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segunda-feira, 23 de julho de 2012

GORJEIOS E MADRIGAIS (Crônica)


Por: Rangel Alves da Costa*
Rangel Alves da Costa

Meu coração pastoril compôs uma canção para quem tem amor. Tão bela e solene, lisonjeira e graciosa, doce melodia que embala a brisa, esvoaça junto às asas do passarinho, certamente fluirá feito suave e aquecido orvalho nalgum coração apaixonado.

Busquei pelos cantos e baús os instrumentos musicais para compor a cantiga. Um velho alaúde, um clavicímbalo, uma harpa. Catei no pensamento distante, pois forçosamente recordando os tempos desde muito idos que sabia o que era amar, e me pus a juntar palavra com palavra, som e melodia, tudo como se constrói a pétala.

Não sei por que pensei em reviver assim tantos momentos bons, não sei os motivos de querer compor novamente uma poesia musical. O último madrigal que concebi feito joalheiro artesão, rude lapidador de pedra preciosa, não conta menos da metade da idade que tenho agora. E já sou mais velho que as sombras do porão.


Talvez a saudade me fizesse reinventar o brilho, a alegria, o prazer. Mas apenas a fortuna da criação, pois a composição em si, ainda que bela demais no que dedilha a paixão em versos sonados, chega ao outro como uma flecha ferindo o coração com o mel do amor. E muitos dizem que dói, e depois passa no primeiro abraço, no primeiro beijo.

Dizem ainda que são misteriosas as consequências dos madrigais nos recônditos e inocentes corações femininos. Após ouvirem a canção acompanhada de dolente instrumento, quase num murmúrio poético e musicado, as belas jovens correm aos espelhos, rasgam sonhos infantis, colocam as brincadeiras num canto e vão à janela namorar a vida. E não só a vida...

Muitas vezes, num tempo ido, bem pouco antes da metade da idade que tenho agora, fiz madrigais para apaixonar corações. Apenas um poeta, bardo de canção solitária, vate de rima sofrida, talvez jamais tenha conseguido colocar uma manhã na canção, um entardecer na cantiga, um noturno na melodia. E jamais amei através dos madrigais. E jamais amei através de nada.

Jamais amei, porém conheço muito bem o que é o amor, o seu significado, a sua extensão, as consequências e o seu poder curativo. Conheci o verso pelo reverso, não amando, conhecendo o amor. Dos meus olhos de lince, do meu romântico coração e da minha sabedoria da terra, chegaram as folhas secas com os escritos sobre tudo.

E certa vez me chegou uma folha de fim de outono contendo tudo sobre o amor. Estava tão frágil, magra e fraca, ressecada e ressequida, que nem falou. Mas li nas suas linhas cinzentas que um dia foi verdejante, que imponente quis amar, mas a vaidade primaveril foi lhe distanciando de tudo. Até que o vento passou avisando que o seu tempo na natureza já estava acabando.

Quando quis amar qualquer folha, eis que já era outono. E um dia ela se desprendeu do galho e foi trazida pelo vento até a porta da minha casa. De sua tristeza e aflição, percebi o porquê de a solidão ser amiga da ventania; do seu lábio sem cor percebi quanto doloroso é viver sem amor. E pelo sofrimento da folha aprendi a beleza do amor.

Por muito tempo tive medo de também me tornar folha seca, ressequida, e também ter o mesmo destino nas mãos do vento. Sem amor, sem ser amado, ainda assim jamais desprezei a fortuna desse sentimento maior. Porque não coube a mim sua dádiva não hei de maldizer os que amam.

Por isso mesmo componho madrigais para os amantes. Quem amar e quiser presentear seu bem-querer com uma canção pastoril, pode aparecer por aqui que coloco a melodia numa garrafa, fecho-a bem fechadinha e depois ensinarei como fazer para ecoar a melodiosa cantiga, o madrigal dos amantes. Basta avistá-la e abrir os braços. A garrafa cairá e a canção se espalhará ao redor.

Ontem mesmo compus um madrigal maravilhoso. Mas este guardarei só para mim. Logo ao alvorecer abri a porta e os passarinhos voaram em minha direção com pios, gorjeios, trinados e cantigas alegres da natureza. Da profunda alegria, do encantamento infinito com aquela presença, abri os braços e também voei.


E lá em cima, pertinho das nuvens, um passarinho que voava ao meu lado e cantarolava uma velha canção de ninho, de repente se virou e disse que aquele gorjeio era com saudade de alguém. Mas apenas saudade, pois agora se bastava amando o seu próprio canto.

Quando pousei cantarolei como o passarinho. Lembrava do seu gorjeio e de sua saudade. Então nasceu um madrigal tão melodiosamente triste, tão parecido comigo, que este não darei a ninguém. Guardarei a partitura no meu coração para sempre, nem cantar cantarei mais. Não quero mais sofrer. Não quero mais sofrer...

Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com



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