Por: Rangel Alves da Costa(*)
AS CRÔNICAS DO CANGAÇO – 20 (CANGACEIRO E JAGUNÇO – FARINHA DO MESMO SACO?)
Se existiam duas raças sertanejas que não se topavam, que nunca se deram muito bem de jeito nenhum, estas eram a dos cangaceiros e dos jagunços. Cangaceiro tinha raiva de jagunço que se mordia; este se metia a cangaceiro pra ficar mais assombroso. Quando o jagunço falava em comparação, logo dizia que o acerto na mira era o que contava.
Certa feita, ao passar pelo fazendeirão do Coronel Sinésio Baraúna, um afamado senhor de terra e gente que tinha na qualidade de bicho, Virgulino Lampião lhe fez uma observação com palavras que soaram quase como repreensão, ao afirmar que não admitia que ao chegar ali aqueles pistoleiros de uma figa, que o Coronel tinha na qualidade de jagunços, lançassem seus olhares desconfiados para o seu bando. E disse mais:
“O Coronel é homem prudente demais, porém se perde na escolha das companhias. É preciso separar o joio do trigo, Coronel. Digo que é um erro seu acreditar que esses homens de cara de bicho, bigodudos, sujos e fedorentos, e trazendo não sei quantas armas nos escondidos das ancas, tenham alguma serventia para o senhor. São todos uns covardes, bandidos comuns, assassinos sanguinários, uns falsos e frouxos, que não pensarão duas vezes se o coronel da outra cerca pagar um tostão a mais. E para acabar com o ex-patrão. Pois digo que não gosto e não vou mais admitir que esses cabras covardes fiquem ao menos olhando os meus amigos de longe. Qualquer dia desses um cabra como Tiziu não vai gostar de estar sendo observado e então a coisa vai feder”.
O Coronel Baraúna ficou deveras espantado com o que ouviu do Capitão sertanejo. Homem de muito poder e pouca leitura, de muito dinheiro e pouca compreensão sobre a realidade do mundo, muitas vezes até agia como se tudo se resumisse ao que achava que estivesse certo ou errado. Por isso mesmo nunca parou para pensar se existia alguma diferença entre ser cangaceiro e ser jagunço. Para ele, que pagava tanto a um como ao outro por proteção, tudo dava no mesmo: homens armados e perigosos, que não pensariam duas vezes para acabar de vez com o desafeto.
Foi por isso mesmo que disse a Lampião que não entendia bem porque a raça cangaceira não gostava da raça jaguncista, pois os dois agiam no mesmo ramo de negócio. E quase dá um piripaqui, um traculejo no coração, quando viu o Capitão dar um muro na mesa que fez derrubar os copos e a garrafa que estava em cima. Ao ver a asneira dita pelo poderoso, porém ingênuo Coronel, o rei dos cangaceiros esbravejou igual bicho atacado, fera ferida:
“O senhor Coronel pode dizer que acabou de nascer de novo, pois tem muita sorte de não receber agorinha mesmo um balanço varando essa boca de ouro que acabou de dizer a maior besteira do mundo, uma afronta sem igual aos bravos homens das caatingas. Mas quem se viu dizer que cangaceiro e jagunço fazem parte do mesmo ramo de negócio? Quem já se viu dizer uma infâmia dessas homem desnaturado, pecador. Respeito é bom e eu gosto, e por isso mesmo vou dizer uma coisa para que nunca mais esqueça...”.
Coitado do Coronel, com uma mão prudentemente sobre o peito, a outra levada à boca pra segurar os bofes que pareciam querer sair, todo avermelhado de medo, suando mais que pano de cuscuzeiro, apenas ouvia tudo de olhos esbugalhados, olhando sempre para os lados da janela para ver se avistava algum jagunço que não lhe deixasse morrer sem defesa. Calado estava e assim permaneceu enquanto Lampião esbravejava:
“Há uma diferença grande entre cangaceiro e o jagunço. Só vou dizer o que o jagunço é pra que logo possa perceber o que o cangaceiro não é. Todo jagunço é frio, covarde, mata qualquer um a mando e muitas vezes nem sabe quem matou e porque matou. Jagunço porta arma não pra se defender, mas para amedrontar, sacar a qualquer momento e fazer o que não presta diante de inocente. Jagunço tocaia o vizinho, faz emboscada pro amigo, faz rodeios para pegar um compadre, se entrincheira nos tufos de matos para matar covardemente. Jagunço é besta sem princípios, sem temência, sem respeito algum nem a quem lhe paga. Hoje serve a um e amanhã já tocaia o ex-patrão a mando de outro. Pra jagunço tanto faz que o outro seja inocente ou não, vez que a morte de pessoa dá no mesmo que matar peçonhenta. Todo jagunço é uma covarde assassino, um traste de sangue frio, pestilento, imprestável. Todo jagunço é pistoleiro, criminoso, matador de aluguel, um verme assassino de qualquer um. Mas tire a arma do jagunço pra ver o homem que encontra nele. Nada, nadica de nada, pois gente dessa imprestável qualidade só é valente com arma na mão. Sem ela se ajoelha, se mija todo, começa a chorar pedindo clemência. Mas ele faria o mesmo diante de sua futura vítima? Agora responda Coronel, me diga se cangaceiro é desse jeito, age assim, brinca desse modo com a vida do ser humano, principalmente de gente inocente?”.
