“Jornal de Alagoas”,
edição de sexta-feira, 9 de setembro de 1938 e intitulada “Bandido mata
bandido”. Aí me lembrei de um pequeno artigo jornalístico da década de 1980,
que me foi presentado pelo amigo Paulo Moreira, potiguar que há muitos anos
vive no Rio de Janeiro.
O relato de
1938 é sobre o cangaceiro Barreira, um antigo bandoleiro dos sertões que para
deixar este, como dizia o professor Estácio de Lima, “Estranho Mundo dos
Cangaceiros”, levou como salvo-conduto a cabeça de um companheiro. Junto com
sua horrenda atitude ficou para história uma impactante foto que mostra vários
aspectos de um momento de muita violência no Nordeste do Brasil.
Macabro
Salvo-Conduto
Em uma
segunda-feira, dia 5 de setembro, dia de feira livre na cidade alagoana de Pão
de Açúcar, as margens do Rio São Francisco, logo começou a correr a notícia que
em uma propriedade distante cerca de 36 quilômetros havia um cangaceiro
desejando entregar-se as autoridades
Prontamente o tenente José Tenório Cavalcanti, a maior autoridade policial presente, preparou um grupo de policiais para seguir ao encontro deste cangaceiro na propriedade Santo Antônio[3]. Aparentemente esta gleba era localizada próxima a uma área denominada Caboclo.
Quando lá
chegaram os policiais encontraram um jovem com a tradicional roupa de
cangaceiro, com cerca de 20 anos de idade, boa aparência, muito calmo,
tranquilo, que trazia consigo um rifle Winchester e a cabeça decapitada de um
homem de tez clara, igualmente jovem, bastante cabeludo e que havia sido morto
horas antes.
Ele se apresentou
como sendo o cangaceiro Barreira e a cabeça era a do cangaceiro Atividade, seu
companheiro no grupo que tinha como chefe o cangaceiro alcunhado como
Português. Comentou que seu nome era João Correia dos Santos, sendo filho de
Manoel e Maria Correia e era natural da região, do lugar Furna.
Logo alguém,
que não sei quem foi, sacou de uma máquina fotográfica e clicou o macabro
salvo-conduto. Provavelmente o cenário deste instantâneo foi de alguma maneira
produzido e esta é sem dúvida uma das fotos mais marcantes do período do
cangaço.
Logo o jovem
cangaceiro e a cabeça de Atividade foram levados para Pão de Açúcar, onde
chamaram muita atenção da população local. Depois seguiram para a cidade de
Santana do Ipanema, a cerca de 50 quilômetros de distância, onde um repórter do
“Jornal de Alagoas” ouviu Barreira.
O fora da lei
comentou que a cerca de um ano vivia em contato com os cangaceiros do grupo de
Português, sendo inicialmente convidado a seguir pelas veredas do sertão de
arma na mão. Mas o jovem recusou o quanto pode, até que foi ameaçado de morte
pelo chefe se não fizesse parte do bando.
Já sobre a
ideia de entregar-se a polícia e usar a cabeça de Atividade como uma espécie de
salvo-conduto junto às autoridades, provavelmente surgiu após Barreira ver
algumas das muitas reproduções da famosa foto com as cabeças cortadas de
Lampião, Maria Bonita e nove outros integrantes do bando e expostas um mês e
uma semana antes na escadaria do prédio da prefeitura da cidade de Piranhas.
Talvez tenha imaginado que se fizesse igual aos policiais, poderia ser mais bem
aceito por estes.
Seu pai
inclusive havia entrado em entendimento com o tenente José Tenório e o então
todo poderoso coronel José Lucena de Albuquerque Maranhão, maior inimigo
conhecido do cangaceiro Lampião e comandante do 2º Batalhão da Polícia Militar
de Alagoas, sediado na cidade de Santana do Ipanema. O coronel Lucena comentou
ao velho Manoel Correia que seu filho não sofreria problemas, desde que
auxiliasse as forças volantes no combate aos cangaceiros. Barreira então
aguardou uma oportunidade de sair fora daquela vida de arma na mão.
