Material do cervo do
pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho
ASSIM FALOU
VOLTA-SECA... - COMO SE FORJA UM CANGACEIRO
O Rei do Cangaço Gostava de Dizer-se Justiceiro – O Caso de Taboca – Repercutiu Mal no Bando o Castigo de Pau d’Arco – Respeito à Mulher e às Crianças.
JÁ FALEI da vaidade de Lampião, mas cabe ainda mais alguma coisa a respeito, pois duas coisas eram fortes nele: a vaidade e a maldade. Ele gostava de se sentir importante, e era muito comum dizer que o “o governo mandava na capitá”, mas ele era “o governo do sertão”. Não dizia apenas, tinha plena convicção disso. Sentia-se mesmo como o “Interventor do Sertão”, o maior homem daquelas regiões.
Referi no capítulo anterior que Lampião gostava de fazer justiça, mas justiça à sua moda, tal como lhe ditava a sua complexa consciência. Vou contar um caso terrível a que assisti e que servirá para fortalecer a minha afirmação de que Virgulino gostava de ser “justiceiro”.
O SEDUTOR DE TABOCA
FOI no interior de Sergipe, na Taboca, uma fazenda de gente amiga de Lampião. O fazendeiro gostava muito de Virgulino e este nutria grande estima por todos da casa. O bando estava nessa época com 45 homens, e já fazia alguns anos que Lampião não aparecia por aquelas paragens.
Quando chegamos, o dono da fazenda estava triste. Era pai de três moças, uma das quais se casara. Casara mal, pois o marido, terrível “conquistador”, acabara por seduzir uma das cunhadas e fugira para sempre do local. Depois que ele desapareceu, deixando a cunhada e abandonando a mulher com um filho por nascer, vieram a saber a boa bisca que era o rapaz, pois já havia seduzido várias moças e não se emendava. Seu mal eram as donzelas.
O fazendeiro contou o caso a Lampião, que, após ouvi-lo, perguntou: “Quer que eu mate esse sem-vergonha?” O bom homem não queria tanto, limitando-se a responder: “Matar, não, seu capitão, mas se fosse possível dar uma surra...”
Lampião pensou um pouco e disse: “Deixe ele comigo. Eu vou fazer um serviço bom com ele... Eu pego ele, deixe comigo...”
E o bando partiu alguns dias depois. Lampião ouvira o nome do homem e o guardara muito bem na memória. Guardou tanto que, seis ou sete meses depois, e passadas tantas coisas, tanto combate com os “macacos”, tantas novidades, ainda se lembrara do nome do homem. Eu é que não me lembro mais.
O ENCONTRO
ESTÁVAMOS num pequeno povoado quando, ao interrogar um estranho, o bando foi de repente interrompido por Lampião, que estava perto: “Como é mesmo o teu nome, paisano?” O homem repetiu o nome. Lampião até ardilosamente insistiu: “Antão você é genro do meu cumpadre...” e foi por aí afora, até que identificou bem o homem. Era o sedutor da cunhada, que, a essa altura, já estava assustado. Lampião disse ironicamente: “Mas antão você é o tal... o conquistador que eu estava procurando...” E sorriu, naquele seu sorriso terrível. Era a maldade calma que estava em cena, era o verdadeiro Lampião. “E a tua mulher? Você não presta! Mexeu com a tua cunhada... Eu já tenho a tua informação há tempos... Há muito tempo que quero te encontrar. Eu prometi fazer um serviço, e vou fazer... Vou te castrar!” O homem ficou apavorado. Não me lembro de ter visto ninguém tão assustado. Era um homem com menos de trinta anos, bem apessoado (como todo bom conquistador), e estava branco como cera. Lampião continuava a martiriza-lo: “Faz de conta que você é um boi magro que eu tenho no meu pasto... Você, inteiro, não pode engordar... Depois... um boi quando é bão assim como você a gente tem que castrar...”
O homem não se mexia, olhos arregalados, sem ousar dizer nada. Abriram um círculo grande, de uns três metros de diâmetro, e os “cabras” todos (45 homens) estavam vigilantes.
Lampião, depois de muito debochar, mandou que as mulheres se afastassem, tanto as do bando como as do povoado, e decidiu: “Vou te castrar! Despe-te!”, berrou Lampião. O homem obedeceu, conformado. Lampião sacou de um canivete e correu o dedo pelo fio, a fim de se certificar de que estava amolado. Não estava, conforme verifiquei depois e ele mesmo disse mais tarde. Mas cortava, e era o bastante. E aproximou-se do homem, que agora estava com a cabeça arriada, tremendo covardemente de medo.
