OS CORPOS de
"Lampião", Maria Bonita e seus nove comparsas haviam ficado realmente
no leito seco de um riacho. Uma ligeira camada de terra os cobria. Os urubus
descobriram e deram em cima. Veio uma alma piedosa, enxotou-os, foi buscar
veneno e o espalhou pelo local com o fito presumível de manter afastados os
urubus. Sem poder adivinhar que aquilo fosse veneno, os urubus voltaram à
carga. Três ou quatro tombaram ali mesmo. E o próximo visitante que chegou,
encontrando os urubus mortos sobre os restos dos cangaceiros, pensou rápido e
saiu com a boca no mundo a dizer que "Lampião" não havia sido morto a
bala, não. Havia sido envenenado.
Assim se
formam certas lendas no Brasil. Aliás, ninguém pôde atestar se os despojos
estavam envenenados ou não. Quando as chuvas chegaram, o riacho ganhou águas e
as águas mesmas cuidaram de decompor e destruir o que restava do estado-maior
de "Lampião". João Ferreira se esquivava de ouvir essas histórias.
Seus anos de vida estavam cansados de ouvir histórias tristes sobre Virgulino.
Em vez, ele andava pelo mato a procurar qualquer coisa. Até que voltou,
trazendo um punhado de flores silvestres. Aproximou-se da cruz tosca. Que
fixara entre as pedras, tirou o chapéu da cabeça e se ajoelhou. Após alguns
momentos de reflexão, depositou as flores ao pé da cruz. Para João. a morte
perdoara os crimes de Virgulino. Ali ele não era mais o rei dos cangaceiros.
Era um finado. Quando João se levantou, alguém identificou entre os presentes o
Sr. Oséias Cândido, irmão de Pedro Cândido.
Pedro Cândido era
um fazendeiro que negociava com "Lampião" e foi quem guiou a volante
alagoana ao esconderijo de Angico. "Lampião" morreu por causa dessa
traição. — Meu irmão — disse Oséias — foi posto num dilema: morrer, ou mostrar
onde "Lampião" estava. E contou que o bando foi surpreendido às 5
horas da manhã, quando presumivelmente dormia. João Ferreira ficou ouvindo
de longe, como a não querer misturar-se com o irmão de Pedro Cândido. Ficou
mudo o tempo todo. Só abriu a bôca no momento em que Oséias contou que Pedro
morrera assassinado, em 1942. Quando perguntei a Oséias: "Que é
de Pedro?", e ele respondeu: "Mataram", João comentou lá de
traz: — Bem feito. E então nos retiramos, deixando a cruz e as flores dentro da
paisagem. Voltamos a Piranhas peio Rio São Francisco, à noite, debaixo duma lua
cheia linda e comovente. Horas mais tarde, quando os quatro passageiros de
nosso carro jogaram-se às camas de um hotel em Santana do Ipanema, Manuel
Ferreira tirou um livro de sua pasta e pediu que ouvíssemos alguns
versos.
O livro era
"Bandoleiros das caatingas", excelente reportagem de Melquiades da
Rocha. Os versos, do cantador Zebelé. Versos que nos desviaram o pensamento da
lua se derramando sobre o São Francisco, para recordar, mais adiante, aquela
cruz e aquelas flores no matagal da Fazenda Angico. Diziam assim:
Ninguém no
mundo se livra
Do gorpe duma
traição.
Inté Jesus foi
traído
Por um judeu
sem ação,
E morreu
crucificado
Sexta-feira da
Paixão.
Lá na grata
dos Angico,
No meio da
escuridão,
Cercado por
todos lado,
Ferido de
supetão,
Foi pegado,
foi traído.
O gigante do
sertão.
Era brabo, era
marvado
Virgulino, o
Lampião,
Mais era, pra
que negá,
Nas fibra do
coração
O mais
prefeito retrato
Das catingas
do sertão
A viola tá
chorando
Tá chorando
com razão
Soluçando de
sódade,
Gemendo de
compaixão.
Degolaram
Virgulino,
Acabou-se
Lampião.
Havíamos
atingido Santana do Ipanema, em Alagoas, para investigar o boato de que o
vigário local criara um filho de "Lampião". Padre Bulhões não vivia
mais, porém sua família podia esclarecer. O saudoso vigário realmente educara o
filho de um cangaceiro. Mas filho de "Corisco", não de
"Lampião". Retomamos viagem, para descobrir 12 horas mais tarde em
Aracaju, a filha de "Lampião" e Maria Bonita.
Sim, o rei do
cangaço deixara uma filha. Dizia-se que era um filho. Esta própria revista
recentemente divulgou declarações que defendiam essa versão. Mas João Ferreira
não dá fé. Ele sabe apenas que um dia Virgulino lhe mandou uma menininha, com
um bilhete para que ele a educasse. "O nome é Expedita", dizia o
bilhete.
Expedita,
hoje, é ainda uma criança. Mas já mãe. Tem 21 anos de idade, um marido da
mesma idade, um filhinho de 9 meses, Dejair. É uma cabocla forte e bonita, que
não apresenta qualquer Sinal de degenerescência, nenhuma tara. Em julho de
1938, quando as cabeças de seus pais estiveram no Serviço Médico Legal de
Maceió, o exame não denunciara estigmas que caracterizassem "Lampião"
ou Maria Bonita como criminoso nato. Não surpreendia, que a filha fosse também
normal. — O que tem é gênio forte. Herdou do pai — disse João. Nós a avistamos
quando cuidava do filho. Dava-lhe leite em mamadeira, ai pelas 6 horas da
tarde. Tinha um semblante tranquilo, os gestos delicados. Parecia feliz. A
casinha modesta estava que era um mimo. Havia poltrona na sala, berço no
quarto, jogo de panelas na cozinha. Tudo arrumado, tudo limpo que fazia gosto.