Percebemos
igualmente no relato de Barreira ao jornalista que para ele, após as mortes na
Grota do Angico, o desbaratamento dos grupos de cangaceiros era eminente e isso
foi relevante para sua decisão. Além disso o conhecido chefe Corisco teria
“fracassado terrivelmente” (talvez em uma provável rearticulação dos bandos) e
estava “bebendo muito”. Quanto a Português, seu ex-chefe, Barreira o considerou
“covardíssimo”, que “fugia das lutas” e apenas enviava seus cangaceiros em
“missões” de extorsão e punição a fazendeiros da região que não lhes dava
dinheiro.
E foi numa
dessas “missões” que Barreira colocou seu plano de sair do cangaço em
funcionamento.
Negociando Com Uma Cabeça
Ele, Atividade
e o irmão deste, alcunhado Velocidade, seguiram na madrugada do dia 5 de
setembro para o povoado de Belo Horizonte, próximo a propriedade Santo Antônio.
O trio de cangaceiros era comandado por Atividade e tinham como missão
incendiar uma casa no povoado, cujo proprietário era Elísio Maia. Porém
Atividade ordenou a Barreira algo muito impactante e muito controverso – o
jovem cangaceiro teria de “matar o seu próprio irmão e um seu tio, que lá
moravam.
Segundo o
relato de Barreira ao jornalista do periódico “Jornal de Alagoas”, sem
especificar como, este começou a “azucrinar” propositadamente a paciência do
cangaceiro Atividade para evitar cumprir esta função. Na sequência, ao passarem
próximo a um riacho, Atividade ordenou a Barreira que fosse buscar água para os
cantis e teve início uma nova discussão. Nisso, a fim de evitar problemas,
Velocidade se prontificou a fazer a tarefa, descendo por uma rampa até o
riacho.
Era a
oportunidade que Barreira queria e sem titubear este desfechou um tiro de rifle
nas costas de Atividade!
Velocidade
voltou rapidamente para socorrer o irmão e Barreira passou a descarregar vários
balaços na direção deste. Ao jornalista do periódico alagoano Barreira afirmou
que atingiu e matou Velocidade com seus tiros, o que é uma mentira, pois este
cangaceiro foi capturado meses depois.
Após isso
Barreira chegou próximo de Atividade, que segundo o seu algoz ainda estava
vivo, e com um facão decepou lhe a cabeça.
Queria Ser
Policial, Mas Ficou na Cadeia…
A história da
decapitação de Atividade foi publicada em pequenas notas em alguns jornais do
Rio de Janeiro e de outras capitais do Brasil. Não encontrei registros que a
terrível fotografia circulou na imprensa.
Pouco tempo
após a detenção de Barreira outros cangaceiros foram se entregando as
autoridades, como o grupo do cangaceiro Pancada. Além deste chefe faziam parte
do bando sua mulher Maria Jovina (ou Maria de Pancada), Cobra Verde, Peitica,
Vinte e Cinco, Vila Nova e Santa Cruz. Todos foram levados para o quartel de
Santana de Ipanema, onde Barreira se encontrava.
Apesar do
crime hediondo praticado por Barreira, que poderia ocasionar retaliação por
parte dos outros cangaceiros, nada aconteceu. Acredito que os cangaceiros
estavam mais preocupados com os seus incertos destinos naquele momento.
Sob as ordens
do coronel Lucena havia uma atmosfera positiva no quartel e uma relação entre
cangaceiros e seus antigos perseguidores que pode ser considerada como
amistosa. Até porque os policiais precisavam da ajuda dos cangaceiros detidos
para prender os que ainda se encontravam soltos, principalmente Corisco.
Em novembro este
grupo de cangaceiros estive em Maceió, a capital alagoana. Ali foram alvos de
extrema curiosidade pública, tomaram banho de mar, realizaram compras no
comércio acompanhados dos soldados e pagaram regiamente o que adquiriram. Os
antigos cangaceiros estavam felizes e muitos comentavam aos jornalistas que
desejavam ser policiais e não queriam mais ser chamados pelos seus antigos
“nomes de guerra”.
