POR FERNANDO MAIA NÓBREGA
Os Caceteiros, também conhecidos como “Cerca-igrejas”, eram pessoas simples,
moradores de sítios e fazendas do Cariri, afamados por manusearem com destreza,
técnica e perícia um bastão de madeira nos combates que exigiam corpo a corpo.
No do século XIX, foi muito comum o uso dos Caceteiros como grupo paramilitar
na proteção das cidades ou em revoluções devido à escassez e dificuldades na
aquisição de armas de fogo. Era uma terrível e assustadora arma usada por eles,
tanto para defesa pessoal como para guerra, fabricada de várias maneiras,
conforme afirma Gustavo Barroso: “Quirim é o cacete meio curto, feito de uma
vergôntea de duro e fortíssimo jucá, assada, de canela de veado, cheia de
estrias, de negra maçaranduba ou coração de negro”.
Uma das
primeiras vezes em que se têm notícias da utilização desse contingente como
grupo paramilitar ocorreu na Confederação do Equador em 1824 pelo
Capitão-de-Ordens Joaquim Pinto Madeira. No combate de Picada, os Caceteiros
formando uma espécie de infantaria dizimaram ferozmente os adversários com
certeiros golpes desse bordão no crânio ou esfacelando ossos onde quer que
atingissem. Têm-se notícias da presença de 500 Caceteiros na Guerra do Paraguai
em 1865. Um fato bastante interessante é quando os Caceteiros se transformavam
em “Cerca-Igrejas”, espécie de defensores ou guardas da religiosidade popular.
Bastava qualquer ameaça que pairasse sobre a Igreja, mesmo infundada, eles se
reuniam autônima e independentemente e lá estavam como guardiãs da fé,
defendendo sua crença e sua religiosidade.
Um Medo
Coletivo... A mudança intelectual sofrida pela Europa nos princípios do
século XIX, foi profunda demais para ser aceita repentinamente nos cafundós do
nordeste brasileiro. As grandes transformações vindas com a Revolução Francesa,
em 1789, apregoando a igualdade, fraternidade e liberdade, impactaram
violentamente aqui no Brasil onde imperava ainda a escravidão.
Outro lema
proposto na Revolução era o banimento por completo da escuridão intelectual
reinante no planeta. Em plena efervescência do positivismo francês, difundia-se
o racionalismo e se sugeria o fim das tolas crendices religiosas impostas
principalmente pela Igreja Católica, a grande responsável pelo atraso
científico do mundo. Existiam pensadores que propunham, até, a troca do
catolicismo pelo culto à racionalidade. Chegou-se ao exagero de sugerir que a
imagem de Nossa Senhora de “Notre Dame” fosse substituída pela Deusa Razão na
cidade de Paris.
No Cariri essa
nova filosofia chegou de forma deturpada, gerando receio que tais heresias se
repetissem por aqui. O Brasil evidentemente não ficaria imune às
transformações ocorrida na França, posto que nossa elite era educada na Europa
e a França ditava a moda e costumes daquele tempo. Daí que em 1821 houve várias
manifestações, no sul do país e, no nordeste, em Pernambuco, clamando por uma
constituinte que viesse mudar o quadro social da nação.
Tal movimento
político se espalhou no interior do Ceará. Talvez pela similaridade com os
lemas da Revolução Francesa, o povo, sem muita instrução escolar, interpretou
erroneamente as notícias chegadas. Em pouco tempo, corria de boca em boca a
inverossímil notícia de que um grupo de ateus pretendia retirar, do altar da
matriz do Crato, a imagem de Nossa Senhora da Penha e por, em seu lugar, uma
prostituta de nome Úrsula! Ocorreu que no dia 05 de agosto de 1821,
celebrava-se, no Crato, uma missa de ação de graça pelo regime constitucional,
quando a igreja foi invadida pelos “cabras” da serra de São Pedro, armados de
cacetes, enxadas e foices, com o propósito de impedir que a Santa fosse dali retirada.
Na ocasião houve brigas e várias pessoas saíram feridas.
