Por: Rangel Alves da Costa(*)
Nos tempos mais antigos, idos em que o sertão era marcado pela força coronelista, pela arrogância jaguncista e pela submissão do autêntico e empobrecido sertanejo – sem esquecer, porém, da lutas cangaceiras que se travavam noutras veredas -, teve lugar um acontecimento que até hoje é relembrado debaixo dos pés de pau, em tardes de proseado.
E diz que certa feita o homem mais poderoso da região, o Coronel Querilânio Bonome, senhor de um mundão de terras que não acabava mais, fora bichos de monte e jagunços de rodo, deu uma cusparada na varanda do casarão e depois chamou um cabra para ordenar que fosse chamar o jagunço Tervino. E que o pistoleiro estivesse ali antes que aquele cuspe secasse. E apontou.
Em menos de dois minutos o mais famoso dos jagunços estava na presença de seu patrão, fazendo reverência com o chapéu e dizendo que estava à ordem pro que desse e viesse. Antes de falar sobre o que realmente queria, o Coronel Bonome olhou para o local da cusparada e depois levantou o olho pra perguntar onde estava aquele que havia ido lhe dar o recado.
Sem saber nada do que se tratava, Tervino disse apenas que talvez ele tivesse ido tomar algum chá de planta medicinal, pois sem um pingo de sangue como estava e tremendo feito vara verde, só podia estar doente. E o coronel nem pensou duas vezes pra dizer:
“Quando vosmicê pisou aqui na varanda uma cusparada que dei havia acabado de secar. Gosto de castigar a quem não cumpre minhas ordens dentro do tempo acertado. E vosmicê chegou quando o cuspe já havia secado. Entonce o jeito que tem é mandar dar um jeito naquele cabra, e de um jeito que ele num cuspa nunca mais nessa vida. Entendeu o que quero dizer? Vosmicê tá encarregado de mandar outro cabra fazer o serviço, pois tenho outra missão que vai lhe ser mais fácil do que imagina...”.
O jagunço era homem perigoso demais, pau pra toda obra segundo o desejo do seu patrão, e por isso mesmo já havia tocaiado e derrubado mais de vinte, desde inimigo comum do coronel até desafetos poderosíssimos, da mesma patente coronelista sertaneja. Contudo, mesmo trazendo consigo essa sina de matador, fazia tudo pra não puxar o gatilho se antes de fazer a derrubada conhecesse um motivo injusto para uma morte tão medonha e covarde.
Por isso mesmo já tinha no pensamento que ia mandar o coitado marcado pra morrer pra bem longe dali, e depois dizia que o homem já tinha ido pro beleléu do mal repentinamente acometido. Mas isso ficaria pra depois, pois em seguida perguntou ao coronel o que pretendia que ele fizesse daquela vez. Coisa boa não seria, disso tinha certeza. E se pôs a ouvir a ordem da cobra velha, jaracuçu da pior espécie. E lhe chegaram as palavras:
“Vosmicê sabe muito bem que nunca fui homem de aguentar nem desaforo nem desfeita de ninguém, seja padre ou governador. E sabe também que quem atravessa o meu caminho tem de sair por bem ou por mal. Imagina vosmicê que já faz mais de vinte anos que não faço inimizade, não arrumo confusão nem mando derrubar ninguém por causa de terra. O último a se lascar foi o besta do Coronel Elesbão. E agora me surge uma coisa sem pé nem cabeça, coisa só pra tomar espaço no meu tempo. Não é coisa do outro mundo, é verdade o que vou dizer. Conhece João do Burro, aquele mesmo que tem uma filepinha de terra lá vizinha da minha Fazenda Taquara? Sei que conhece. Pois bem. Preciso ajuntar a nesga de terra dele com a minha e o cabra se nega a vender pelo preço que eu mandei oferecer. E diz que só aceita por dez vezes mais. O cabra safado deve ter enlouquecido. Como ele tem uma filha muito bonita, morena cheirosa, ainda cheia das purezas da mulher, então num queria que a bichinha ficasse sem pai. Mandei oferecer o dobro do oferecido e o safado mangou da cara do mensageiro. Então agora cabe a vosmicê, Tervino, cuidar do negócio. Mas agora não vou oferecer nada não. Tocaie o bicho, faça uma emboscada bem feita, e acerte bem na testa do bode velho. Quando o corpo for encontrado e a família empobrecida estiver chorosa, na precisão, apareça por lá e bote esse dinheiro aqui na mão da mocinha e diga quem lhe mandou como auxílio de entristecimento. E num esqueça de dizer a flor sertaneja quem tem muito mais desse aqui pra ela, bastando que ela queira...”.
O coronel falava numa tranquilidade de sacristão. Acendeu o cachimbo de fumo importado, entregou o maço de dinheiro na mão do jagunço e antes que este saísse ainda avisou: “Amanhã já quero esse trabalho feito. Já tô sentindo o cheiro da flor mimosa. Agora anda, vai, vai. E não esqueça de mandar matar também o outro que deixou o cuspe secar...”.
Antes de sair, Tervino prometeu que tudo seria feito segundo o determinado pelo patrão. Mas botou o pé do lado de fora da varanda meio acabrunhado com essa situação. Havia percebido que lhe havia sido repassada a responsabilidade por mais uma morte desnecessária, injusta, desumana, sem cabimento algum. Já estava na hora de o coronel saber que as coisas não eram mais assim como ele queria não, tudo na bala, no sangue, na morte, na covardia da emboscada. E geralmente de gente pobre e inocente.
Decidiu que não cumpriria a ordem recebida de jeito nenhum, até mesmo porque andava de olho caído por aquela mocinha que agora o coronel queria se intrometer. Se corresse até lá para contar sobre a encomenda da morte talvez a família ficasse agradecida e o recebesse para um café de vez em quando. Então seria a porta aberta para adentrar naquele coração agrestino. Mas antes de ir até lá resolveu fazer outra coisa não menos importante. E seria o fim daquela história toda de perseguição, tocaiagem, encomenda de cabeça de gente.
Correu até o rapazinho que também já estava marcado pra morrer, aquele mesmo do cuspe, contou-lhe a situação e fez uma surpreendente proposta. E era aceitar ou perder a vida. E disse ao quase morto que daria aquele pacotinho de dinheiro que o coronel havia mandado entregar a outra pessoa se ele fosse até a varanda do casarão e acertasse em cheio o cabrunquento do velho coronel. E entregou sua própria arma carregada e o dinheiro.
Cinco minutos depois ouviu o disparo. Correu até lá para contar tudo aos outros jagunços e acalmar a situação, afinal de contas já havia até passado o tempo de algum cabra valente prestar contas com o safado do velho mandante de pistolagem. Mas assim que chegou defronte ao casarão parou surpreendido.
De lá de dentro, tranquilamente e de arma na mão, saiu João do Burro, aquele mesmo pai da mocinha e que o coronel já havia encomendado sua morte. Sabendo que morreria a qualquer momento, se antecipou e reverteu a situação. O jagunço mandou que ele seguisse sem medo, que fosse embora cuidar da família. E depois entrou na varanda e deu uma cusparada por cima do coronel estrebuchado no chão.
(*)Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
http://blograngel-sertao.blogspot.com.br/2012/07/uma-estoria-do-sertao-cronica.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário