Seguidores

segunda-feira, 16 de abril de 2012

MEMÓRIA CATIVA (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa*
Rangel Alves da Costa

MEMÓRIA CATIVA

Há muito que deixei de pensar muito. Melhor assim. De uns tempos pra cá se tornou absolutamente indesejável relembrar o passado recente.
Tornei-me, forçadamente, de memória cativa. Transformei-me num cativo, seduzido, escravizado em conservar no memorial da minha mente apenas aquilo que realmente mereça ser recordado.
Não sei mais se vale a pena abrir um jornal de ontem, de anteontem, de um mês atrás. As notícias ruins não envelhecem, não apagam com o tempo seus vestígios de dor e de sofrimento. Tudo parece apenas somado ou multiplicado ao que se tem hoje.
Sim, haveriam de dizer do grito lancinante nos tempos idos, lá nas outras distâncias. Lembrariam do sangue escravo jorrando, dos inocentes mortos nas guerras dos outros, das cabeças que rolaram por causa de ideologias libertárias.
Sim, dor e sofrimento também, mas nada parecido com a violência gratuita que se tem hoje, com as banalidades brutais do dia a dia, com a plena e total desumanização do ser humano. O ser como algo a se merecer.
Por isso me nego, não quero, não admito lembrar dessa cruel construção humana que mais tarde dirão que é história. O que se faz hoje e se fez num passado recente são aqueles pesadelos dos dias que não merecem ser relembrados novamente.
Os livros novos, de lavra recente, pouco têm a dizer sobre conquistas efetivamente boas para os seres humanos. Páginas e mais páginas falam em crises, em períodos difíceis, em eventos que desonram vergonhosamente o novo homem.
O novo homem da tecnologia, do ilimitado conhecimento, do hardware e do software, ainda assim não conseguia vencer as barreiras do ódio, do terror, da covardia. Neste aspecto, a informação só é capaz de dar vazão mais rápida à desumanidade.
Sou diferente, não quero pensar assim, não quero ter tanta informação desse jeito comigo. Prefiro a notícia do vento, do passo do tempo ido, do saudosismo, da relembrança que se encanta com as simplicidades de um dia.
Escravizo minha memória como carta boa que se guarda num baú. Cativo minha memória como louça valiosa em cristaleira de madeira nobre. Escravizo minha memória como carta do amado adormecida no seio da amante. Deixo minha memória aprisionada igual a bilhete guardado na garrafa que vai sendo levada pelas águas eternamente.
Prefiro viver atrelado ao ontem antigo de minha infância, minhas molequices interioranas, minha nudez festiva correndo embaixo da chuvarada, meu cavalo de pau e meu boi misterioso escondido na mata enluarada.
Prefiro lembrar minha calça curta, minha roupinha de suspensório, meu cabelo brilhoso forjado na brilhantina, o passeio no parque, o olhar caminhando atrás da menina bonita de vestidinho florido de chita. Lembro ainda da goiaba roubada nos quintais da vizinhança, do puxão de orelha pela vidraça quebrada.
Minha namorada, minha bela namorada, que doce recordação. Mas qual delas não sei dizer, pois sempre fui namorador demais ainda que elas não soubessem do meu desejo criança. Apenas adolescentes, caminhávamos por estradas que se tornaram diferentes caminhos.
Meu lugar, uma povoação pequenina, mas que encanto de berço. Descalço pelas ruas descalças, em busca do sol pertinho de mim e da lua imensa e bela que ali tinha mais cor. Um dia roubaram minha matutice e me entortaram pelos caminhos da cidade grande. Prefiro o sol quente lá em cima do que esse asfalto queimando embaixo.
Prefiro lembrar do cachimbo e do chapéu do meu avô, vê-lo jogando sinuca ou fazendo medição de terras sem saber ler ou escrever; prefiro lembrar da pequena mercearia, bodeguinha mesmo do meu outro avô. Do oratório de uma avó e da religiosidade fervorosa de minha outra avó.
Prefiro até chorar assim, pois escravo consciente de uma memória cativa que diz do quanto valeu e apena ter vivido.


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com 

Nenhum comentário:

Postar um comentário