Por Rangel Alves
da Costa*
Creio que não
há mais nada a fazer, ao menos aqui. Nos últimos dias, como se o destino já
estivesse antecipando tudo, meus pequenos afazeres cotidianos foram se dando
por satisfeitos e já não havia qualquer coisa importante a me preocupar.
Certamente que eu poderia continuar dando milho aos pombos, limpando as
folhagens que se acumulam pela praça, reparando os canteiros sempre revirados
pelos que vão passando ao longo do dia.
Tudo há de ser
resolvido sem a minha presença. Talvez somente os pombos sintam alguma saudade,
mas depois buscarão alimento noutras praças e noutras bondosas mãos. Mas
sentirei muita falta e muita saudade, não somente dos pombos se aproximando,
das folhas caídas, daquelas tardes poéticas de outono, dos canteiros revirados,
mas também dos diálogos silenciosos que mantinha com as paisagens e seus
habitantes invisíveis a muitos.
Quando meus
olhos começavam a passear após sentar no mesmo banco da praça ao entardecer,
logo encontrava motivos de felicidade, mesmo quando as paisagens pareciam
entristecidas. Aquelas folhas imensas caindo lá de cima e se espalhando pelo
chão, aqueles pássaros voejando de canto a outro, a ventania que soprava
cantando. Então dialogava com tudo ao redor e deixava que as sombras da noite
descessem para as despedidas. Tudo isso vai ficar para trás.
Tempos de
brisas perfumadas e sinos dobrando do alto da catedral. A cada toque e um coro
de anjos entoando o Salmo do dia. Não precisava estar na igreja para conversar
com Deus, com santos e querubins. Minha amoreira poema, minha folha poema, tudo
poema. E a vela acesa junto ao oratório após a prece da hora da Virgem. Como o
tempo passou, agora sinto. O amarelado no espelho e no retrato da parede não
mais permite aquela luz de antigamente. Como o tempo passou. Ainda hoje, quando
ouço o sino ao longe, é que percebo que somente a fé não envelhece.
Esse meu mundo
envelheceu demais dentro de mim. Não, sei que não envelheceu e que apenas estou
criando justificativas para abrir e fechar a porta e seguir pela estrada. Esse
é o mundo que ainda amo, que ainda quero, que ainda me satisfaz e me realiza.
Ora, aqui tenho a minha casinha, o meu jardim de poucas flores, minhas plantas
de quintal, meus amigos de bico e penas que chegam e saem a qualquer hora do
dia. Aqui tenho os meus livros, os meus escritos, os meus retratos e minhas
saudades. E aqui também o silêncio que tanto necessito para pensar em tudo e
também em nada. Mas então, por que partir?
Não sei, não
sei. Ou sei e sei. Na verdade, o martírio não está em mim, mas a partir dos
rascunhos que se acumulam pelas gavetas e estantes. Todos os escritos parecem
tratar de um mundo insuportável ao ser humano. Há silêncios profundos, solidões
infindáveis, lágrimas incessantes, saudades demasiadas, dores, abandonos e
sofrimentos. E tudo isso em ambientes sombrios, em casas e quartos fechados, em
lugares distantes do sol e da lua, em paisagens quase sempre outonais ou de
infinitas tristezas. Mas eis o crucial: tudo parece comigo.
Sim, todos os
rascunhos, todos os escritos, parecem comigo. Não intencionalmente, mas creio
que ao longo de todos esses anos venho escrevendo uma autobiografia de
angústias e sofrimentos. A cada letra, a cada página, e eu escrevendo sobre mim
mesmo e pensando estar falando de outras pessoas, de outros personagens, de
outras vidas. Aos poucos fui descobrindo que todos os personagens, todos os
enredos, todas as paisagens, fazem parte do meu mundo. O mundo criado é o meu
mundo então revelado. O mundo solenemente triste.
Aquele que lê
a carta e depois chora sou eu. Aquele que caminha solitário pelo quarto sou eu.
Aquele que tenta avistar o mundo pela fresta da janela sou eu. Aquele que bebe
e sente que a lágrima se mistura à aguardente sou eu. Aquele que um dia, não
suportando mais tantas aflições, abriu a porta e procurou um banco de praça,
também sou. E eu também que não tenho outros amigos além dos pombos, das
folhas, dos canteiros, dos pássaros, da ventania. Tudo e em tudo sou eu. Então
me vejo dividido em dois: o que fica envelhecido nos escritos e o velho que vai
partir.
Um ato
simples. Basta abrir a porta e partir, sem remorso nem olhar para trás. Um ato
simples e fácil assim. Mas nada mais difícil do que abdicar de um mundo e
reinventar a vida perante o desconhecido. Talvez jogasse meus escritos lá fora
e me trancasse no quarto durante mil dias. Mas aquelas vidas – que são as
minhas – não sabem voar na ventania. E somente eu sei voar. Por isso que
abrirei a porta e sentarei no velho tronco do jardim sem flores. E ali
esperarei a ventania maior chegar. E então o último voo.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário