Guilherme
Alves, o ex-cangaceiro "Balão". - Foto: Josenildo Tenório
Texto de Cláudio Bojunga para o jornal “O Estado de São Paulo” –
01/08/1973
No dia 27 de outubro de 1972, o ex-cangaceiro Balão, de cabra de Corisco, Anjo
Roque e Lampião, cabra macho, pai de 25 filhos, tendo o corpo fechado por um
patuá secreto e inconfessável; Balão, portanto, na verdade Guilherme Alves, mas
por direito Balão porque sempre teve o peito estufado, recebia nas costas cem
quilos dentro de um poço desbarrancado, perdido na ocasião os dentes,
fraturando as costelas, rachando os lábios, cegando os olhos, afundando o
peito. A cidade de São Paulo liquidava um cabra que sobrevivera aos tiros de
Mané Neto e que durante nove anos de caatinga nunca pisara em farmácia. O
declarante tem algo a dizer?
- Sabia que
aquele poço ia cair, mas o mestre de obras Guerino começou a me torrar. Entrei
para ele ver. Só me lembro de ter enchido um balde de terra.
Aposentado.
O curioso é que, havendo lutado durante os primeiros trinta anos de sua vida e
trabalhado durante os outros trinta que também viveu, nunca teve férias. Ouçam
a história:
Depois de nascer em Paulo Afonso, Bahia, no ano de 1910 viu com quatro anos de
idade o diabo – “um neguinho
preto botando fogo na roupa”. O bicho desapareceu lá pelo Pilãozinho.
Balão não
chegou a ver seus pés de bode, mas diz que “o resto era homem de mesmo”. Foi a
única vez que viu o diabo em pessoa. Depois, viu só suas obras. A seca era
braba e a criação se acabava de sede. Chegou então a volante, sovou o pai em
cima de um saco molhado de sal e cortou o couro cabeludo do irmão. Balão, tipo
genioso, decidiu vingar. Nisso passa Corisco.
Briga
– “recebi um
fuzil comprido e seiscentas e sessenta balas. Gastei tudo no primeiro dia”.
Comida – “quando achávamos uma rês ninguém ia percurar o dono; passava a do
coco. Mas era difícil encontra e as vêis nós abria a boca pro céu e não
encontrava nem uma salivinha na ponta da língua”. Ascendência – “minha bisavó
foi pegada lá pros lados de Mato Grosso. Era da aldeia Carajá". Lampião -
“num queria mudá nada, morreu purque tava cansado – brigar vinte anos num é
vida de homi”.
Corpo Aberto
Balão só viu o mar no dia em que se entregou. Foi em 1938, Salvador, na barra
do Rio Vermelho. Caiu n’água e gostou. Só que de noite teve a primeira dor nas
costas de sua vida. Andaram dizendo que aquilo lhe abrira o corpo. Balão não
acreditou, mas nunca pôde tirar a prova, já que a partir daquele dia nunca mais
entrou num tiroteio.
Ficou um ano no quartel, foi bem tratado pelo capitão Aníbal e depois deu no pé
a fim de procurar seu destino. Para quem nunca havia trabalhado aquele seu
primeiro emprego na estrada de ferro, de trena e baliza na mão, foi até manso.
Puxou com os “ingenhero” uma linha de Contendas a Monte Azul; tomou conta de
noite do barracão de lentezinhas, acabou arranjando um caso com o
"dotô" que lhe cortejou a namorada. Não bateu nele, não – deu só uns
tiros numa porta – o "dotô" pulou uma janela e um abaixo-assinado
removeu-o do local. Fugiu correndo para o Sul sem documento. Corpo agora
definitivamente aberto.
Passou por um investigador da polícia em Pederneiras, passou por Tupã, encarou
uma pensão portuguesa em Marília. Era o tempo da Guerra e do gasogênio, os
carros corriam com um caldeirão atrás. Balão plantou um pouco de algodão, mas
trabalho mais duro era um suplício – o homem que só tinha empunhado o fuzil
criou 17 calos na mão no dia em que cortou sua primeira lenha. Sua época mais
feliz foi logo depois, quando arrumou um barzinho à beira da estrada em troca
de cem votos municipais. Depois inventaram um negócio de imposto e Balão veio
para São Paulo – 30 de outubro de 1960. Foi dando logo uma entrada para comprar
a casinha.