O fanatismo religioso no Cariri era tão forte a ponto dos “Cerca-Igrejas” não
dependerem do ponto de vista oficial da Igreja ou de líderes políticos para
tomarem suas decisões. Auto se denominavam de “Protetores da Fé”, “Guardiãs do
Templo” e defendiam per si a bandeira de suas próprias crenças. É bem
verdade que essa autonomia tinha origem na desconfiança dos populares contra os
padres. Os sacerdotes, salvo honrosas exceções, viviam em concubinatos,
amealhavam riquezas e durante bastante tempo apoiaram o regime escravocrata do
Brasil. Há registro que as igrejas do Recife foram invadidas e se quebraram
imagens de santos. “Nos municípios de Acarape e Quixeramobim, no Ceará,
registram-se também, nos anos de 1874-1875, a invasão de templos
católicos, e aí são rasgados livros de atas e quebrados móveis”. (06). Havia
uma profunda mágoa na alma do povo contra os padres lazaristas franceses que
abandonaram, com medo de morrerem, a cidade do Crato quando lá surgiu cólera
morbus, em meados do século XIX, procedimento esse muito contrário aos
ensinados por Jesus Cristo.
Um outro fato
que veio servir de divisor de águas entre a igreja oficial e a popular foi o
denominado “Milagres de Juazeiro”. Em 06 de março de 1889, na Igreja de Nossa
Senhoras das Dores, quando o reverendo padre Cícero Romão ao dar comunhão à
beata Maria de Araújo, a hóstia consagrada se transforma em sangue! (07) A
notícia do milagre se espalhou rapidamente pelo sertão e a cidade passou a ser
ponto de peregrinação e o sarcedote a ser venerado como santo pelos
nordestinos. A Igreja oficial enviou várias comissões de inquérito para
averiguação dos fatos e os considerou como embuste. Uma forte pressão foi
exercida sobre o padre Cícero para que negasse a miraculosidade dos
acontecimentos. A posição forte da Igreja revoltou os sertanejos que passaram a
tê-la como inimiga.
Beata Maria de
Araújo
Um bom exemplo
dessa dicotomia ocorreu em Juazeiro do Norte em 15 de setembro de 1921. O
vigário da cidade, Padre Esmeraldo, resolveu demolir uma das torres da igreja,
por estar deteriorada, em péssimo estado de conservação, para reconstruí-la
depois. Aos olhos dos Caceteiros ou “Cerca-Igrejas”, isso se constituía uma
invasão profana à Casa de Deus! Como guardiões da fé, ali estavam para
defenderem-na com sacrifico das próprias vidas! Afirma a escritora Amália
Xavier: ”Armados de cacetes pensavam que deviam assim defender a casa de Nossa
Senhora (...)” . Via-se, então, que pouco a pouco a formação de um sistema
autônomo protetor da fé popular. Sem qualquer comando, sem um local fixo, o
grupo de Caceteiros surgia organizado e forte. Bastava um boato qualquer e eles
se arvoram de um poder defensor da fé popular.
O Dia do
Massacre... Após a morte do Padre Cícero ocorrida em 1934, aconteceu um processo
inverso do que pensava a igreja católica: o número de fanáticos em Juazeiro do
Norte aumentou assustadoramente! Era freqüente a presença de beatos na
calçada da igreja pregando o fim do mundo ou interpretando à sua maneira o que
o patriarca de Juazeiro falara. A religiosidade popular aumentava de maneira
impressionante.
Eis que um
fato fez eclodir o velho medo coletivo da usurpação da Casa de Deus! Em 29 de
setembro de 1934, Monsenhor Pedro Esmeraldo, ao rezar missa, aproveitou o
sermão para falar sobre o regime comunista e as recentes atrocidades que essa
forma ateísta de governo vinha cometendo na Rússia. No ápice da empolgação de
sua oratória, atentava aos tementes a Deus sobre uma possível destruição da
Igreja por partes dos ateus comunistas! Agora era que a coragem dos romeiros
estava à prova: expulsar os inimigos de Deus quando chegasse esse terrível
momento! E por essas fatalidades do destino, em meio a sua pregação, o
padre Esmeraldo foi acometido de repentina dor de cabeça e caiu fulminado em
cima do altar que celebrava a missa!
Eis uma das
torres que o Pe. Esmeraldo pretendia demolir
e foi impedido
pelos Caceteiros
A estupefação
popular foi enorme! Os fieis viam naquilo um aviso divino. O velho pesadelo da
invasão à Casa de Deus veio à tona. Dr. Geraldo Menezes Barbosa retrata com
maestria a sensação dos presentes: “Ficara, porém, seu sermão comentado
entre os romeiros e sua morte, no altar como uma ação divina, um martirológio,
a exigir dos fiéis uma represália corajosa contra a vinda dos comunistas.
(...)”.
