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terça-feira, 23 de janeiro de 2018

A CATIVANTE ILICITUDE

*Rangel Alves da Costa

Muito se combate a filantropia eleitoral. Argumenta-se que as atividades filantrópicas desenvolvidas por candidatos nada têm de altruísmo humanitário, vez que sempre objetivando angariamento de votos. Num gesto que a muitos seria apenas um ato de bondade, sempre o ocultamento de objetivos menos nobres, ao menos para o eleitor cativado pela esmola eleitoreira. Nesta seara, configurariam abuso de poder econômico se realizadas em período próximo ao pleito, ou mesmo no ano eleitoral, como ocorre agora.
O mesmo se diga com relação à promoção pessoal dos pretensos candidatos. E logicamente que muitos procuram se promover a todo custo, mas principalmente pela ação perante comunidades carentes e barracos caindo aos pedaços. Chegam em festim, alardeiam mundos e fundos, concedem dádivas, pagam contas, distribuem benesses, porém nada mais que buscando assegurar os votos daqueles beneficiados. Do mesmo modo, se os recursos utilizados ferirem o princípio da isonomia, depreende-se haver abuso de poder econômico. A ação benemérita e a promoção seriam ilícitas, ilegais aos olhos da justiça eleitoral.
Como observado, a legislação eleitoral procura inibir ou não permitir que pretensos candidatos utilizem o poder econômico para angariar votos. E em muitas situações, principalmente nas regiões mais distantes e de flagrante empobrecimento, isto se dá através da distribuição de alimentos, remédios, materiais de construção, água, etc. Em ano eleitoral ou nas proximidades do pleito, seria impensável que pleiteantes agissem de modo a - sob a aparência de estarem simplesmente ajudando pessoas necessitadas - mercantilizar a vontade do eleitor.
Contudo, o que fazer quando se está diante da ausência dos poderes que deveriam suprir as necessidades básicas da população carente e perante aqueles que procuram colocar, por exemplo, comida no prato e água na cisterna? O que fazer quando a pessoa pobre, que seja eleitora ou não, deixa suas preocupações de lado e vai correr atrás, verdadeiramente esmolando, quando sabe que um candidato, parlamentar ou liderança política, chegou em visita? O que fazer quando a carência e a desvalia de tudo são tão alarmantes que deixariam envergonhadas a moralidade, a legalidade, a própria justiça?
É uma questão deveras melindrosa, principalmente se for considerado que a pobreza não pode ser ainda mais penalizada pela lei eleitoral, que ao invés de combater todas as ilicitudes, apenas elege focos de atuação. Neste sentido, tenha-se que a lei nem sempre pune com a perda de mandado aqueles que flagrantemente abusaram do poder econômico, ainda que denunciados e processados. Mas impede que candidatos prestem favores às classes mais desfavorecidas. Há casos em que mesmo o amontoado de provas verossímeis sobre abuso do poder econômico não são suficientes para mudar o resultado de um pleito. Aos olhos da justiça não houve crime. Então será crime dar o pão, pagar a conta, fornecer um botijão de águas, um saco de cimento?


Sim, a lei diz que é crime um candidato chegar numa comunidade pobre ou numa povoação predominantemente carente e distribua cestas de alimentos. Também é crime puxar do bolso dinheiro e fornecer para pagamento de conta de luz, de água, da padaria ou da mercearia, ou mesmo para comprar um botijão de gás. A lei também não permite que o pretenso candidato forneça uma carrada de água para que o gado e o homem sedentos bebam do tanque ou da cisterna. A lei, agindo com as cegas da justiça, estará punindo muito mais a pobreza do que o candidato. Este leva o processo adiante, elege-se, assume e termina o mandato. E a pobreza, pode esperar?
Não tenho conhecimento se algum julgador eleitoral já foi buscar elementos de convicção bem à porta do barraco, dentro do casebre, nos fundos da casinhola, na despensa e na cozinha, por dentro da panela vazia sob o fogão de lenha, no rente carcomido da madeira da mesa. Não sei se o julgador eleitoral carrega na sua pena aquela outra pena, a da comiseração, que escreve por linhas tortas na vida de um povo inteiro. Que se julgue o crime, que impeça candidaturas, que tire o mandato daqueles que cometeram abusos. Mas qual o vulto de uma cesta de alimentos perante a dinheirama toda que corre solta e que a justiça, muitas vezes, vergonhosamente dilui ou simplesmente não quer enxergar?
Não se defende, aqui, a legalidade do ilícito nem a interpretação distorcida da lei, de modo a minimizar o cometimento de ilegalidades. O que está ilegal, contudo, é deixar de avistar a realidade social em nome da norma proibitiva. O que está errado, e completamente errado, é deixar que a frieza da norma se sobreponha à fome, à sede, à carência, à desvalia de tudo. Que a firmeza da lei recaia primeiro sobre as eleições forjadas em milhões, sobre os abusos milionários cometidos, e não apenas sobre uma cesta básica concedida.
A lei tem de sair do código e caminhar pelas ruas, tem de abdicar de seu trono e conhecer o mundo real, tem de guardar sua toga e ir conhecer o quanto sofre uma família inteira desde o amanhecer ao anoitecer, e tudo por falta de tudo. Não há pão para a criança que chora, não há remédio para quem sente dor, não há esperança de futuro para quem deseja somente viver. O alento que chega é - e quase sempre - através do candidato e sua cativante ilicitude.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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