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segunda-feira, 25 de maio de 2015

VOLTA SECA

Por Robério Santos

1
Os dias eram longos. Várias vezes o pequenino pensou em escapulir pelo mato. Até tentava, justamente quando se distanciava para fazer suas necessidades fisiológicas, mas ele tinha medo do que poderia acontecer se algum deles o encontrasse futuramente em alguma paragem, pois se tem uma coisa ruim nesse mundo é viver escondido. Cangaceiro não se escondia, ele entrava nas cidades, visitava grandes fazendeiros, fazia foto, dava entrevista... isso não era se esconder. Muitas vezes parecia que a Volante não pegava o bando porque afrouxava. Lampião não era fã de muita conversa, já Volta Seca gostava bastante de uma prosa. Viajando na garupa ora de Corisco, ora do próprio Capitão, não demorou muito para se habituar àquela vida. Às vezes passavam por algum arraial e se ouvia de algumas pessoas que estava na rua.
- Eitxa, inté criança tem no bando!
Lampião punia Volta Seca, dando-lhe tapas na cabeça quando o mesmo cometia algum erro. Os outros cangaceiros também se aproveitavam da situação, mas Lampião não gostava que batessem nele sem sua permissão, às vezes saia até “bate-boca”(1), mas como todos respeitavam o Capitão, as brigas não se demoravam. Lampião passou a ser uma espécie de tutor para o cangaceiro “mirim” ou “criança” como apelidavam-no os Volantes. Dividia carona e a comida; comprou roupas novas para o pequeno; uma jabiraca azul, chapéu, anéis e também ensinou a atirar, coisa que Volta Seca já sabia um pouco por causa das caçadas de codornas com seu pai. Mesmo assim Lampião disse.
- Experimentem o menino, dê um fuzil a ele e vamos ver se é bom no tiro.
- Mais Capitão, eu nunca atirei cum troço dêssi não, só cum “pica-pau” (2) qui eu mermo fiz lá na minha terra i cum badoque e baleadêra.
- Aprende, quem tá no bando tem que aprendê a si defendê.
- Traga esse canhão pra cá [falou firme Volta Seca, querendo esconder o temor].
Lampião fez uma marca numa moita com um facão que pertencia a Corisco, deu duas facãozadas e marcou um “X”.
- Acerte na marcação, quero vê si tu sabe mermo atirá ô é cunversa di minino faladô.
- Tu acerta?
- Óia esse fuzil direito, eu num erro di jeito nenhum, só vejo por um ôio, mais eu num preciso de dois pra atirá mermo, eu sempre fechava o direito. Tu vai dá cinco tiro, tô contano. Todo mundo, sai da frente, isso num é certo não.