CASTIGO
FEITA a “operação”, Virgulino, ainda não satisfeito, ordenou: “Senta!” O homem sentou-se no chão, ou deixou-se cair sentado. Dos seus olhos corriam lágrimas entrecortadas de soluços de dor. Lampião prosseguiu: “Vou fazer uma mossa na tua orelha, para quando te encontrar saber que tu és o meu boi...” E tirou um pedacinho da orelha do infeliz. Em seguida, dirigindo-se a um fazendeiro que, por sinal, não lhe era muito simpático, falou: “Leve esse homem. Trate bem dele. Bota água fria na ferida e depois um bife bem quente. Quero ele vivo! Vivo, ouviu bem? Vivo!!” E com a fisionomia carregada, concluiu: “Se eu souber que ele morreu, volto aqui e não escapa um! Mato todo o mundo!”
Estava feita a “justiça” ao terrível D. Juan dos sertões, que, aliás, ainda vive na Bahia, gordo e pacato. Os leitores hão de estranhar que um homem se deixe castrar assim desamarrado, sem reagir, conformado, enfim. Mas o fato sucedeu, e não foi a primeira vez que assisti a cenas dessas. Há muita gente covarde neste mundo. Já vi homens passarem por momentos piores e nenhum deles reagia.
Cada vez me convenço mais de que ser valente é uma coisa difícil, que requer, antes de tudo, não ter amor à vida.
É preciso acrescentar ainda que ninguém deu a menor importância a esse fato. Os “cabras” assistiram ao “espetáculo” sem se impressionarem, como se fosse algo rotineiro...
Tampouco Lampião era de se impressionar com os crimes que praticava. Nem mesmo se referia a eles, parecendo que o assunto terminara onde devia terminar. Era o seu senso de “justiça” que falava mais forte.
TRAIÇÃO
LAMPIÃO não gostava de ser traído. Quem o enganasse e caísse em suas mãos, dificilmente escapava. O traidor, então, ainda que a traição não fosse com ele, nunca ficava sem punição. Aconteceu certa feita um caso que iria bem contado neste capítulo. Foi uma traição, ou, pelo menos, o que Virgulino julgava traição.
Nós havíamos dado um combate à volante, em Pau-d’Arco, interior da Bahia. O bando tinha naquela ocasião uns 56 homens, mas, apesar de ter sido forte o tiroteio, não perdemos ninguém. A refrega fora à noite, e o fato é que conseguimos nos afastar dos soldados.
Depois de muito andar, fomos dar numa fazenda, cujo proprietário tinha mulher e dois filhos. O bando estava faminto e a fazenda vinha a calhar. Há dias não comíamos nada que prestasse e eu, confesso, até milho cru comi. Chegando à fazenda, portanto, a alegria foi imensa. Matamos e comemos toda a criação do fazendeiro, inclusive dois bois. Todo o mundo saciado, Lampião chamou o casal e, recolhendo quinhentos mil réis de cada um, juntou mais cinco contos de sua parte, entregou-lhe, dizendo: - “Aqui está mais do que nós comemos. Com este dinheiro vocês poderão comprar muita coisa e cobrir os prejuízos. Mas, atentem bem: não digam à volante, quando ela passar, que eu estive por aqui. Ouviram? O casal concordou, e Lampião, antes de partir, reforçou a recomendação: “Se vocês falarem qualquer coisa, volto e não fica ninguém vivo!”
De nada valeu a recomendação, pois mais adiante quase fomos dizimados pela força volante, perdendo vários “cabras”. Lampião, diante das baixas, ficou intrigado, pois não costumava enganar-se, e ele se julgava seguro quando fomos surpreendidos pelos “macacos”. Bem informado como era, não tardou a saber que o casal o havia denunciado. E soube mais detalhes, pois fora a mulher quem metera na cabeça do marido procurar as autoridades e dizer que Lampião estivera na fazenda, comera e bebera e, ainda por cima, nada pagara.
A VOLTA
NÃO preciso perder tempo em dizer que Lampião voltou ao local... Chegamos de surpresa, um mês depois, isto após afastar com artifícios os soldados das proximidades. O casal, depois do capturado, como todos os que caíam nas mãos de Lampião, estava com o pavor estampado nos olhos.
