Por Antonio Corrêa Sobrinho
Rubens Braga
LEIAM, meus
amigos, esta crônica do grande escritor brasileiro, Rubem Braga, extraída do
seu livro “O Conde e o Passarinho”, a respeito de LAMPIÃO, escrita em 1935,
quando ainda vivo o famanaz bandoleiro dos sertões nordestinos.
Teria o
Capitão Virgulino Ferreira da Silva, por um acaso, lido esta sua tradução?
LAMPIÃO
Erguerei hoje
minha débil voz para louvar o sr. Getúlio Vargas. Aprovo de coração aberto o
veto que ele deu a uma lei que mandava abrir um crédito de 1.200 contos para a
campanha contra o cangaceirismo.
O presidente vetou porque não há recursos, isto é, por falta de dinheiro. Eu vetaria por amor ao cangaço.
Lampião, que exprime o cangaço, é um herói popular do Nordeste. Não creio que o povo o ame só porque ele é mau e bravo. O povo não ama à toa. O que ele faz corresponde a algum instinto do povo. Há algum pensamento certo atrás dos óculos de Lampião; suas alpercatas rudes pisam algum terreno sagrado.
Bárbaro, covarde ele é. Dizem que conseguiu ser tão bárbaro e covarde como a polícia – a polícia que o persegue em todas as fronteiras. Mas é preciso lembrar que ele está sempre em guerra: e na guerra como na guerra. Retirai de seu aconchego doce qualquer de nossos ilustres e luxuosos generais; colocai-o à frente de um bando, mandai-o lutar uma luta rude, dura, de morte, através dos dias, das semanas, dos meses, dos anos. Ele se tornará também bárbaro e covarde.
O cangaço não é um acidente. É uma profissão. Nasce, vive e morre gente dentro dessa profissão. O tempo corre. Filhos de cangaceiros são cangaceiros, serão pais de cangaceiros. Eles não estão organizados em sindicatos nem em associações recreativas: estão organizados em bandos.
Ora, a vida do cangaço não pode ser muito suave. É uma vida cansativa e dura de roer. Quando centenas de homens vivem essa vida, é preciso desconfiar que não o fazem por esporte nem por excesso de “maus instintos”.
O cangaceiro é um homem que luta contra a propriedade, é uma força que faz tremer os grandes senhores feudais do sertão. Se alguns desses senhores se aliam aos cangaceiros, é apenas por medo, para poderem lutar contra outros senhores, para garantirem a própria situação.
Ora, para as massas pobres e miseráveis da população do Nordeste, a ação dos cangaceiros não pode ser muito antipática. E é até interessante.
As atrocidades dos cangaceiros não foram inventadas por eles, nem constituem monopólio deles. Eles aprenderam ali mesmo, e em muitos casos, aprenderam à própria custa. De resto, a acreditar no que José Jobim, um rapaz jornalista, escreveu em “Hitler e Seus Comediantes”, agora em segunda edição, os cangaceiros são anjinhos ao lado dos nazistas.
Os métodos de Lampião são pouco elegantes e nada católicos. Que fazer? Ele não tem tempo de ler os artigos do sr. Tristão de Athayde, nem as poesias do sr. Murilo Mendes. É estúpido, ignorante. Mas se o povo o admira é que ele se move na direção de um instinto popular. Dentro de sua miséria moral, de sua inconsciência, de sua crueldade, ele é um herói – o único herói de verdade, sempre firme. A literatura popular, que o endeusa, é cretiníssima. Mas é uma literatura que nasce de uma raiz pura, que tem a sua legítima razão social e que só por isso emociona e vale.
Vi um velho engraxate mulato, que se babava de gozo lendo façanhas de Antônio
Silvino. Eu percebi aquele gozo obscuro e senti que ele tinha alguma razão.
Todos os homens pobres do Brasil são lampiãozinhos recalcados: todos os que
vivem mal, comem mal, amam mal. Dar 1.200 contos para combater o herói seria
uma tristeza. Eu, por mim (quem está falando e suspirando aqui é o rapazinho
mais pacato do perímetro urbano), confesso que as sortidas de Lampião me
interessam mais que as sortidas do ser Antônio Carlos.
Não sou cangaceiro por motivos geográficos e mesmo por causa de meu reumatismo. Mas dou àqueles bravos patrícios o meu inteiro apoio moral – ou imoral, se assim o preferis, minha ilustre senhora.
Rio, fevereiro
de 1935.
Rubem Braga,
Lampião e Antônio Silvino
Fonte: facebook
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