Por: Rangel Alves da Costa(*)
TUDO TÃO
SIMPLES
Debaixo do sol
da tarde, ou mesmo no tempo ameno do entardecer, passar diante da casinha de
Sinhá Totonha era convite certo ao despertar de uma vontade danada de ir até lá
experimentar um pedacinho de cocada branca.
E dizia ela,
em voz baixinha, cansada: “Coco novo, novinho, meu fio, de carne macia. E tudo
cortadim em pedacinho miúdo. Açúcar do bruto, grosso, escurecido. Depois ele
pega a cor do leite de coco. E um tanto de leite de gado, puro, sem ter
aguação. Adespois o tempero, o cravo, o mexido, o cuidado com o ponto”. Tão
fácil assim, porém ninguém fazia igual.
No passado,
quando as dores não atormentavam tanto suas juntas – pois segundo ela do joelho
abaixo doía tudo -, ali podia ser experimentado não só a cocada como o doce de
leite com bolas, cocada mole e pirulito feito de mel verdadeiro de abelha. De
vez em quando inovava com bolo de milho e de macaxeira. Uma delícia de lamber
os beiços.
De uns tempos
pra cá, contudo, mal podia ralar os cocos e se entregar aos outros afazeres
para que a cocada não deixasse de ir ao fogo de chão na hora certa. Era uma
luta danada, verdadeiro ofício de doceira na sua lide cansativa, mas que servia
a dois objetivos ao mesmo tempo: ganhar tostão de encobrir gasto e,
principalmente, receber a visita de um e outro.
Cada pessoa
que passava pela estrada defronte à casinha e resolvesse chamar à porta para
comprar pedaços de cocada era também certeza de um instante de prosa, de uma
palavrinha amiga em meio à solidão. Vivia sozinha a velha senhora, mas com
parentes na cidade que pouco caso faziam de sua vida. Mas gostavam de ir buscar
cocada de graça, e coisa muita.
No passado
havia acima da porta uma plaquinha em madeira dizendo da venda de doces e
bolos. Um dia a ventania derrubou e nem precisou colocar mais qualquer aviso,
pois tudo mundo já sabia o que podia encontrar ali na saleta da frente da
casinha de barro e ripa. Moradia simples, muito humilde, tão velha quanto a
dona, mas de uma limpeza sem igual.
Na saleta, por
riba de uma mesinha de apenas três pernas, bem arrumadinhos dentro de um
tabuleiro raso, repousavam saborosamente os quadradinhos de cocada.
Branquinhos, branquinhos, com alguns pedacinhos de coco despontando, cada naco
de avistado era um convite certeiro à gula doceira. Mistura no ponto, açúcar na
medida, o leite de coco enchendo a boca.
Mais ao lado,
noutra banquinha, duas moringas de barro queimado, como que gotejando pelo lado
de fora, com água refrescante, deliciosa demais depois do doce saboreado.
Estavam com a boca sempre coberta por panos de renda da mesma cor da cocada
oferecida, numa brancura que parecia sempre colocados ali no mesmo instante.
Três canecas de alumínio ao lado, limpinhas, brilhosas, sempre lavadas e bem
lavadas com bucha e sabão depois de cada uso.
A pobreza do
lugar contrastava com sua limpeza. Poucos e antigos móveis, apenas cadeiras e
um banco. Uma mesa de cozinha, uma cristaleira, e pronto. No quarto, a cama e o
oratório de herança familiar, com uma vela sempre acesa ao lado. Mas quem
entrava ali nem se importava com a simplicidade do lugar, vez que o que
interessava mesmo era o olhar guloso encontrando a mesinha com a cocada.
Por isso que
não havia jeito, não havia regime que resistisse. Duvido que alguém não
experimentasse três, quatro pedaços da delícia. Costumeiro visitante que era,
muitas vezes vi gente lambendo as pontas dos dedos após se fartar daquela
brancura com coco. Muitos saíam de lá com embrulhos, pacotes, levando a cocada
até mesmo pelos bolsos.
E depois pagar
aquilo tudo com quase nada de dinheiro. Certa vez perguntei se ela não tomava
prejuízo vendendo a cocada por preço tão barato, um quase nada diante da
delícia que era. E ela respondeu simplesmente que não, pois continuava
pinicando coco não para ganhar dinheiro, mas para ter por ali visitantes e
pessoas que tinham um tempinho para ouvir sua voz.
A riqueza
maior que queria ter era a presença de alguém, a palavra dita e ouvida, um
instante de doçura na sua solidão. A doçura do carinho, do respeito, do
convívio e proseado com quem não tinha apenas muita idade, mas principalmente
uma vida a recordar. E hoje uma vontade danada de comer cocada. Apenas uma
vontade danada.
Encontro
cocadas. Apenas encontro. Mas não encontro mais o sabor, a presença doceira.
Tudo passou do ponto. Tudo passou. Tudo passado. E como dói...
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos";
poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já
Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida
do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do
Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros
livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos
Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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