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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

O COITEIRO QUE TRAIU LAMPIÃO

Por Raul Meneleu Mascarenhas

Quando encontrei essa reportagem, que sinceramente não sei quem me passou, ou se encontrei em pesquisas nas bibliotecas virtuais, e também não sei que jornal saiu, qual data, e não tinha ideia da joia histórica do artigo. Quem souber desses detalhes, comente por favor na postagem no Facebook do site do Grupo Lampião, Cangaço e Nordeste.

Reportagem feita pelo jornalista Roberto Vilanova, traz conversas que ele teve com o sobrevivente da chacina da Fazenda Patos e também com o homem que foi acusado de tramar esse tenebroso desfecho.


Fazenda Patos - Encontro do Cariri Cangaço

Em visita à Fazenda Patos, no município alagoano de Piranhas, por ocasião do encontro anual de historiadores, escritores, pesquisadores e admiradores da Saga Cangaço, no mês de julho de 2015, tive a oportunidade de gravar o depoimento do Senhor Celso Rodrigues, relatando o acontecido, quando era menino, ouvindo os adultos conversarem no balcão da bodega de seu pai, estabelecida em Piranhas, naqueles anos pós morte de Lampião. 

Nessa ocasião escrevi o artigo "A Vingança de Corisco no Palco dos Inocentes" onde narro esse estudo e pesquisa a céu aberto, inclusive com dois documentários gravados, participando juntamente com os companheiros da Confraria do Cariri Cangaço de sua programação patrocinada juntamente com a Prefeitura de Piranhas-AL que montaram essa oficina de estudo de caso, no palco em que tais acontecimentos ocorreram. Vamos então à matéria: 

Ninguém vive tão só em Piranhas, esse homem carrega há 40 anos o desprezo de sua cidade

Roberto Vilanova 
Fotos de Helder Monteiro



Maceió — Hoje é dia de feira na cidade de Piranhas, a quase 400 km da Capital de Alagoas, é o dia do encontro semanal muitas vezes cara a cara, das duas mais sacrificadas testemunhas da morte de Lampião: o que traiu o cangaceiro e o único sobrevivente da família assassinada por Corisco numa vingança resultante de uma segunda perfídia do traidor. Os dois não se falam. Por trás, acusam-se mutuamente de covardia e mentira. Se até hoje não explodiram em violência física um contra o outro, isso se deve a um trabalho de catequese das famílias tradicionais daquela cidade do alto sertão alagoano, principal cenário do planejamento da morte de Lampião, há 39 anos. O coiteiro é Joca Bernardo; o sobrevivente é José Silvino Ventura. Só um milagre terá feito Silvino escapar das mãos de Corisco — o segundo homem do bando de Lampião — quando o cangaceiro veio se vingar da morte do chefe e "sangrou" seu pai, sua mãe e quatro irmãos. Ele era o mais novo: tinha seis anos de idade, o que provavelmente o salvou.


José Silvino Ventura filho de Domingos Ventura assassinado por Corisco

— Corisco chegou lá em casa quase as sete da noite. Meu pai, Domingos Silvino, não sabia de nada e o recebeu alegremente. Corisco foi logo dizendo: "Domingos, vim lhe matar. Você vai morrer com toda a sua raça, para nunca mais trair homem, Já sei que foi você quem traiu Lampião. O Joca Bernardo me contou tudo." José Silvino não conta detalhes da chacina. Só diz que foi muito cruel ter de levar, em um saco, as cabeças de seus pais e irmãos, para entregá-las, em Piranhas, ao tenente João Bezerra, comandante da tropa que exterminou Lampião e seu bando. Revela também, agora por ouvir dizer, como se deu o encontro de Joca Bernardo com o cangaceiro e como a polícia, orientada pelo coiteiro, chegou à grota de Angicos, onde Lampião e alguns de seus comparsas estavam escondidos e foram mortos.

— Uma semana depois da morte de Lampião — continua Silvino — Corisco encontrou-se com Joca Bernardo, Queria vingar o chefe. Bernardo disse que meu pai, que era vaqueiro do sogro do Tenente Bezerra, tinha sido o delator. Corisco reuniu seu estado-maior e resolveu decidir a sorte de Domingos Silvino. Conta-se que Dadá, mulher de Corisco, advogou a honestidade de Bernardo, tal a segurança com que ele sustentava a culpabilidade de Silvino.

— Corisco acreditou porque o Bernardo armou tudo direitinho. Eu não sei se ele tinha queixas de meu pai. Eu era criança e não sabia de nada. Nas consultas que fez a seu estado-maior, Corisco alinhou três argumentos para condenar Domingos Silvino:

1) parecia difícil que o coiteiro Bernardo fosse inventar, sem mais nem menos, o nome de outra pessoa;

2) Domingos era vaqueiro na fazenda do Sr. Antonio Brito, sogro do Tenente Bezerra;

3) O Tenente Bezerra comanda a tropa policial na invasão do esconderijo de Angicos.


Cidade de Piranhas-AL às margens do rio São Francisco aqui se planejou a morte de Lampião

O coiteiro traidor vive hoje de uma aposentadoria pelo Funrural. Tem uma casa de taipa, esburacada, e um burrico no qual, às quartas-feiras, vai a Piranhas. Depois de ajeitar o cigarro de palha, molhando-o com saliva para fechá-lo adequadamente, ele concorda em falar.

— É verdade que o senhor denunciou Domingos Sivino, como o homem que traiu Lampião?

— Isso é história, Eu não faria uma coisa dessas.

— Mas o senhor se encontrou com Corisco, não foi?

— Isso é verdade.

— Como se deu esse encontro?

— Eu tinha acabado de juntar o gado, aqui perto, em Entre Montes, quando ele pulou na estrada, a esfumaçar pelo nariz que nem um touro. Ai eu disse: "O que é que há camarada?" Ele respondeu: "É verdade que mataram Lampião?" Aí eu afirmei que tinha ouvido falar.

— Foi esse o dialogo?

— Só isso. Aí ele foi embora, me parece chorando.

Bernardo está cercado de olhares, são de desprezo. Ele está acostumado a ser olhado assim até por pessoas que combatiam veementemente o cangaço. Julgava ter contribuído para o sossego público em Piranhas, a cidade alagoana, mais sobressaltada no tempo dos cangaceiros, que vinham repousar no até então inexpugnável esconderijo dos Angicos. Seu degredo começou quando não cumpriram a promessa de pagamento pelo serviço prestado. Prometeram-lhe cinco contos de réis, mas só lhe deram pouco mais de um.

Se tivesse aceito a patente de sargento da polícia alagoana, que lhe foi oferecida,  estaria hoje na reserva remunerada da corporação, no posto de coronel.

— Quem lhe prometeu cinco contos de réis para trair Lampião?

— A polícia.

— Por que não aceitou a patente de sargento?

— Prá morrer de fome, prefiro ficar no sertão cuidando do gado. Eu tinha 11 filhos. Um sargento de polícia ganha quanto? E ainda tem de viver aqui e acolá, por onde ordena o Governador. E eu só sei tratar de gado e plantar. Por isso, não aceitei.

Por não ter aceito a patente de sargento, Joca Bernardo perdeu a mulher e os 11 filhos, que lhe abandonaram. Segundo conta, a mulher fez muita força para que ele aceitasse as divisas. Quando viu que não conseguiria convencê-lo, forçou-o a uma decisão: aceitar a patente ou ficar sem mulher e sem filhos.

— Então o senhor preferiu perder a mulher e os meninos?

— Na minha casa quem manda sou eu. Não quer viver comigo? Então que se saiam.

— Por que o senhor aceitou trair Lampião?

— Eu não traí Lampião. O que eu queria, na verdade, era que um coiteiro dele, Pedro de Cândido, levasse uma surra da polícia.

— O que teve a ver uma coisa com outra?

— O Pedro de Cândido sabia que eu fabricava queijos. Uma vez chegou em casa e me disse que compraria todos os queijos que eu fabricasse. Pudesse guardar que ele comprava tudo. No outro dia, lá vem ele atrás de queijo. Eu disse que não tinha. Ele olhou para uns queijos que eu ia entregar, de encomenda, e disse: "E esses aí, cabra safado, de quem são?" Respondi que eram do juiz de Pão de Açúcar e que não poderia vendê-los. Aí ele disse: "Juiz coisa nenhuma". E levou tudo.

— E daí?

— Fiquei com raiva. Logo arranjei um jeito de me vingar de Pedro. Descobri que os queijos eram para Lampião e seu bando. Aí procurei o Sargento Aniceto, em Piranhas mas que ele apertasse o Pedro de Cândido que que diria tudo. Assim foi feito.

Pedro recebeu o aperto e disse onde Lampião estava. Acabou agraciado com as divisas de cabo da polícia alagoana, e, mais tarde, ganhou uma delegacia no sertão. No posto de delegado, foi assassinado. Joca Bernardo estava, afinal, vingado. Silvino não quis vingança. Parece considerar que esta se consuma toda quarta-feira, quando Jaca Bernardo, como hoje, é olhado com desprezo por todos os que estão na feira de Piranhas. 


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