O jornal
carioca “A Noite”, na sua edição de segunda-feira, 14 de novembro de 1938,
página 8, traz uma interessante reportagem sobre estes cangaceiros em Maceió.
Os membros do antigo grupo de Pancada, além de Barreira, tiveram oportunidade
de narrar um pouco de suas vidas antes e durante o período como cangaceiros.
João Correia
dos Santos, o Barreira, então com apenas vinte anos de idade, era o mais novo
dos bandidos. Nesta nova entrevista não negou que matou Atividade, não escondeu
os motivos e nem que o decapitou. Mas acrescentou que era sempre “insultado”
por ele. Daí em diante nesta entrevista, Barreira começou a mudar os relatos
sobre sua vida pregressa.
Ele já não
vinha mais do lugar Furnas, mas havia sido “vaqueiro do fazendeiro João Lessa,
da cidade de Propriá” (quase 90 quilômetros de Pão de Açúcar). Já não havia
entrado no grupo de Português obrigado, mas por vingança. Informou que passou
apenas seis meses no cangaço e soltou a pérola que durante os combates “tinha
vontade de passar para o outro lado, mas tinha medo de ser assassinado”.
Finalizou que estava feliz, desejava ser policial e caçar seus antigos companheiros!
Se assim
desejava aparentemente ficou só na vontade, pois tudo indica que a polícia
alagoana dispensou seus serviços como “caçador de cangaceiros”. Além disso, se
Barreira imaginava que conseguiria amenizar alguma condenação trazendo a cabeça
do cangaceiro Atividade para os policiais, isso funcionou em parte, pois ele
ficou atrás das grades por quatro anos e seis meses.
Liberdade
Em uma
entrevista realizada em 2012, concedida ao jornalista Antônio Sapucaia, do
jornal “Gazeta de Alagoas”, o funcionário público aposentado José Alves de
Matos, o antigo cangaceiro Vinte e Cinco, comentou que após passar mais de
quatro anos na Penitenciária do Estado, em Maceió, gozava de certo privilégio
naquele ambiente, a ponto de tornar-se o “chaveiro” da prisão.
Certa vez,
provavelmente no segundo semestre de 1942, Vinte e Cinco recebeu a visita do
Promotor Público Rodriguez de Melo, o qual ao se inteirar da situação dos
ex-cangaceiros afirmou que nada poderia fazer em favor deles, a não ser que
surgisse um milagre e o fato chegasse ao conhecimento do então Presidente da
República, Getúlio Vargas, haja vista que todos estavam presos sem nenhum
processo formalizado, à disposição do Governo do Estado.
Utilizando-se
da confiança de que desfrutava, Vinte e Cinco recorreu ao engenheiro Ernesto
Bueno, que estava preso por crime de homicídio contra um cidadão de Coruripe,
pedindo-lhe que, em seu nome, escrevesse uma carta a Getúlio Vargas expondo a
situação vexatória em que se encontravam. Seu pedido foi atendido e, usando de
uma manobra habilidosa, apelou para uma mulher de nome Maria Madalena, que era
encarregada de vender os produtos de artesanato que os presos fabricavam na
prisão, a qual escondeu a carta no seio e depois a postou nos correios.
Segundo relata
Vinte e Cinco, o Presidente Vargas, depois de manter contato com o Interventor
alagoano Ismar de Góes Monteiro e com o Dr. José Romão de Castro, diretor da
penitenciária, baixou um ato e pediu-lhes que os colocassem em liberdade,
conseguissem empregos para todos, objetivando evitar o retorno deles à vida
nômade e violenta no Sertão;
Mas na
reportagem do jornal carioca “O Globo”, edição de quinta-feira, 7 de janeiro de
1943, existe uma outra versão.