Era de tarde, e entramos na casa sem que nos percebessem. Frente a frente com os dois “traidores”, Virgulino falou: “Mas então os dois sem-vergonha estão de novo em meu poder...” E dirigindo-se à mulher: “A você, não matarei, porque é mulher. Mas teu marido vai morrer!” A mulher do fazendeiro olhava-o estupefato, sem nada dizer. Mas Lampião prosseguiu: “Mas, mulher faladeira... tu vais tomar uma lição que nunca mais esquecerás...”
E depois de meditar um pouco, mandou que dois “cabras” raspassem a cabeça dela, o que foi feito rapidamente, deixando o crânio reluzente. A mulher não era bonita, e de cabeça raspada mais esquisita ficou. Estava horrorosa! A seguir, Lampião mandou a infeliz despir-se inteiramente. Ela obedeceu prontamente, fincando tal como veio ao mundo. O bando todo olhava intrigado aquele espetáculo diferente e grotesco, tal seja o de contemplar uma mulher careca e, ainda por cima, desnuda.
O EXEMPLO
AQUILO era o começo da vingança de Virgulino, que em seguida mandou trazer dois cavalos. Num deles mandou montar o marido, no outro, a mulher, sendo que esta ia na frente. O povoado ficava perto da fazenda e Lampião mandou que o casal desfilasse, impondo que todos os moradores contemplassem aquele quadro triste.
A mulher ia cabisbaixa, o homem, indiferente, talvez certo de que teria pouco tempo de vida. Quando o cortejo passava em frente a uma casa, Lampião dizia: “Esta mulher é uma faladeira. Vou matar o marido dela e quero que vocês saibam que a língua não adianta a ninguém. Quem fala demais sempre morre cedo”.
Durou quase uma hora a humilhação, até que, no centro do arraial, Lampião resolveu acabar com aquilo. Mandou primeiro que desmontassem o marido e o trouxessem até ele. Assim foi feito e, sacando do parabélum, deu um tiro na cara do infeliz, sem deixar de dizer o seu clássico: “Vai-te pros infernos, cão!” O homem caiu morto instantaneamente, com uma bala entre os olhos, e a mulher, sempre de cabeça baixa, prostrada, nem se mexeu.
Lampião então ordenou que a desmontassem e, dando-lhe uma chicotada nas costas, mandou que ela se pusesse a andar e não olhasse para trás. A mulher obedeceu sem reagir, como sempre, e atravessou nua o povoado, sem se importar que a observassem. Nem chorou sequer.
CARÁTER NORDESTINO
POR incrível que pareça, “cabras” não gostaram do que Lampião fez, o que serve para demonstrar o que é o nordestino, mesmo quando está atolado no crime, como nós. Eu também, como meus companheiros, achei que Lampião havia exagerado, mandando a mulher despir-se. Houve mal-estar no bando, que comentou o fato por muito tempo.
Bem curioso é o sertanejo... Um homem foi castrado e ninguém ligou. No entanto, despir uma mulher em público teve péssima repercussão. Deve ser o remanescente do pudor, que sempre persiste no coração de um nordestino...
Lampião, entretanto, não ligou muito o fato e, se não voltou a fazer o mesmo com outra mulher, é porque não tornou a apresentar-se oportunidade. Ele faria o mesmo novamente, já que matar uma mulher não era de seu feitio. Posso mesmo afirmar que Lampião nunca assassinou gente de saia, nem tampouco crianças. Esse respeito pela vida das mulheres, nunca cheguei a compreender. Admitia que se “ferrassem” as que usavam vestido curto e cabelo cortado, mas nunca matá-las.
E não é dizer que não fosse homem dado a conquistas. Antes de conhecer Maria Bonita, gostava de vez em quando de galantear uma mulher, mas fazia-o com comedimento. Da mesma forma com que bebia, pois se bebia bem, jamais alguém o viu bêbado. Tal comportamento é que lhe granjeava grande autoridade moral sobre o bando.
Depois de Lampião unir-se a Maria Bonita, nunca mais se aproximou de outra mulher, nem mesmo quando ela se afastava do bando para dar à luz em casa, ou quando queria simplesmente visitar os pais. Lampião foi de uma fidelidade a toda prova a Maria Bonita.
Mas não foi esse amor que o fez ser sempre magnânimo com as mulheres. Os que o conheceram antes de entrar no cangaço diziam que ele sempre respeitou as mulheres e as crianças. Era, talvez um dos poucos predicados que esse homem possuía, entre tantos defeitos.
No próximo capítulo: Massacre em Queimada
CONTINUA...
