Por Joab Aragão
Para Manoel
Messias de Sousa, tianguaense, diretor geral da Faculdade Rainha do Sertão, de
Quixadá.
NA NOITE de 03
de outubro de 1985 coordenávamos, eu e um grupo de amigos, um leilão em
benefício da festa de São Francisco, na calçada da igreja matriz de Tianguá.
Ocupados os postos, recebíamos as ofertas que, generosamente, eram entregues,
em maior quantidade, pelos moradores da zona rural. A grande mesa na calçada
tornara-se pequena para acolher os cachos de banana, as cestas de abacate, as
garrafas com mel de engenho, as rapaduras, as batidas e outros produtos da
terra. Debaixo da mesa abrigavam-se patos, perus, galinhas e um bode
branco, de barbicha alourada. A presença maciça de pessoas simples atestava a
popularidade do santo de Assis. O carisma de Francisco, ultrapassado as fronteiras
da Itália, propagara-se também pelas plagas da Ibiapaba. Ali, como em todo o
Nordeste Brasileiro, o santo e os peregrinos tornam-se iguais no vestir e no
próprio sacrifício de existir. Daí a similitude do santo com os seus
seguidores. Terminada a novena, a banda de música anunciou, com o primeiro
dobrado, que o leilão iria começar. Entretanto, um casal de idosos que há certo
tempo estivera de pé, próximo à mesa do leilão, permanecia impassível no mesmo
lugar. A mulher, com vestido muito simples e apertado na cintura, com uma saia
de muitos panos, amparava o marido. O marido, macróbio de longas orelhas e
cabelo na venta, empertigava-se com o apoio da bengala, dentro de um terno azul
de mescla, cheirando a goma, novinho em folha. A camisa, destaque maior do
figurino, ostentava quatro bolsos bem caprichados e uma carreira de botões de
grosso calibre que subia até o gogó. Notando que o leilão iria começar, o casal
caminhou em direção à mesa. Tomado o fôlego compatível para a abordagem, a
velhinha me indagou se eu era o mestre do leilão. Respondi-lhe não ser o mestre
mas o encarregado, juntamente com os companheiros presentes. O que desejava,
pois, uma vez que estavam ali há tanto tempo? Literalmente, num linguajar bem
popular, falou:
– É que
meu véiotrouve uma prenda pro leilão... e a promessa é pra ele mesmo
arrematá... mas ele só tem quinhentos mil réis. Quer que seja a primeira
prenda, porque nós mora longe e precisa ir simbora logo... Bem. Ali estava
uma promessa feita ao santo de Assis, vinculada a alguns condicionamentos. Não
ficaria bem rejeitar uma prenda, mesmo sujeita às condições impostas. Analisada
a proposta, pedi-lhe pressa na apresentação da oferta. Incontinenti, o velhinho
levou a mão direita ao bolso inferior da camisa de mescla azul e de lá retirou
um ovo de galinha. Isso mesmo. Um ovo de galinha caipira, avaliado em quinhentos
cruzeiros, direto para o leilão, em lance único, sem direito a réplicas.
Decidir era preciso. E o bom senso aconselhou-me a deferir, na íntegra, a
proposta do casal. Sem delongas transmiti ao leiloeiro Manoel Gaioso as
condições apresentadas e deferidas.
Num
piscar de olhos, o martelo foi batido. Rápido, entreguei ao arrematante o
produto leiloado.
– Pronto. Aqui
está o ovo arrematado conforme vocês pediram. Estão satisfeitos? O velho,
enquanto recebia o produto arrematado com a mão esquerda, com a direita me
repassava a cédula de quinhentos cruzeiros. A resposta veio uníssona: – Fiquemo
sim senhor. E para complementar a resposta, o ancião concluiu:
– E
fico mais satisfeito ainda dando o ovo de presente para São Francisco. Recebido
o ovo de volta, agora como presente e não mais como prenda, encarei as duas
criaturas. Tão simples e tão humildes, retirando-se vagamente, num compasso de
apoio mútuo, com a ajuda de uma bengala. Talvez àquela hora o santo de Assis já
tivesse ceado algum manjar divino, e o pobre ovo não se prestava mais, diante
do avançado da hora, para a culinária celeste. Mas quem sabe se aquele casal de
octogenários não estaria, naquela noite, diante daquela mesa farta de prendas,
repetindo, inconscientemente, a oferta feita há dois mil anos por uma viúva
pobre, no contexto bíblico dos evangelistas Marcos e Lucas? Nessas divagações,
ouviram-se berros caprinos. Era o bode branco de barbicha loura que, suspenso
no ar pelas mãos do leiloeiro Gaioso, sinalizava a continuação do leilão.
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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