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segunda-feira, 23 de julho de 2012

A cangaceira Sila de Zé Sereno


Sou boa corredora, e por isso escapei do cerco que matou Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros que tiveram suas cabeças decepadas e exibidas pelo Nordeste. Participei do cangaço por dois anos, depois que Zé Sereno me seqüestrou para ser sua mulher.

Nasci em Poço Redondo, interior de Sergipe, às margens do rio São Francisco. Na minha casa, éramos oito irmãos – seis homens e duas mulheres –, sou a sexta filha. Meu pai tinha uma pequena fazenda. Quando eu tinha 6 anos, minha mãe morreu, nem sei de quê. O povo diz que foi de nervoso. Era uma vida sacrificada. Mas tínhamos uma família unida, meu pai nos ensinou a ter respeito pelos mais velhos, a ser honestos e a ter personalidade.

Desde menina eu escutava histórias sobre Lampião, mas achava difícil ele chegar ali. Só que um dia ele passou pela cidade. Eu estava na casa de minha madrinha, e os coiteiros [sujeitos que protegiam os bandidos] foram avisar meu tio que os cangaceiros estavam chegando. Ele tinha uma venda e poderia ser assaltado. Meu tio trancou eu e minhas primas num quarto. E eu louca para ver Lampião! Deitei no chão para espiar por debaixo da porta. Eles levaram açúcar, bolachas e foram embora. Só vi os pés dos cangaceiros.

Eu tinha uns 12 anos quando papai morreu, e meu irmão mais velho, João, é quem tomou conta da gente. Eu estudava na cidade, só ia para a fazenda nas férias. Corria o boato de que os cangaceiros seqüestravam as moças e, como eu era bonitinha, cheia de luxos, meu irmão tinha medo de que eu fosse à fazenda: 'Os cangaceiros podem lhe carregar'. Foi ele falar, no dia seguinte cinco deles invadiram nossa fazenda.

Mandaram a gente preparar uma galinha e era para eu levar até o riacho, onde eles estavam acampados. Eu disse que não iria, mas meu irmão achou que seria pior. Fui caindo pelo caminho, de medo. 

Zé Baiano

Tremia tanto quando entreguei a comida para o cangaceiro Zé Baiano que ele disse: 'Menina, nós não vamos fazer nada com você'. E me deu um anel, que não aceitei. Fui para casa e comecei a arrumar a mala para fugir quando Zé Sereno, o chefe do bando, apareceu e ameaçou: 'Volto daqui a oito dias para te carregar. Não adianta fugir. E não conte para ninguém'.

Guardei segredo os oito dias todinhos, morrendo de angústia. Tinha medo de que fizessem mal à minha família. No dia marcado chegou o bando. Fizeram uma festa na fazenda. E eu triste, pedindo a Deus que Zé Sereno não quisesse mais me levar. 

Neném do Ouro, Luiz Pedro e Maria Bonita

Dancei com Luís Pedro, que estava com Neném, sua mulher. Ao amanhecer, Neném me disse: 'Sila, se prepare que a gente vai embora'. Imaginei que, se não fosse, matariam minha família.

Fui com a roupa do corpo. Meus irmãos nem me viram sair e, mesmo que tivessem visto, quem era louco de reclamar? Fomos andando pelo mato, calados. Zé Sereno na frente, eu atrás.

Era tudo tão estranho, parecia que eu flutuava. Eu chorava quietinha, e Neném me dizia que não adiantava chorar. Se a gente pisava numa pedra e tirava do lugar, os homens colocavam de novo, para não deixar pistas para os macacos [policiais].



Zé Sereno não tinha aparência ruim: era baixo, de tipo nortista e tinha uns 20 anos. Ganhou o apelido de Sereno por causa do temperamento. Mas eu estava morrendo de medo dele.

À noite, ele estendeu um cobertor em cima de uma pedra, e tive de me deitar com ele. Foi assim minha primeira noite. Fui sabendo que a partir daquele dia seria sua mulher. Naquela época o marido era um só, não tinha esse negócio de separação. Ele nunca me maltratou, mas tinha o jeito dele, a grossura dele. No dia seguinte, paramos em uma fazenda e a volante [grupo de policiais] apareceu. Nesse tiroteio morreu Neném. Apesar de termos passado só um dia juntas, ela foi minha primeira amiga ali. Eu só chorava, desesperada.

Dali fomos encontrar Lampião, que estava acampado em Sergipe. No caminho, outro tiroteio. Comecei a pegar prática de fugir correndo. Chegando no acampamento, Lampião me olhou e deu uma bronca no Zé: 'Como, uma menina?'. Zé respondeu que eu era a mulher ideal para ele. Eu imaginava Lampião baixo, e ele era alto, magro. Simpático, mas de pouca conversa.