Fonte: facebook
Página: Antônio Corrêa Sobrinho
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
A “JUSTIÇA” DE LAMPIÃO
O Rei do Cangaço Gostava de Dizer-se Justiceiro – O Caso de Taboca – Repercutiu Mal no Bando o Castigo de Pau d’Arco – Respeito à Mulher e às Crianças.
JÁ FALEI da vaidade de Lampião, mas cabe ainda mais alguma coisa a respeito, pois duas coisas eram fortes nele: a vaidade e a maldade. Ele gostava de se sentir importante, e era muito comum dizer que o “o governo mandava na capitá”, mas ele era “o governo do sertão”. Não dizia apenas, tinha plena convicção disso. Sentia-se mesmo como o “Interventor do Sertão”, o maior homem daquelas regiões.
Referi no capítulo anterior que Lampião gostava de fazer justiça, mas justiça à sua moda, tal como lhe ditava a sua complexa consciência. Vou contar um caso terrível a que assisti e que servirá para fortalecer a minha afirmação de que Virgulino gostava de ser “justiceiro”.
O SEDUTOR DE TABOCA
FOI no interior de Sergipe, na Taboca, uma fazenda de gente amiga de Lampião. O fazendeiro gostava muito de Virgulino e este nutria grande estima por todos da casa. O bando estava nessa época com 45 homens, e já fazia alguns anos que Lampião não aparecia por aquelas paragens.
Quando chegamos, o dono da fazenda estava triste. Era pai de três moças, uma das quais se casara. Casara mal, pois o marido, terrível “conquistador”, acabara por seduzir uma das cunhadas e fugira para sempre do local. Depois que ele desapareceu, deixando a cunhada e abandonando a mulher com um filho por nascer, vieram a saber a boa bisca que era o rapaz, pois já havia seduzido várias moças e não se emendava. Seu mal eram as donzelas.
O fazendeiro contou o caso a Lampião, que, após ouvi-lo, perguntou: “Quer que eu mate esse sem-vergonha?” O bom homem não queria tanto, limitando-se a responder: “Matar, não, seu capitão, mas se fosse possível dar uma surra...”
Lampião pensou um pouco e disse: “Deixe ele comigo. Eu vou fazer um serviço bom com ele... Eu pego ele, deixe comigo...”
E o bando partiu alguns dias depois. Lampião ouvira o nome do homem e o guardara muito bem na memória. Guardou tanto que, seis ou sete meses depois, e passadas tantas coisas, tanto combate com os “macacos”, tantas novidades, ainda se lembrara do nome do homem. Eu é que não me lembro mais.
O ENCONTRO
ESTÁVAMOS num pequeno povoado quando, ao interrogar um estranho, o bando foi de repente interrompido por Lampião, que estava perto: “Como é mesmo o teu nome, paisano?” O homem repetiu o nome. Lampião até ardilosamente insistiu: “Antão você é genro do meu cumpadre...” e foi por aí afora, até que identificou bem o homem. Era o sedutor da cunhada, que, a essa altura, já estava assustado. Lampião disse ironicamente: “Mas antão você é o tal... o conquistador que eu estava procurando...” E sorriu, naquele seu sorriso terrível. Era a maldade calma que estava em cena, era o verdadeiro Lampião. “E a tua mulher? Você não presta! Mexeu com a tua cunhada... Eu já tenho a tua informação há tempos... Há muito tempo que quero te encontrar. Eu prometi fazer um serviço, e vou fazer... Vou te castrar!” O homem ficou apavorado. Não me lembro de ter visto ninguém tão assustado. Era um homem com menos de trinta anos, bem apessoado (como todo bom conquistador), e estava branco como cera. Lampião continuava a martiriza-lo: “Faz de conta que você é um boi magro que eu tenho no meu pasto... Você, inteiro, não pode engordar... Depois... um boi quando é bão assim como você a gente tem que castrar...”
O homem não se mexia, olhos arregalados, sem ousar dizer nada. Abriram um círculo grande, de uns três metros de diâmetro, e os “cabras” todos (45 homens) estavam vigilantes.
Lampião, depois de muito debochar, mandou que as mulheres se afastassem, tanto as do bando como as do povoado, e decidiu: “Vou te castrar! Despe-te!”, berrou Lampião. O homem obedeceu, conformado. Lampião sacou de um canivete e correu o dedo pelo fio, a fim de se certificar de que estava amolado. Não estava, conforme verifiquei depois e ele mesmo disse mais tarde. Mas cortava, e era o bastante. E aproximou-se do homem, que agora estava com a cabeça arriada, tremendo covardemente de medo.