Itaquaquecetuba. Por ali, perto de São Miguel Paulista, Balão
descobria mais gente do que na cidade de Belém, por exemplo. Milhares de
nordestinos. Isso aliás nunca o espantou – Balão disse que não se espanta com
“panorama”, aliás não se espanta com nada.
E foi aí que começou o inferno. Começava sua carreira como poceiro – poços de
10 a 15 metros, sem ajudantes a não ser seus filhos “de menor” que trabalhavam
de graça e não conseguiam alçá-lo do fundo da terra. Os peitos e as costas
rebentadas de noite. Recebeu seu primeiro cheque sem fundo no dia 25 de outubro
de 1963 – ele se lembra de que era o banco Auxiliar de São Paulo, emitido por
dois larápios, o Norberto Tedesco e um outro pilantra vestido com uma falsa
farda da Aeronáutica.
À procura dos direitos
Num gesto de absoluta ingenuidade, Balão devolveu não só o primeiro mas o
segundo e o terceiro. Depois assinou promissórias que ficaram sem resposta.
Quando o prazo esgotou Norberto pediu a Balão que “desse o fora” e fosse
procurar seu direito. Que voltasse quando conseguisse encontra-lo. Balão saiu
desesperado com a desfaçatez. Nem pegou o elevador: desceu a escada a pé e foi
comprar uma garrucha e 25 balas na rua Joaquim Nabuco. Mas “se os maiores
estavam criados, os de menor não tinham parentes ou aderentes – estariam
perdidos com um pai na cadeia”. Saiu procurando seus direitos – trocou a
garrucha por um rádio de pilhas.
Foto: Josenildo Tenório
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Depois venceu
a sanfona de oitenta baixos, fez galeria na rua Santo Antônio (“o mestre de
obras era ruim, quase meto a picareta no gogó dele”) trabalhou no ar comprimido
para a Sobraf – nunca tinha visto aquilo –, o português jogou-o lá dentro até o
dia em que o médico disse que ele não tinha mais idade para aquele trabalho,
bateu estaca na rua Veridiana. Sempre à procura de seus direitos, mas com um
ditado à mão: “boi muito amassado dentro do curral se num soltar fica ruim”.
E foi indo até o dia em que o Guerino, o maldito Guerino, resolveu desafiá-lo a
entrar naquele poço evidentemente apodrecido. Sabia que ia desabar. Mas ele
torrou, e Balão cavou um balde – o último balde bem cavado de sua vida: dentes,
costelas, olhos, peito – e a dor na virilha, a sinusite crônica, a urina
avermelhada de sangue. E os direitos?
Balão nunca se separa das muitas carteirinhas ensebadas mas em ordem, dentro do
bolso da camisa. Depois de tantos anos de vida sem lei, é quase uma obsessão a
lei. Afinal, a cidade grande e o mundo industrial é que são os civilizados.
Carteira profissional n° 2502, chapa 1180 da Sobraf, etc... A carteira está
presa na Delegacia do Trabalho na rua Martins Fontes, pois Balão finalmente
resolveu fazer um processo. Está liquidado, soterrado, o corpo mais que aberto
e não recebe o devido. No bolso, cartõezinhos de advogado:
“Na forma combinada apresento-lhe o senhor Guilherme Alves, vítima daquele
acidente em que ficou soterrado num poço de fundação”.
Bônus!!!
Balão, em
registro de Antônio Amaury - (Obs. Foto não
compõe a matéria original)
Um boi amassado dentro de um curral.
Está devendo duzentas pratas na venda, ainda não acabou de pagar a casa. - Se
num soltá fica ruim. Ultimamente deixou novamente seus cabelos crescerem.
Encheu os dedos de anéis. Quem sabe, num arranja um papel em filme de
cangaceiro. Está procurando seus direitos.
A última filha de Balão tem dez dias. Quem vai dizer a Balão que Corisco fez
bem em não se entregar?
Créditos para Antônio Correa Sobrinho
http://lampiaoaceso.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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