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quinta-feira, 24 de maio de 2018

A COTA


Por Junior Almeida

No município de Capoeiras, Pernambuco existem três comunidades remanescentes de quilombos: Fidelão, Cascavel e Imbé, sendo que nessa última existe o “pé de serra” e o “Imbé de cima”. As pessoas do pé de serra são em sua maioria descendentes de Angola, são negras, com a cor de pele bem mais escura do que os moradores da parte mais alta do sítio, onde existe até “galegos”. Alguns moradores do pé de serra são um pouco arredios na convivência das demais pessoas.

Dentro da comunidade existe até certa rivalidade entre os dois Imbés, que parece não se misturar, mas existem muito mais coisas em comum, como por exemplo, o gosto por festas, de dançar e de beber. Tem morador do Imbé que a “pequena” dose de cachaça que toma é no copo americano cheio até a boca. Toma, enxuga a boca com as costas da mão, e segue normalmente, como se nem tivesse bebido.


Nas redondezas desses lugares existem as fazendolas, que utilizam desde que surgiram, a mão de obra das pessoas do lugar. Homens, mulheres e até crianças. No tempo que não existiam as ajudas do Governo Federal, muita gente se sujeitava ao trabalho na roça apenas “pela boia”, que nada mais é do que trabalhar um dia inteiro sem receber salário, apenas por um prato de comida.

Na festa da padroeira do Imbé, Santa Quitéria, de tempos atrás muita gente do lugar aproveitou para atualizar sua obrigações com a Igreja, nas confissões, batizados e casamentos, mas outras, porém, aproveitaram mesmo foi pra cair na farra, dançando ao som da tradicional bandinha de pífanos do Imbé e enchendo a cara nas barraquinhas de bebida e tira gosto. A cana de cabeça também naquele ano não faltou. Patrocínio de alguns políticos do município. Sobras da última campanha.

Um morador do pé de serra que parecia ser o mais animado para os festejos, começou a beber e dançar no final da tarde da sexta feira, logo após largar o serviço em uma das fazendas da região. Emendou o sábado, queimando seu dia de serviço no roçado, e entrou pelo domingo. Foi até tarde da noite tomando todas e mais algumas. Na segunda feira cedinho o cabra estava com a mãe de todas as ressacas. Não tinha ânimo pra nada, mas precisava capinar um bom pedaço de terra do seu patrão.

Era trabalhador do alugado, necessitava disso pra viver. Ganhava pouco, mas esse pouco lhe servia e muito. Junto com outros peões o sujeito começou cedinho a “puxar cobra para o s pés”, mas naquele dia a disposição lhe fugia. Ele estava em tempo de cair de tão grande sua ressaca. De vez em quando queria vomitar, mas não nada saia. Parecia que o dia iria se comprido pra ele. Para descontrair os colegas de trabalho, que a essa já estavam de cara feia pela falta de produção, o cabra começou a contar os detalhes da festa, e foi fazendo graça, pegando sua enxada como se fosse uma mulher e começando a dançar. Com a boca imitava o som da banda de pífanos. O beiço virado do sujeito do pé de serra tocava todos os instrumentos da bandinha num autêntico beatbox.

Sem que ele visse, o patrão chegou por trás dele, e assistiu toda a sua apresentação. O fazendeiro, que estava de frente para os outros trabalhadores, cruzou o indicador nos lábios, pedindo o silêncio dos empregados. Alguns riram, sabendo que o roceiro dançarino ia se lascar. O animado homem nem se atentou pra nada, achou que os colegas de roçado riam motivados por suas mungangas.

Ao final do dia, hora do pagamento, um a um dos trabalhadores iam ao fazendeiro, sentado sob um frondoso umbuzeiro, receber seu dia de serviço. Na hora de pagar ao festeiro, o patrão entregou-lhe o pagamento faltando uma parte. Esse estranhou e perguntou:

Oxente meu patrão. Tá faltando dinheiro aqui...

Tô descontando o dinheiro da cota. Você quer passar o dia dançando sem pagar nada, por acaso? Respondeu o fazendeiro, para a alegria com gosto de vingança do resto dos peões.

*Figura meramente ilustrativa pintada por Portinari.

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