CASTIGO
FEITA a “operação”, Virgulino, ainda não satisfeito, ordenou: “Senta!” O homem sentou-se no chão, ou deixou-se cair sentado. Dos seus olhos corriam lágrimas entrecortadas de soluços de dor. Lampião prosseguiu: “Vou fazer uma mossa na tua orelha, para quando te encontrar saber que tu és o meu boi...” E tirou um pedacinho da orelha do infeliz. Em seguida, dirigindo-se a um fazendeiro que, por sinal, não lhe era muito simpático, falou: “Leve esse homem. Trate bem dele. Bota água fria na ferida e depois um bife bem quente. Quero ele vivo! Vivo, ouviu bem? Vivo!!” E com a fisionomia carregada, concluiu: “Se eu souber que ele morreu, volto aqui e não escapa um! Mato todo o mundo!”
Estava feita a “justiça” ao terrível D. Juan dos sertões, que, aliás, ainda vive na Bahia, gordo e pacato. Os leitores hão de estranhar que um homem se deixe castrar assim desamarrado, sem reagir, conformado, enfim. Mas o fato sucedeu, e não foi a primeira vez que assisti a cenas dessas. Há muita gente covarde neste mundo. Já vi homens passarem por momentos piores e nenhum deles reagia.
Cada vez me convenço mais de que ser valente é uma coisa difícil, que requer, antes de tudo, não ter amor à vida.
É preciso acrescentar ainda que ninguém deu a menor importância a esse fato. Os “cabras” assistiram ao “espetáculo” sem se impressionarem, como se fosse algo rotineiro...
Tampouco Lampião era de se impressionar com os crimes que praticava. Nem mesmo se referia a eles, parecendo que o assunto terminara onde devia terminar. Era o seu senso de “justiça” que falava mais forte.
TRAIÇÃO
LAMPIÃO não gostava de ser traído. Quem o enganasse e caísse em suas mãos, dificilmente escapava. O traidor, então, ainda que a traição não fosse com ele, nunca ficava sem punição. Aconteceu certa feita um caso que iria bem contado neste capítulo. Foi uma traição, ou, pelo menos, o que Virgulino julgava traição.
Nós havíamos dado um combate à volante, em Pau-d’Arco, interior da Bahia. O bando tinha naquela ocasião uns 56 homens, mas, apesar de ter sido forte o tiroteio, não perdemos ninguém. A refrega fora à noite, e o fato é que conseguimos nos afastar dos soldados.
Depois de muito andar, fomos dar numa fazenda, cujo proprietário tinha mulher e dois filhos. O bando estava faminto e a fazenda vinha a calhar. Há dias não comíamos nada que prestasse e eu, confesso, até milho cru comi. Chegando à fazenda, portanto, a alegria foi imensa. Matamos e comemos toda a criação do fazendeiro, inclusive dois bois. Todo o mundo saciado, Lampião chamou o casal e, recolhendo quinhentos mil réis de cada um, juntou mais cinco contos de sua parte, entregou-lhe, dizendo: - “Aqui está mais do que nós comemos. Com este dinheiro vocês poderão comprar muita coisa e cobrir os prejuízos. Mas, atentem bem: não digam à volante, quando ela passar, que eu estive por aqui. Ouviram? O casal concordou, e Lampião, antes de partir, reforçou a recomendação: “Se vocês falarem qualquer coisa, volto e não fica ninguém vivo!”
De nada valeu a recomendação, pois mais adiante quase fomos dizimados pela força volante, perdendo vários “cabras”. Lampião, diante das baixas, ficou intrigado, pois não costumava enganar-se, e ele se julgava seguro quando fomos surpreendidos pelos “macacos”. Bem informado como era, não tardou a saber que o casal o havia denunciado. E soube mais detalhes, pois fora a mulher quem metera na cabeça do marido procurar as autoridades e dizer que Lampião estivera na fazenda, comera e bebera e, ainda por cima, nada pagara.
A VOLTA
NÃO preciso perder tempo em dizer que Lampião voltou ao local... Chegamos de surpresa, um mês depois, isto após afastar com artifícios os soldados das proximidades. O casal, depois do capturado, como todos os que caíam nas mãos de Lampião, estava com o pavor estampado nos olhos.
