Material do acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho
COMO SE FORJA
UM CANGACEIRO
VINTE ANOS DE
CADEIA
Lampião Dizima
os Delatores – Há Mais Sordidez Nas Prisões do Que Entre os Cangaceiros –
Condenação Exagerada e Injusta – Sonhos e Esperanças Desfeitos.
Recebido como
raro animal de circo em todas as localidades a que chegava, acabei em Salvador,
depois de uma longa viagem de mãos amarradas. E não me fizeram, durante todo o
percurso, nenhuma maldade. Na capital da Bahia, a minha chegada constituiu um
verdadeiro carnaval, principalmente por parte dos repórteres, que não me
deixavam em paz. Procuravam-me todos os dias para entrevistar-me, mas, como eu
nada dizia, eles imaginavam tudo. Redigiam sozinhos as “minhas” entrevistas. Eu
era, de fato, um bicho raro, e até fui examinado por médicos que se detinham
cuidadosamente no meu crânio, medindo-o e tentando descobrir o que havia lá
dentro... Eu era um monstro que precisava ser bem estudado. E como o fui...
FIM DOS ROXOS
ANTES de
passarmos adiante, entretanto, convém dizer que, quinze dias após minha prisão
por delação de Adão Roxo, Lampião passou com o bando pelo local. Foi informado
de tudo e parece não ter gostado muito. Digo que “parece” porque imediatamente
matou ele mesmo Adão, e o bando acabou com o resto da família, exceto, é claro,
as moças e a própria velha que queria a minha morte a todo custo. Em seguida
incendiou a fazenda, destruiu as plantações e as criações e seguiu viagem. Só
escapou o irmão de Adão porque estava fora.
Não acredito que Virgulino tenha feito isso por não ter gostado do que fizeram a mim. É que ele nunca admirou delatores e, de mais a mais, aquela família sempre gozou de vantagens com ele. Intimamente, porém, depois do que fez, Lampião devia estar satisfeito, pois me sabia preso e, ainda por cima, livrou-se daquela família “ingrata” e que, para o futuro, só complicações lhe poderia causar.
A PRISÃO É
PIOR
DEPOIS de toda
a algazarra provocada pela minha chegada, fui mandado para a Penitenciária de
Salvador, na Feira do Curtume. Deram-me uma roupa listrada e entrei num novo
mundo, numa nova vida, da qual supus jamais me livrar. A cadeia é um ambiente
terrível e, para um garoto com quinze anos incompletos, então, nem se fala.
Sempre andei, desde que ingressei no bando, entre gente à-toa, mas na cadeia a
sordidez é maior. E como é triste olhar pelas grades, ver gente em liberdade e
não poder sair. Não ter dinheiro para comprar nem cigarros e às vezes ter que
pedir pela janela aos que passam pela rua. Quando se pede e não há recusa,
ainda passa, mas pedir e ouvir: “Se tu estás aí é porque não prestas!” aí é que
a humilhação maltrata mais do que pancada.
Dentro, porém, do regime penitenciário da Bahia, fui bem tratado, muito embora já chegasse analfabeto e de lá saísse da mesma forma vinte anos depois. Nunca ninguém fez muita força para me ensinar a ler, talvez pelo meu temperamento rude ou porque, de fato, era difícil mesmo ensinar a alguém desinteressado e bronco. O fato é que nos primeiros anos de cadeia eu só pensava em fugir. Pensei muito numa forma de me evadir e custei a cair na realidade de que dali só se sairia morto, indultado ou depois de cumprir a pena. Afinal, conformei-me.
Mandaram-me para a marcenaria, e eu consegui aprender alguma coisa, mas onde me destaquei foi nos trabalhos feitos com o chifre de boi. Sei fazer figas, fivelas, botões, bilhas de água, navios, uma infinidade de coisa com chifres, e ainda hoje ganho uns cobres com isso. Pagavam-me pelo o que eu fazia, e quando me puseram em liberdade eu tinha oito contos de réis. Não utilizei esse dinheiro, pois havia feito uma promessa de que, se me soltassem antes de cumprir a pena a que fui condenado, daria tudo como auxílio aos pobres. A pobreza de Salvador no dia de minha libertação, passou bem, à custa do fruto de meu trabalho de vinte anos...
145 ANOS
NA cadeia,
éramos três em cada cela. Conforme disse, levei um ano sem falar com ninguém,
mas depois fui-me civilizado, e conversava com o velho Faustino, o Bananeira e
outros mais. Bananeira, nem dois anos de cadeia pegou, pois soube inocentar-se
e lançar a culpa de todos os crimes do bando sobre mim.
As autoridades baianas sabiam que eu não poderia ir a julgamento com quinze anos incompletos, por isso esperaram que eu completasse 21 e me transferiram para Queimadas, a fim de que eu respondesse por crimes do bando naquele local. O julgamento foi uma vergonha e uma infinidade de testemunhas depôs contra mim, até que, no final, o juiz me condenou a 145 anos de cadeia! Lembro-me de que, na minha ignorância, ao ouvir aquela condenação tão longa, disse para o juiz: “Estudaste, estudaste, e continuas burro! Onde já se viu um homem viver tanto tempo assim”... Eu pensava que eles queriam me fazer viver tantos anos preso quantos os da sentença... Quando me trouxeram de volta para Salvador, a pena foi reduzida para trinta anos de reclusão.
ILUSÃO
FORAM vinte
anos cruéis os que passei na penitenciária, cumprindo uma pena de que, a rigor,
eu não tinha consciência de merecer. Sofri muito, e não desejo a ninguém, nem a
meu maior inimigo, castigo igual. Quem passou tanto tempo atrás das grades,
sabe muito bem que a pena de morte não é castigo e que ninguém pode ser feliz
dentro da cadeia. Duvido mesmo que a felicidade consiga penetrar numa
penitenciária. Lá só vive o remorso, o ódio, a desgraça e, como não pode deixar
de ser, a esperança...
De fato, a esperança acompanhou-me nesses longos e tristes vinte anos de cárcere. Um belo dia, sem dúvida, no ano de 1952, o presidente Getúlio Vargas insultou-me e eu deixei a cadeia finalmente. Lá entrei com quinze anos incompletos. Foi o dia mais feliz de minha vida, e eu supunha que, deixando o cárcere, tudo seria mais fácil e iria, enfim, encontrar a felicidade.
Ilusão... Até hoje ando a procura da felicidade e não a encontrei. A cadeia envelheceu-me o corpo, e quem me vê atualmente me dá mais dez anos. De qualquer forma, porém, estou solto e, se não sou feliz, pelo menos não sou desgraçado.
CONTINUA...
Fonte: facebook
Página: Antônio
Corrêa Sobrinho
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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