Espanha. Da mesma forma
podemos afirmar que é possível encontrar um Portugal e uma Espanha que não mais
existem, em sertões nordestinos esquecidos no tempo, vivendo medievalmente à
margem da história.
A literatura
brasileira mais fiel a uma épica sertaneja é o Grande Sertão: Veredas, de
Guimarães Rosa. Ou será Os Sertões, de Euclides da Cunha? Em ambos, o tema da
guerra é o motivo da narrativa. No primeiro, um romance, uma disputa entre bem
e mal, os bandos de jagunços de Joca Ramiro e do Hermógenes; no segundo, um
livro de sociologia e história, a mesma disputa entre bem e mal, representada
no povo pobre de Canudos e nas forças policiais da riqueza e do poder
instituído. A Guerra de Canudos significou mais para Euclides da Cunha que para
a história política do Brasil. Euclides criou uma grande obra e os políticos e
poderosos continuam indiferentes aos humilhados e ofendidos.
Três livros
sem maior repercussão na vida literária do país, nem mesmo nas cidades onde
foram criados, ilustram como vivemos à margem da nossa história: O Clã dos
Inhamuns, do cearense Nertan Macedo; O Tratado Genealógico da Família Feitosa,
do também cearense Leonardo Feitosa; e Os Feitosa e o Sertão dos Inhamuns, do
brasilianista Billy Jaynes Chandler. Neles, conhecemos um pouco da colonização
do Ceará, ocorrida a partir do final do século 17, e constatamos o que afirma o
poeta Mário Hélio, que as histórias sertanejas em nada ficam a dever à épica e
à tragédia gregas.
Duas famílias,
os Monte e os Feitosa, durante anos guerreiam entre si, disputando terras e
poder, nos sertões dos Inhamuns, Cariri e Icó, aliadas às tribos indígenas
locais. O território da guerra é maior que o de muitos países europeus. O
curioso da narrativa é que um pedaço da história de além-mar é transposto para
as bandas de cá do Nordeste. Os Monte eram cinco irmãos, dois homens e três
mulheres, de origem espanhola, que vieram da Europa, fugindo do rigor das
perseguições da Inquisição. Dois deles, Geraldo do Monte e sua irmã Isabel,
internaram-se nos sertões de Pernambuco e vieram ter ao Ceará. No engenho
Currais de Serinhaém, em Pernambuco, residiam os Feitosa, de origem portuguesa,
que se comprometeram gravemente no levante dos Mascates do Recife. Para evitar
a perseguição que se fez aos brasileiros que entraram nesta sedição, fugiram
para o interior do Ceará, onde se fixaram nas proximidades de Icó. O relato é
dos historiadores citados. O destino faz com que essas duas famílias se
encontrem e se cruzem. Isabel, irmã viúva de Geraldo do Monte, casa com
Francisco Feitosa, da família de Serinhaém.
A trama está
armada. Questões de honra e disputas pela terra colocam os Monte e os Feitosa
em palcos diferentes. A Ibéria se transpõe para as terras secas dos sertões
cearenses. A Espanha representada por perjuros e Portugal, por insurrectos.
Guerras e rivalidades seculares podem se continuar na paisagem de angicos,
aroeiras, imbuzeiros, jucás e pereiros; e no leito seco de rios que só correm
no inverno. Ao invés de castelos de ameias, casas de taipa de cumeeiras altas,
só mais tarde substituídas por casarões alpendrados de tijolo, alguns com
pedestais de mármore vindos da Itália. No lugar de armaduras e brasões de metal
reluzente, roupas de couro rude, dos rebanhos apascentados no planalto. Os
luxos de ouros e veludos só irão aparecer depois. No início, só existem a
dureza da terra, a lei bárbara, a solidão. Matanças infindáveis para garantir o
poder. A união proposta pelo casamento degenera em guerra. O velho sangue
ibérico, diluído em gerações, é sempre o de espanhóis e portugueses, disputando
pedaços de terra.
É também
possível que a guerra entre Tróia e Grécia tenha significado mais para Homero,
que para os gregos. Homero escreveu o seu poema, que fixa o idioma clássico,
organiza a mitologia, arruma os deuses no Olimpo. Os bravos aqueus ou morreram
nos combates ou em casa, velhos e nostálgicos. Sem Homero, eles não teriam
existência, cobertos pela poeira do esquecimento. A guerra sertaneja entre
Montes e Feitosas já rendeu alguns livros. Poderá render muitos outros, pois
sobram enredo e mistério. Falta o olhar sobre a nossa história, para que não
aconteça o que canta Gerardo Melo Mourão: “Iam caindo: à esquerda e à direita
iam caindo; ...primeiro os que já eram lenda na memória dos velhos, depois os
avós de meus avós, porque antes tombavam hierárquicos e cronológicos”. Caindo
todos no esquecimento da nossa pobre história de Nação.
Ronaldo
Correia de Brito em:
Fonte: facebook
Página: Cangaceiros Cariri
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário