Desde o seu
enforcamento há 168 anos, na primavera de 1849, Lucas Evangelista dos Santos, o
Lucas da Feira, tem dividido a opinião dos estudiosos. Ladrão sanguinário para
uns, para outros um defensor da justiça social. Há 40 anos, em 1977, o jornal A
Tarde brindou seus anunciantes, assinantes e leitores com um texto
assinado pelo advogado, historiador e jornalista Hélder Alencar sobre o
escravo que se tornou um dos personagens mais conhecidos da história de Feira
de Santana. Vale a pena relembrar.
Mitos e
lendas: estórias que falam sobre Lucas da Feira
Hélder Alencar
Na manhã de 25
de setembro de 1849, conta a estória, uma nuvem de gafanhotos caiu sobre a
Feira de Santana, sobre esta Feira de Santana de tantas coisas. Naquela manhã,
era enforcado Lucas Evangelista dos Santos, Lucas da Feira.
Mas Lucas não
é estória. É história. Incorporou-se, definitivamente, à História da Feira de
Santana, cidade onde nasceu, viveu, sofreu e empreendeu toda sua luta, na
defesa de sua raça, da raça negra, então oprimida, vilipendiada e escravizada.
Era contra a
opressão da raça que se levantava Lucas Evangelista, nascido de dois escravos
gêges, Inácio e Maria, ele próprio escravo, de três senhores, primeiro da rica
proprietária de terra, Antônia Pereira de Lago, depois por morte desta, de um
seu sobrinho, o padre José Alves Franco e, finalmente, do alferes José Alves
Franco.
Inconformado
com sua condição de escravo, Lucas conseguiu fugir aos 20 anos, fugir, não se
libertar, pois não viu a abolição da escravatura, ocorrida anos depois do seu
enforcamento, em patíbulo armado no fim da Avenida Senhor dos Passos, onde hoje
se ergue o Cine Iris.
Para lutar
contra a escravatura, Lucas forma um grupo de 30 homens, onde despontava
Nicolau, Flaviano, Bernardino, Januário, José e Joaquim. Grupo inclusive que,
segundo um estudo recente, de um teólogo português, no livro “Formação do
Catolicismo Brasileiro”, influenciou para que a religião católica fosse
praticada pelos negros. O seu quilombo é, hoje, considerado fundamental
para a disseminação do catolicismo entre os negros.
Foi intensa a
luta do bravo negro. Nascido em 18 de julho de 1807, Lucas saiu para a vida de
lutas vinte anos depois, em 1827, quando conseguiu romper os grilões que o
prendiam aos senhores donos de escravos.
E durante
vinte e um anos, até a sua prisão, nas matas de Santana da Feira, em janeiro de
1848, Lucas Evangelista dos Santos lutou, combateu, enfrentou, desconheceu o
medo e covardia, na defesa de sua raça.
“Negro
superior com qualidades de chefe”, como bem afirmou Nina Rodrigues. Lucas
tornou-se um homem diferente da maioria. Não se amoldou as circunstâncias, nem
se adaptou ao regime escravocrata. Reagiu e lutou, liderando companheiros de
raça.
A sua revolta
não nasceu de um ato individual. A sua luta teve um sentido coletivo e social
na defesa de uma raça, a sua raça, na redenção dos negros.
E justamente
por isso Lucas não morreu. Está aí, desafiando mais um século, cantado pelos
poetas do povo, analisado em tantas obras.
Claro que sua
luta, destemida e incessante, passou a incomodar os senhores de terras, os
ricos portugueses, donos dos escravos, que tratavam de unir-se contra ele, com
uma palavra de ordem, violenta e definitiva: Lucas tinha que morrer.
E assim, nos
fins do ano de 1847, a caçada intermitente começou, com crueldade, subornos
e traições que jamais fizeram parte do humilde e modesto vocabulário
de Lucas da Feira.
O cerco foi se
formando nas redondezas de Santana da Feira. Um a um foram prendendo os seus
companheiros. O primeiro foi Nicolau.
A prisão de
Lucas estava eminente naquele janeiro de 1848. Lucas resiste enquanto pode. A
polícia atirava para todos os lados e em todas as direções, até que uma bala o
fere, quebrando-lhe o braço, minando-lhe as forças. Foi a luta desesperado de
um só contra milhares.
Enfim, na
manhã de 28 de janeiro de 1848, Lucas é preso e conduzido ao centro da cidade,
em meio a festa dos escravocratas.
Bailes foram
organizados. Os sinos das igrejas repicaram festivamente. Fogos de artifícios
cruzaram os céus. Manifestações intensas se faziam. Eram os escravocratas
comemorando a prisão de um grande homem negro.
Do outro lado,
entretanto, lágrimas eram derramadas. Choravam os que tinham sido protegidos
por Lucas. E quanta gente ele protegeu.
Lucas
Evangelista dos Santos, real e lendário, herói de uma época de trevas,
personagem de uma noite sem estrelas. Figura legendária de tempos de opressão e
horror permanece vivo. Vemo-lo em cada ser humano que ele, com sua
luta ajudou a libertar.
Bravo como ele
só, valente como poucos, corajoso como quase ninguém, Lucas da Feira é o
símbolo de uma era apavorante e estúpida, cruel e miserável.
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