Por Rangel Alves
da Costa*
Quarta-feira
de cinzas, mas ainda a reflexão. A vida é uma tragédia travestida em comédia,
já dizia o personagem ao descerrar as cortinas. Mas antes já havia afirmado que
o drama e o sofrimento se escondem por trás das máscaras para dar lugar às
ilusões e fantasias. Vivem-se, como neste período de carnaval e durante o ano
inteiro, num mundo entremeado de pierrôs, arlequins e colombinas, e também com
mais de mil palhaços no salão, como diz a letra da antiga marchinha momesca.
Ora, nada mais
que o entorpecimento de multidões, que o inebriamento de pessoas e mais pessoas
que se entrelaçam para viver ilusões e fantasias à beira do precipício. Ali no
alto, no instante maior da ilusão, sequer se preocupa em se firmar perante a
falsa realidade. E assim faz do fingimento - ou do pleno conhecimento que a
outra face da vida se expõe em tragédia - uma forma de fugir do cotidiano sem
máscaras. E sem disfarce não há como suportar o espelho diante da face.
O carnaval tem
realmente o poder de vivificar realidades inexistentes ou dissimular as
tragédias tão conhecidas e enfrentadas no dia a dia. Há de se imaginar como
dias de fuga, de desprendimento das correntes que atormentam. Há de se imaginar
a festa momesca como uma forjada libertação dos laços que aprisionam e torturam
o ser. É como se dissesse que durante aqueles dias não haverá preocupação com
conta a pagar, com o aumento disso e daquilo, com as manhãs que já chegam com
um tedioso sol. Ou se imagina assim ou apenas procura se esconder daquilo que
não pode fugir.
A bebida, a
dança, a alegria, o contagiamento, nada disso tem poder de transformar a
realidade vindoura, quando já se estará em outro carnaval. Um carnaval sem
máscaras, sem arlequins, pierrôs, arlequins ou foliões, mas de pessoas adornadas
apenas pelo espanto dos dias. Um que não tem emprego, outro que não consegue
marcar consulta para fazer tratamento, e ainda outro e mais outro que vai sendo
vitimado pela violência, pelas atrocidades ainda maiores dos governantes, pelas
dificuldades em tudo e por todo lugar.
Este será o
carnaval após a quarta-feira de cinzas. E este o carnaval antes que os clarins
anunciassem os festejos. Mas depois do toque tudo parece se transformar. Parece
a vida em mil maravilhas, parece um mundo de paz e alegria, tudo se afeiçoa a
um viver sem nada faltar. E assim porque somente sorrisos, exaltações, excessos
de contentamento. E assim até que o último clarim silencia. Depois disso nada
mais a fazer senão reencontrar-se perante a outra a realidade. E nesta suportar
a outra face da comédia carnavalesca: a tragédia.
Mas antes
disso, quanto riso, quanta alegria, quantos confetes e serpentinas emoldurando
a tragédia disfarçada em comédia, em festa, em diversão. O pão que cabe ao povo
num circo onde os palhaços são os próprios foliões. Ou a gente pintada,
disfarçada de contentamento, por medo que a realidade da vida faça descer na
face o pranto do desespero. E a música chama ao deleite, a dança chama ao
distanciamento, o canto chama ao fingimento. E já não são mil, mas milhões de
palhaços forjando seu próprio riso.
Uma gente sem
dinheiro para o aluguel e, sem perceber a beira do abismo em que se sustenta,
alegremente entoando a canção de sua verdadeira realidade: “Daqui não saio,
daqui ninguém me tira, daqui não saio, daqui ninguém me tira. Onde é que eu vou
morar? O senhor tem paciência de esperar! Inda mais com quatro filhos, onde é
que vou parar?...”. E também sem recordar as noites insones, a despensa sem
quilo de arroz ou feijão, a geladeira sem nada por dentro. Mas é preciso
cantar, é preciso brincar, eis que o momento chama a viver ilusões.
Sabe que não
tem dinheiro sobrando, sabe que não tem tostão para nada, sabe que necessita de
dinheiro para cumprir ao menos metade dos tantos compromissos já atrasados, mas
ainda assim toma emprestado para alimentar as ilusões e também porque tem de se
fartar segundo a cantiga: “As águas vão rolar, garrafa cheia eu não quero ver
sobrar, eu passo a mão na saca, saca, saca-rolha. E bebo até me afogar, deixa
as águas rolar...”. E assim vai tomando todas, juntando disfarce ao disfarce, e
já não sendo nem a máscara nem a fantasia, mas apenas a ébria ilusão.
E o outro
folião, que já não deve satisfação nem a si mesmo nem ao destino, e faz da
festa a realidade que tanto desejava ter no dia a dia, logo esbraveja em coro:
“Pode me faltar tudo na vida, arroz feijão e pão, pode me faltar manteiga e
tudo mais não faz falta não. Pode me faltar o amor, e isto até acho graça, só
não quero que me falte a danada da cachaça”. E a bebida desce-lhe a garganta
como se fosse o alimento de toda a vida. E sobe aos céus, plana no ar, esvoaça
como folha morta que ainda imagina viver.
Assim o
carnaval e suas ilusões. A comédia da vida como fuga à tragédia. Fantasias em
pierrôs que choram no dia a dia.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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