Logicamente ainda impossibilitado de falar qualquer coisa, nem o Coronel respondeu nem Lampião ficou pra ouvir. Despediu-se com pouco gesto, ainda acabrunhado, e saiu feito um raio da silibrina. Lá fora se ouviu o grito de vamos cambada, rumbora! E pelo entrevão, da janela, todo mijado nas calças de linho puro, de branquidão agora amarelada, enxugando o suor friorento com lenços e mais lenços, o poderoso Baraúna avistava o bando virando a curva da estrada. Estava contente e ao mesmo tempo temeroso.
Até hoje os estudiosos do cangaço - horrível e desastradamente chamados cangaceirólogos - discutem sobre tal episódio. A repercussão foi grande, ora se foi. E ainda continua. Para uns, Lampião agiu com toda razão ao diferenciar cangaceiro de jagunço, pois o modus operandi de um era totalmente diferente do outro, bem como os ideais e objetivos existentes em cada um. Mas outros negam veementemente qualquer validade nas assertivas lançadas pelo rei cangaceiro.
Para estes, tanto cangaceiro como jagunço eram farinha do mesmo saco, agiam impiedosamente e espalhavam o mesmo terror. E afirmam ainda que o medo da população era muito maior com relação aos cangaceiros do que aos ditos jagunços, até mesmo porque estes não eram tão contumazes na ação. A única distinção que viam era no medonho modo de agir pistoleiro de mando.
Este, o jagunço de sangue no olho e fel no coração, agia na emboscada solitária, na tocaia premeditada e tendo qualquer um como alvo potencial. Bastava mandar e ele fazer. E não se esperasse outra coisa senão o requinte na crueldade, a maior perversidade que podia existir. Certamente os cangaceiros não agiam assim. Tal era o entendimento aproximado daqueles que entoavam o coro do Coronel quando este afirmou que todos faziam parte do mesmo ramo de negócio.
Não vou tomar posição nem de um lado nem de outro. Contudo, a análise daquela realidade histórica demonstra haver evidentes diferenças entre cangaceiros e jagunços. E grandes, acentuadamente reconhecíveis por qualquer um mais cuidadoso na análise. E o primeiro aspecto a ser citado dá plena razão a Lampião, ao afirmar que cangaceiro jamais poderia ser comparado a pistoleiro ou assassino de mando ou aluguel.
Em primeiro lugar, cangaceiro nunca agia sozinho, não deixava o seu bando para fazer desafio ou maldade por conta própria. Se o cabra aparecesse num lugar era porque o grupo estava por perto. Daí que ninguém já ouviu falar que gente de bando fizesse serviço avulso, arrumasse empreitada por fora sem o seu comandante saber. Como consequência, não era contratado por ninguém para fazer tocaia ou emboscada. Se algum acerto houvesse com algum poderoso, este era feito através do Capitão, e conjunta a ação.
Do mesmo modo, cangaceiro não vivia nas proximidades do coronel fazendo às vezes de guarda-costas ou esperando que o mandão desse a ordem pra derrubar um ou outro inimigo. Ademais, se um cangaceiro matava algum desafeto, tal crime geralmente era imputado ao bando como um todo, a toda cangaceirada, e não a um exclusivamente. E diferente ocorria com o jagunço, pois este matava e se descoberto se danava estrada afora. Se o coronel mandante não o escondesse na sua fortaleza ou não mandasse dizer à autoridade que o cabra era seu, podia ter certeza que o matador iria se escafeder no oco do mundo.
Poucos foram os pistoleiros, jagunços afamados, que continuaram na região após cometer crime de grande monta. Sem confiar na proteção do coronel, o verdadeiro jagunço acertava logo o alto valor antes de derrubar e depois, já estando com o dinheiro no bolso, sumia que ninguém sabia do paradeiro. Ao menos por uns tempos, quando voltava às escondidas e para matar a qualquer preço. Os que decidiam ficar faziam fama ligeiro, mas também não duravam muito na vida. De repente, um zé-ninguém acertava o valentão.
Mas a verdade que o ódio de Lampião por gente desse tipo era tão grande, tão patente na sua caminhada, que jamais se fez de esquecido daqueles olhares atravessados que os jagunços do Coronel Baraúna deram em direção aos seus comandados. Certa feita apareceu por ali de surpresa e nunca mais os pistoleiros lançaram olhar odiento em direção a ninguém.
Ao menos é o que dizem. Coisa que não acredito muito, pois agindo assim estava se igualando à corja que tanto odiava.
(*)Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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