Era de tarde, e entramos na casa sem que nos percebessem. Frente a frente com os dois “traidores”, Virgulino falou: “Mas então os dois sem-vergonha estão de novo em meu poder...” E dirigindo-se à mulher: “A você, não matarei, porque é mulher. Mas teu marido vai morrer!” A mulher do fazendeiro olhava-o estupefato, sem nada dizer. Mas Lampião prosseguiu: “Mas, mulher faladeira... tu vais tomar uma lição que nunca mais esquecerás...”
E depois de meditar um pouco, mandou que dois “cabras” raspassem a cabeça dela, o que foi feito rapidamente, deixando o crânio reluzente. A mulher não era bonita, e de cabeça raspada mais esquisita ficou. Estava horrorosa! A seguir, Lampião mandou a infeliz despir-se inteiramente. Ela obedeceu prontamente, fincando tal como veio ao mundo. O bando todo olhava intrigado aquele espetáculo diferente e grotesco, tal seja o de contemplar uma mulher careca e, ainda por cima, desnuda.
O EXEMPLO
AQUILO era o começo da vingança de Virgulino, que em seguida mandou trazer dois cavalos. Num deles mandou montar o marido, no outro, a mulher, sendo que esta ia na frente. O povoado ficava perto da fazenda e Lampião mandou que o casal desfilasse, impondo que todos os moradores contemplassem aquele quadro triste.
A mulher ia cabisbaixa, o homem, indiferente, talvez certo de que teria pouco tempo de vida. Quando o cortejo passava em frente a uma casa, Lampião dizia: “Esta mulher é uma faladeira. Vou matar o marido dela e quero que vocês saibam que a língua não adianta a ninguém. Quem fala demais sempre morre cedo”.
Durou quase uma hora a humilhação, até que, no centro do arraial, Lampião resolveu acabar com aquilo. Mandou primeiro que desmontassem o marido e o trouxessem até ele. Assim foi feito e, sacando do parabélum, deu um tiro na cara do infeliz, sem deixar de dizer o seu clássico: “Vai-te pros infernos, cão!” O homem caiu morto instantaneamente, com uma bala entre os olhos, e a mulher, sempre de cabeça baixa, prostrada, nem se mexeu.
Lampião então ordenou que a desmontassem e, dando-lhe uma chicotada nas costas, mandou que ela se pusesse a andar e não olhasse para trás. A mulher obedeceu sem reagir, como sempre, e atravessou nua o povoado, sem se importar que a observassem. Nem chorou sequer.
CARÁTER NORDESTINO
POR incrível que pareça, “cabras” não gostaram do que Lampião fez, o que serve para demonstrar o que é o nordestino, mesmo quando está atolado no crime, como nós. Eu também, como meus companheiros, achei que Lampião havia exagerado, mandando a mulher despir-se. Houve mal-estar no bando, que comentou o fato por muito tempo.
Bem curioso é o sertanejo... Um homem foi castrado e ninguém ligou. No entanto, despir uma mulher em público teve péssima repercussão. Deve ser o remanescente do pudor, que sempre persiste no coração de um nordestino...
Lampião, entretanto, não ligou muito o fato e, se não voltou a fazer o mesmo com outra mulher, é porque não tornou a apresentar-se oportunidade. Ele faria o mesmo novamente, já que matar uma mulher não era de seu feitio. Posso mesmo afirmar que Lampião nunca assassinou gente de saia, nem tampouco crianças. Esse respeito pela vida das mulheres, nunca cheguei a compreender. Admitia que se “ferrassem” as que usavam vestido curto e cabelo cortado, mas nunca matá-las.
E não é dizer que não fosse homem dado a conquistas. Antes de conhecer Maria Bonita, gostava de vez em quando de galantear uma mulher, mas fazia-o com comedimento. Da mesma forma com que bebia, pois se bebia bem, jamais alguém o viu bêbado. Tal comportamento é que lhe granjeava grande autoridade moral sobre o bando.
Depois de Lampião unir-se a Maria Bonita, nunca mais se aproximou de outra mulher, nem mesmo quando ela se afastava do bando para dar à luz em casa, ou quando queria simplesmente visitar os pais. Lampião foi de uma fidelidade a toda prova a Maria Bonita.
Mas não foi esse amor que o fez ser sempre magnânimo com as mulheres. Os que o conheceram antes de entrar no cangaço diziam que ele sempre respeitou as mulheres e as crianças. Era, talvez um dos poucos predicados que esse homem possuía, entre tantos defeitos.
No próximo capítulo: Massacre em Queimada
CONTINUA...
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