A morte do
vigário, dois dias após a síncope sofrida na igreja, em circunstância tão
inusitada foi o acicate para a junção do grupo dos “Cerca-Igrejas” na função de
protetores da Morada da Mãe de Deus. Em pouco tempo foram-se aglutinando a
frente da matriz homens armados de foices, enxadas e bastões sob o comando de
um certo Venâncio “(...) chegando a se reunir, na aludida igreja, em número
mais de 200”. Como um exército perfeitamente treinado e organizado, os
Caceteiros de logo traçaram a estratégia a ser tomada. Um grupo seleto
circundaria a imagem da Santa como um rosário dentro da igreja e os demais
permaneceriam nas portas impedindo a passagem de quem quer que fosse. Ninguém
saía ou entrava sem a permissão dos chefes. É evidente que tal aglomeração
nas dependências da matriz tornara-se inoportuna para a população local que
reclamava do aumento de furto e desordem na cidade. Acusava-se, até, do uso de
maconha por parte de alguns invasores. Em que pese os constantes rogos das
autoridades locais, os Caceteiros se mantinha irresolutos na sua decisão.
Intitulavam-se de “(...) Leões e leões não recuam diante do perigo!”.
Certa ocasião, o próprio Padre Juvenal Colares Maia, substituto do falecido
vigário, tentou dialogar com os invasores e foi agredido violentamente. De
outra feita, Preto Júlio, Guarda Civil conhecidíssimo na cidade, foi confabular
com os Caceteiros e saiu gravemente ferido. Diante da situação
insustentável, o prefeito José Geraldo da Cruz se viu obrigado a solicitar a
intervenção policial. Dirigiu um telegrama relatando os fatos ao Secretário de
Polícia e este autorizou ao comandante do batalhão a tomar as providências
cabíveis.
Seguindo
ordens, o capitão da polícia Osimo de Alencar Lima, juntamente com o colega
também Capitão Firmino de Araújo, reuniu uma comissão de civis e tentaram
convencer os ocupantes da inutilidade de suas ações. Em dado momento, porém, um
fanático investiu com uma foice sobre o civil Antonio Braz que não morreu graça
a interferência do capitão Firmino. O diálogo se tornara inútil. De
Fortaleza emanou um telegrama do Secretário de Polícia exigindo a expulsão dos
invasores. Que fosse evacuada a igreja ocupada por mais de dois meses. Uma
volante policial comandada pelo sargento Mena Barreto, outro sargento, um cabo
e doze soldados, armados de fuzis, dirigiram-se ao templo com o intuito de
promover sua desocupação. Mesmo diante da presença dos militares, não
demonstrando medo, os ocupantes vociferavam:
-“Viva a meu
Padim Padre Cícero e
a Virgem Santa
Maria Mãe de Deus!”.
O clima emocional foi ficando paulatinamente mais quente. De um lado se encontrava a volante policial pronta para cumprir a ordem recebida; do outro lado os Caceteiros em pé de guerra. O sargento Mena Barreto vira para seus comandados e grita: - “Acelerado!”
Ao penetrar na
igreja o corpo policial se viu acuado diante da ameaça dos “Cerca-Igrejas” que
partiram decididos em cima dos soldados. Diante do perigo iminente, o sargento
ordenou que fosse disparada uma saraivada de balas para o alto com o intuito de
amedrontar os agressores. Os fanáticos ao notarem que ninguém havia sido
atingido, viram nisso uma intervenção de Deus e aos gritos de “Vivas a meu
Padim!” investiram ferozmente contra os policiais. Sem alternativa, o sargento
Mena Barreto bradou: - “Fogo! Fogo!”
Os corpos dos
insurgentes começaram a cair e o sangue a salpicar pelas paredes da capela.
Gritos de desesperos foram ouvidos por todo lado e numa correria desordenada
abandonando a igreja. Horas depois, já alta noite, um caminhão recolhia os
mortos e os levava para serem enterrados numa cova coletiva no cemitério local.
O número de mortos nunca foi oficialmente informado. Porém, há registro de seis
ou sete óbitos e vários feridos. Os Caceteiros se manifestaram novamente
no massacre ao Capitão José Bezerra em 1936 e a ojeriza do povo pelo clero
oficial culminou com a morte do Monsenhor Joviniano Barreto em 1950, na cidade
de Juazeiro do Norte, assassinado brutalmente por um louco alcunhado Pé de
Galo.
Fernando Maia Nobrega
Fonte: http://historiadejuazeiro.blogspot.com.br/2011/07/noite-dos-caceteiros.html
Fernando Maia Nobrega
Fonte: http://historiadejuazeiro.blogspot.com.br/2011/07/noite-dos-caceteiros.html
E em março...
http://cariricangaco.blogspot.com.br/2015/02/a-noite-dos-caceteiros-por-fernando.html
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