*Rangel Alves da Costa
Outro dia, andando pelas ruas de Poço Redondo em busca do local exato do Cemitério dos Anjos (local onde as muitas criancinhas eram sepultadas, de modo a não superlotar o pequeno cemitério municipal), eu e Manoel Belarmino fomos parar defronte à casa de Dona Conceição de Laura. Antes mesmo da chegada e já avistamos a imponente senhora sentada em sua cadeira de calçada. Ao entardecer sertanejo, o encontro com Dona Conceição se assemelhou ao encontro do discípulo perante seu mestre.
Sempre um encontro maravilhoso, encantador, eis que Dona Conceição, além de fazer parte das raízes mais profundas da história poço-redondense, possui, ela própria, um vasto reconhecimento perante seus muitos ofícios de vida e de viver. Sábia e mestre de aprendizado na escola do tempo, no livro dos ensinamentos passados de geração a geração, pelas linhas da alegria e do sofrimento. Nunca foi rica nem pobre, apenas uma guerreira de mundo.
Mestre na arte dos remédios caseiros, das folhas e raízes de quintal e canto de cerca. Mestre na arte da reza e do benzimento. Mestre na prosa e no contar de histórias antigas. E principalmente mestre na arte da renda de bilros, de almofada adiante e dedos hábeis no tracejamento das linhas e no manejo dos paus e dos espinhos ou alfinetes. No tudo e no todo, constitui-se numa das principais personagens das artes e das tradições sertanejas, além de uma cativante cantora enquanto dedilha sobre sua almofada: “Oiê muié rendera, oiê muié rendá, tu me ensina a fazê renda que eu te ensino a namorá...”.
Aprendiz de sua avó, desde os oito anos de idade Dona Conceição interage com o mundo das linhas, bilros e rendas, bem como outros afazeres da sabedoria matuta. Uma personagem ainda ativa de um contexto muito maior de rendeiras como Cenira e Dona Clotilde, bem como de saudosos nomes da valia de Carmosina e das irmãs Maria de Iaiá, Dom e Araci, dentre outras famosas artesãs. Na verdade, o passado de Poço Redondo era uma grande calçada de rendeiras ao entardecer pelas calçadas, entre cantigas e proseados, enquanto as mãos teciam flores da vida sobre os papelões marcados nas almofadas. Por todo lugar ouvia-se os bilros perpassando as marcações nos espinhos de mandacaru sobre os panos.
Hoje, Dona Conceição de Laura é, assim, uma das principais remanescentes daqueles tempos de faustosos bordados e rendas. Ainda toma assento diante da almofada, ainda maneja com primor e leveza o bilro, o espinho, a linha. Ainda que de olhos fechados, suas mãos jamais deixariam de encontrar o local exato da marcação no papelão. E, como dito, ela também é uma exímia contadora de histórias, antigas e mais recentes. E foram histórias que eu e Belarmino ouvimos após a certificação de que bem ali, defronte sua casa e pelos lados, o Cemitério dos Anjos possuía existência.
Perguntada se ainda sentia a presença daquele cemitério de criancinhas, através de algum tipo de aparição, ela logo afirmou que não, mas que conhecia muita gente na vizinhança que já ouviu muito choro, já avistou muita coisa estranha naquele local. E acrescentou que ali, além de ter sido cemitério, debaixo de um pé de pereiro que havia, um moço da povoação foi morto pelos cangaceiros. Gracinha era seu nome, esposo da saudosa Dona Céu e avô, dentre outros, de Zezito do Bode. E por isso mesmo muita coisa estranha pode ser avistada naquele local. Contudo, o de arrepiar mesmo veio em seguida.
Tudo começou quando Dona Conceição perguntou se eu e Belarmino acreditávamos que os mortos voltavam em carne e osso. Como assim? Indaguei em seguida. “Sim, morrer, ser enterrado e no outro dia voltar pra casa. Pois aconteceu e esta aqui, de cabelos brancos e que nunca mentiu na vida, presenciou tudo isso. Num é história de ouvir dizer não, pois eu mesma testemunhei tudo isso que tô contando...”. Espantados, verdadeiramente perplexos com o relato, apenas pedimos que prosseguisse, que fizesse outras revelações. Então Dona Conceição continuou, e citando até o nome do morto que retornou (e que aqui, por consideração à família, não será revelado).
“O que morreu era meu vizinho. Foi enterrado de tarde, mas no outro dia de manhã já estava aí na casa, de carne e osso, como se vivinho tivesse. Eu ouvia tudo, pois parede com parede. E não voltou uma vez só não, mas muitas vezes. Ele chegava arrastando o chinelo e mandava a mulher botar café, e ainda reclamava se tivesse quente demais. O morto era tão cheio de astúcia que tinha vez que até queria fazer safadeza com a mulher. Então ela dizia que ele fosse embora e que não voltasse mais, pois estava morto e que não prestava mais pra nada. E assim aconteceu por muito tempo, juro pelo mais sagrado!”.
“E doutra vez, o finado Afonso me apareceu no quarto como se tivesse sufocado e querendo se soltar de alguma coisa. Depois me disse que era a gravata que haviam botado nele e que não gostava daquilo”. Tudo das palavras de Dona Conceição de Laura, ainda presente em Poço Redondo para confirmar todo o dito.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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