Rangel Alves da Costa*
CARTAS DE GUERRA
Dizem que noutro dia encontraram um velho baú familiar em cujo fundo estavam guardadas verdadeiras relíquias. Fotografias amareladas, bilhetes já ilegíveis, papéis de presentes sem nenhuma oferenda, livretos de poemas com folhas marcando páginas, mas principalmente umas estranhas cartas, missivas de guerra.
Um desses poemas dizia: “Hoje é o tempo do ontem/ Porque o amanhã será o tempo do passado/ E tudo que existiu ainda existirá/ Porque o querer se repete se for bem-querer...”. E as cartas, uma por cima da outra segundo a data do envio, só mesmo abrindo-as para saber do que tratavam.
Quando o baú foi descoberto e alguns mais antigos sabendo a quem pertencia, então logo costuraram com maestria a colcha de retalhos do passado para encontrar a verdade. E a verdade, segundo afirmaram, é que aquelas velhas cartas haviam sido enviadas pelo pracinha esposo da dona do baú, já na distância, desde o campo de batalha nas terras italianas.
Quando em agosto de 1942 o Brasil decidiu apoiar os Aliados (liderados por Inglaterra, URSS, França e Estados Unidos) contra as forças do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), e em 1944 enviou para a região de Monte Cassino cerca de vinte e cinco mil pracinhas da Força Expedicionária Brasileira, o jovem esposo da dona do baú, recém casados, foi um dos que embarcaram na segunda leva. Começou a lutar logo que chegou.
Não se sabe por quais vias, nem quais os caminhos e dificuldades para conseguir tal intento, mas a verdade é que já nos campos de batalha, enfrentando as durezas da guerra e as ameaças dos inimigos, o pracinha começou a escrever cartas para o seu amor, para a sua querida esposa, uma jovem e bela mulher em constante tristeza na sua janela.
Talvez ficasse tanto tempo na janela na expectativa de chegar mais uma cartinha escrita no calor da refrega, mais uma missiva cheia de saudades, contendo palavras que mais pareciam choradas do que escrita. Em envelopes carimbados de solo italiano, abria cada cartinha e em seguida, após as lágrimas serem enxugadas ao sol, colocava naquele baú das aflições.
“Ontem, aqui no Monte Castelo, os inimigos avançaram com toda ferocidade do mundo. Contudo, não temo nada disso que acontece, pois estou preparado para a luta. Mas não poderei dizer se vou conseguir vencer a inimiga chamada saudade nem essa dificuldade chamada distância...”.
“Os inimigos estão cada vez mais ferozes. Derrubamos um tanto e logo temos que derrubar outro monte que se esconde por trás dessas montanhas. Estou há três dias sem dormir, mas por nada que tenha me ocorrido por aqui. A saudade é demais, a vontade de estar ao seu lado é demais, tudo é demais e demasiadamente dolorido longe dos teus braços...”.
“Nunca imaginei que um dia passaria o que estou sendo forçado a passar. Só suporto colocar na boca essa comida fria e sem gosto que servem porque começo a lembrar do seu feijãozinho temperado, do seu arroz com ervilha e do lombo de forno que só você sabe fazer. Mas não há como deitar nessa cama dura de campanha, roendo os ossos e pinicando a pele, e lembrar do calorzinho bom da nossa dormida, sempre abraçadinhos. Prefiro nem passar as noites pensando nisso, pois seria sofrimento demais...”.
“O meu comandante me avisou que amanhã iremos para outro lugar, combater noutro ponto. Falou-me que os inimigos estão em volta de Camaiore e Monte Prano. Mas meu maior inimigo, agora sinto, sou eu mesmo que não sei me dar asas para voar até nosso ninho e repetir uma coisa que agora se faz mais fortemente como nunca no meu coração: te amo, meu amor, te amo...”.
E pela data esta foi a última carta enviada. Pelo que se sabe ele não pôde retornar, pois tombou em Camaiore tendo ao lado uma fotografia da esposa. E esta, até morrer de definhamento e saudade, ficou ali na janela esperando outra carta que não chegou.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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