Expedita dava leite ao nenê enquanto esperava o marido, Manuel Messias Nunes,
para jantar, Manuel chegou loga. Tão criança quanto a mulher. Vê-los caducando
com Dejair era ver dois meninotes que brincassem de papai e mamãe com um bebê.
Educada por João, Expedita sabe porém de quem é filha. Na mesa da sala descobri
O CRUZEIRO com a reportagem de João Martins sobre o livro "Lampião"
de Optato Guelros. Sinal de que ela não era indiferente ao assunto. Mas que
gosta de falar nele, não gosta. Tive de sondar pessoas de sua intimidade para
conhecer-lhe as reações ante o tema "Lampião". Ela jamais falaria a
um estranho sobre esse caso. Sempre tem medo de que sua condição de filha de
"Lampião" atraia vexames para o marido, mais tarde para o filho. Pude
colher que, embora evitando conversar sobre cangaceiros, ela devora toda
leitura que se refira ao pal. Algo mais: foi ver o filme "O
Cangaceiro", de Lima Barreto. Voltou de lá aborrecidíssima" com a
deformação do caráter do pai". Pois identificou "Lampião" no
personagem central do filme. Expedita, como de resto todo o Nordeste, ligava
pouco para o fato de Lima Barreto fazer arte. Queria apenas história.
Interpretação honesta dos fatos. E ficou revoltada em ver os cangaceiros só
viajando a cavalo, feito "cowboys" americanos, eles que só
atravessavam e caatinga andando com os próprios pés. E revoltada em ver que não
davam descanso a seu pai nem depois de morto.
Achei bonito
que os Ferreira não se envergonhassem do parentesco com "Lampião".
Lembro uma reportagem que fiz no Oriente sobre um australiano que amava uma
japona. Proibido de casar, pois a Austrália àquele tempo não queria australiano
casado com japonesa, o soldado Frank Loyal Weaver achou que o coração tinha
razões mais fortes, e se casou. Foi deportado sete vezes para a Austrália;
clandestinamente voltou sete vazes ao Japão. Pois bem: os pais de Weaver,
envergonhados, repudiaram o filho, nunca mais quiseram saber dele.
Quando é
que um sertanejo nosso abandonaria o filho por ter casado com quem queria? É
como me diziam os primos de João no meio da viagem: "Lampião" é nosso
sangue. E sangue é sangue". Achei bonito que os Ferreira reverenciassem o
parente morto. Terem a coragem de não negar. A bravura de defender. Lá em Serra
Talhada uma senhora me disse: — Meu pai é Antônio Matilde. Ouviu falar nele?
Era do bando de "Lampião". Pois olhe: tenho orgulho de ser filha de
Antônio Matilde. Então vou renegar o homem que me deu a vida só porque o mundo
o condena? E com um ar de desprezo pelo juízo dos homens ela rematou: — Ora,
moço, só Deus é o dono do mundo.
NO CURSO de
uma das várias palestras mantidas durante a viagem, na própria fazenda
"Serro Vermelha'', onde ele nascera, João Ferreira ouviu expressões
incômodas sobre "Lampião" e seus feitos. Ficou firme. Ninguém sabia
quem era ele. Os novos senhores da terra o trataram bem, sem saber a quem
tratavam. Tudo bem.
OSÉIAS CÂNDIDO contava
por que seu irmão Pedro guiara os matadores de "Lampião" ao esconderijo
na grota de Angico. Fora forçado por ameaça de morte. João Ferreira ficou
espiando, desconfiado, como o não querer misturar-se com o irmão de quem traíra
Virgulino e o empurrara para a morte.
Antônio, o
irmão mais velho. Nem os outros irmãos mais velhos, Livino, Virgulino e
Virtuosa. Ele, João, era o quinto filho do velho José Ferreira e da
"cumadre" Maria José. Abaixo vinham Angélica, Maria, Ezequiel e
Anália. A família era grande e próspera. Pai e mãe vivos, nove filhos, gado no
campo, terra trabalhada, dinheiro nos baús. Agora, tudo diferente. Por que? —
Por que não nos deixaram viver em paz? —perguntou ao ar.
MOCINHA é a
única irmã que restou a João Ferreira. Ela aparece aqui tomando café, sentada,
em sua casa de Delmiro, cidade alagoana próximo à Cachoeira de Paulo Afonso. De
costas, o marido de Mocinha.
Deixando a
fazenda, João foi abraçar a única irmã que lhe restava, Maria. "Chamo-a de
Mocinha", explica. Ela mora em Delmiro, Alagoas, é bem casada e mãe de
duas moças e um rapaz. João passou uma noite inteira contando-lhe os detalhes
da sua viagem.
Depois ele
atingiu as margens do Rio S. Francisco, tomou um barco e foi à Fazenda Angico.
Ver o local onde mataram o mano. Manuel e Antonio Ferreira, os dois primos que
o acompanhavam na viagem, alguns tripulantes do barco e gente da vizinhança,
seguiram João até a grota famosa onde a volante do capitão Bezerra liquidou
"Lampião" em 1938. João olhou em volta sem dizer uma palavra. Então
tinha sido aquele o palco da cena final... Botou a mão na mesma pedra onde o
pescoço de Virgulino recebeu o golpe do facão. Depois mandou cortar um galho de
árvore, fazer uma cruz. E fixou a cruz entre pedras, no local onde jazera o
corpo decapitado do irmão.
— Enterraram o
corpo? — perguntei ao guia.
— Não, a água
levou.
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