Maria Bonita me chamou para ir à barraca dela e trocar de roupa, porque eu ainda estava do jeito que saí da fazenda. Me deu um vestido dela de brim, enfeitado com passamanarias. Ficou enorme. Ela era mais gorda e mais baixa do que eu. Maria era divertida, inquieta, chamava a atenção, mas não era tão bonita. Tinha muita mulher bonita no mato. As que conheci melhor foram ela e Dulce, mulher do cangaceiro Criança.

No dicionário, cangaceiro é bandido. Mas o Lampião da história oficial não é o mesmo que conheci. Bandido, essa palavra a gente não pode tirar. Mas ele só era bandido para quem era para ele também. Ele se preocupava com a moral do bando, tinha amizades, considerava as pessoas, as crianças. E era muito religioso, rezava de manhã e à tarde.

Nunca presenciei um ato de selvageria. Às vezes ficava sabendo de execuções necessárias à segurança do bando, mas nunca vi tomarem nada dos pobres, ao contrário. Quando chegava nas casas, se a moça ia casar, a gente dava o enxoval todo. Se via criança passando fome, o que a gente tinha dava. Nossa riqueza era a polícia nos deixar em paz.

De noite, se não tinha perseguição, a gente tirava os bornais [bolsas de pano que usavam a tiracolo], estendia uma coberta. Senão, era só encostar em uma árvore. Dormia debaixo de chuva, de xiquexique [cacto]. Nunca mais deitei numa cama nem sentei em uma mesa para comer.

A comida principal era bode assado. De vez em quando matavam um boi roubado. Quando não tinha nada, comíamos jacuba, uma mistura de rapadura com farinha e água. Eu tinha vontade de comer arroz, mas era difícil.

Às vezes eu ficava no coito [esconderijo] com Maria Bonita. Lampião ia encontrar amigos e deixava uns cangaceiros com a gente. Ali, um respeitava a mulher do outro, não tinha bagunça. Falam que os cangaceiros eram machistas, mas isso dependia da inteligência da mulher. No nosso bando eles respeitavam muito a nossa opinião, mesmo que a gente não tivesse muita função nas lutas. Nos curtos períodos de trégua, as que sabiam costurar costuravam. Tínhamos máquinas de manivela. Apesar da vida dura do sertão, os cangaceiros eram vaidosos, gostavam de usar jóias e roupas enfeitadas.

Uns dois meses depois da partida, engravidei e fiz o enxoval do meu filho todinho no mato. Fiz camisinhas em opalina, tecido fininho, tudo cor-de-rosa, bordadinho à mão. E nasceu homem. Mas, com dois dias, tive que dar ele. Era proibido ter crianças no bando: dificultaria as caminhadas e o choro seria uma pista. Ao nascer, a criança era levada por um coiteiro para alguém criar.

Tive meu filho embaixo de uma árvore, Maria Bonita foi a parteira. No outro dia Lampião jogou uma agüinha na cabecinha dele, rezou um padre-nosso e o batizou como João do Mato. Aí o coiteiro chegou, e chorei muito. Dobrei as roupinhas dele e mandei entregar para uma pessoa de minha confiança. Meu leite demorou a secar e fiquei muito deprimida. Soube depois que com seis meses João adoeceu e morreu.

Eu não tinha muita noção do que era o cangaço. Apesar de ser considerado um movimento revolucionário, naquela época ninguém pensava assim, nem Lampião. Era o jeito de sobrevivermos sem obedecer aos coronéis. Eu achava que aquilo não era vida de gente. Mas não tinha saída.

Nos tiroteios, eu rezava muito, era tudo caindo, e eu rezando. Uma vez, tinha tanto macaco em volta que a gente não podia mais andar. Um tiro passou perto da minha cabeça e levantou um tampo de terra do chão. Vi muita gente morrer na minha frente, mas, engraçado, nunca pensei na morte.

Apesar do sofrimento, entrei no espírito do grupo. Andava com um punhal e uma pistola 'máuser' pequenininha, que dava cinco tiros, igual à de Maria Bonita. Mas só usei uma vez, para libertar o Zé. Ele entrou em uma casa e um homem o derrubou no chão. Por causa do peso do armamento, quando um cangaceiro caía, era difícil levantar. Eu cheguei na hora, peguei minha pistola e falei: 'Se não soltar ele agora, eu mato'. Depois Zé falava para todo mundo que, se não fosse eu, ele tinha morrido.

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