Nela o diretor
da penitenciária, Dr. José Romão de Castro, informa que encaminhou para
Alexandre Marcondes Machado Filho, então Ministro da Justiça e dos Negócios
Interiores, através do Interventor Ismar de Góes Monteiro, uma exposição do
aspecto jurídico e social da prisão, onde apresentou em linhas gerais o seu
pensamento a respeito daqueles ex-cangaceiros, que se mostravam extremamente
trabalhadores, obedientes e alguns muito estudiosos. Dos dez remanescentes,
sete haviam se alfabetizado com o professor Manoel de Almeida Leite, dentre
estes Barreira. Mérito dele!
Vale a leitura
dos argumentos apresentados pelo Dr. José Romão de Castro para a soltura
daqueles antigos combatentes das caatingas:
“Pois eles não
podem ser encerrados como verdadeiros delinquentes uma vez que não havia entre
eles e a sociedade aquilo que se chama semelhança social, harmonia de
compreensão de deveres. Para eles, a figura de Lampião não era somente de
chefe, a quem obedeciam, mas, sobretudo representava um princípio de
autoridade, e, em torno de certas determinações, eles sentiam a última extensão
da influência do poder público. Logo, penso que podem regressar ao meio social
os últimos homens do grupo de Lampião, embora vigiados e sendo dado a cada um
profissão certa.”
Seja pela
carta enviada por Vinte Cinco, seja pelo parecer do Dr. José Romão de Castro, o
certo é que no dia 10 de fevereiro de 1943, ao meio-dia, em meio a uma
solenidade presidida pelo Dr. Ari Pitombo, Secretário do Interior, Educação e
Saúde de Alagoas, os antigos cangaceiros foram libertados.
Barreira foi
um dos que foram empregados pelo poder público de Alagoas e não perdeu a
oportunidade oferecida[12].
Marcado Para
Sempre
Vamos
reencontrar este controverso ex-cangaceiro em uma reportagem de 1982 e em um
momento muito festivo. Presentado pelo amigo Paulo Moreira, esta reportagem
mostra que depois de quase 40 anos de trabalho como funcionário público
estadual, lotado na Secretária da Fazenda do Estado de Alagoas, João Correia
dos Santos se aposentava.
Neste período
o antigo Barreira estava com 64 anos, era casado e pai de cinco filhos. Consta
que sua passagem como funcionário público foi bastante positiva, a ponto dele
ser considerado o “Funcionário Modelo do Estado” do ano de 1976 e receber um
prêmio e um diploma das mãos de Divaldo Suruagy, então Governador de Alagoas.
Ainda nesta
reportagem de 1982, o velho Barreira falou em tom bastante crítico sobre a
minissérie da TV Globo “Lampião e Maria Bonita”, um grande sucesso na época.
Para ele a obra televisiva “Nada tinha a ver com a história real”. Que a
protagonista de Maria Bonita na minissérie, a ótima atriz Tânia Alves, não era
“branca o suficiente e os dedos da original eram mais curtos”.
Mas concordava
que a Maria Bonita real, tanto quanto o personagem apresentado na minissérie,
tinha influência sobre Lampião. Outra concordância estava no fato de que
realmente Corisco recusou-se a se “amoitar” com Lampião na Grota do Angico.
Barreira ainda discorreu sobre vários outros aspectos relativos ao local do
derradeiro combate do chefe cangaceiro e de como seu desparecimento contribuiu
para o fim do cangaço, principalmente diante das perdas dos contatos dos
fornecedores de armas e munições.
Nesta
reportagem Barreira pouco comentou especificamente sobre seu período como
cangaceiro e nada sobre a morte de Atividade. Aquele degolamento e a triste
foto daquele ato era um passado que não valia a pena recordar.
Igualmente não
sabemos quando Barreira faleceu, mas sua passagem em relação a história do
cangaço está firmemente associada à fotografia do degolamento de Atividade.
Para a grande maioria dos pesquisadores do cangaço a figura de Barreira
praticamente se centraliza apenas em seu ato covarde.
A época do cangaço foi uma época cruel meu caro Pesquisador Mendes, ao ponto de um companheiro matar o outro e até degolá-lo. O CANGAÇO NÃO ERA PARA EXISTIR NUNCA.
ResponderExcluirAntonio Oliveira - Serrinha