Dona Ilza dos Santos, sobrinha de Volta Seca - imagem do Robério Santos

Volta Seca todo desajeitado, uma arma quase maior que ele e com toda calma do mundo ele acerta os cinco tiros na marca, deixando os cangaceiros impressionados. Nem parecia aquele menino lavador de cavalo.
- Me arremedou direitinho. Só mais uma coisa, use esse lenço qui tu tá no percoço pra recarregar mais rápido, veja como faz [Lampião dá alguns tiros e mostra como faz] e saiba que arma vive é com a boca pra baixo... não facilite.
- Capitão, tô avexado cum uma coisa pra fala.
- Disimbuxa logo.
- É essa égua, lá da fazenda, as meninas mandaram a minha (3) e eu queria amuntá nela daqui por vante.
- Tu qué é fugi, moleque?
- Ôxi, fugi nada, tô é cumeçano a gostá da coisa.
- Tu vai muntá é num burro qui é menó pra ocê, dêxa a égua carregano os mantimento mermo e doravante faço promessa minha disso.
- Argadecido, Capitão, mais alguma coisa?
- Sim, tá na hora da gente matá macaco.
Vamos dar uma pausa aqui nesse ponto para tentar imaginar a cara de Volta Seca ouvindo aquilo. Ao lado de homens tão temidos, recebendo ensinamentos de Lampião em pessoa e vem com essa de matar macacos?
- Faço o qui o sinhô mandá.
O bando estava nas proximidades de Mirandela, a sul de Guloso, onde eles estavam naqueles dias.
- Minino, tira essa bagage toda qui tu tem, tu vai até a estrada, fica lá de brincadeira e se tu vê algum macaco passando pela estrada, depois que eles passarem, vem nos avisá. Intendeu?
- Intendi, Capitão, vô agora.
O menino sai do mato, olha para as duas direções e nada, nem uma alma penada a atemorizar cristão. O sol estava de rachar, pois era perto do meio dia. Uma hora se passou e Volta Seca lá na beira da estrada fingindo estar brincando com alguns gravetos enfiados numas mangas verdes emulando serem bois no pasto. Ele começara a ficar preocupado, pois os cangaceiros poderiam achar que ele fugiu. Foi aí que subindo a ladeira mais adiante vinha um bando de policiais, a famosa Volante do Tenente Menezes no sentido poente. Eles passam com cara de cansados e olham o menino no chão e um pergunta.
- Tá perto Bom Conselho?
- Sei não, ômi.
- E donde tu é? Sô daqui mermo, minha casa é ali, tô aqui brincando de boim.
- Tá bem, tenha um bom dia.
Volta Seca continua lá no chão, quando os soldados passam pela curva, para não contrariar o Capitão ele retorna ao coito. Quando chegou já foi interrogado euforicamente.
- Diz logo se viu algum macaco?
- Nhor não. Não tinha um macaco nem pra remédio [respondeu com todo orgulho pelo dever cumprido].
- Tem certeza que num viu macaco? Nada mesmo? [Falou o Capitão].
- Macaco num passô não, mais sordado passou de ruma, pra mais de quarenta queu contei.
- Mais macaco num é sordado?
- Não sei, não, senhor. Macaco que eu conheço é um bicho de rabo...
Nesse instante os cangaceiros caem numa risada tremenda, até mesmo Lampião. Começaram a explicar que “macaco” era “soldado” e que eles eram piores que cobra venenosa na tocaia. A alienação ao jovem era imensa, o fascínio se deixava transparecer. Tomaram notas da direção da Volante, cruzaram riachos e andaram uma hora numa certa direção e ficaram entrincheirados à espera dos milicos.
Lampião deu as instruções a todos, organizou as posições. Volta Seca recebeu de volta o fuzil e também instruções para ficar abaixado entre o cangaceiro Mariano e Corisco. O Mariano fumava demais e não parava de fazer fumaça, daquele jeito, se brincasse, seriam entregues. Lampião pediu para ele apagar o cigarro e se preparar. Um silêncio tomou conta do ambiente. Nem pássaro cantando, nem sussurro de gente, nada, parecia que o mundo havia se acabado ao redor deles. Aí se ouve de Lampião quando vê ao longe a Volante voltando e pareciam sorrir com alguma coisa, alguém do bando de Lampião comenta baixinho.
- A macacada tá contente, louca pra levar chumbo.
Ponto Fino apontava bem na direção de um rastejador, o “Cobra-Verde”, que era preto e magro, que vinha quase de cócoras na frente do cortejo, afastado uns vinte metros. Todos estavam bem preparados para o tiroteio. A maioria fazia pontaria, menos o jovem Volta Seca. Seu coração estava a ponto de explodir e parecia que ninguém se importava, naquele instante, com a presença do pequeno. Quando o rastejador estava a menos de dez metros da trincheira improvisada no barranco lateral, começou o tiroteio. Cobra-Verde foi o primeiro a cair e só se via soldado abrir na carreira, deitar no chão e entrar no mato. Era uma saraivada de tiros de um lado e de outro. Volta Seca tomou coragem e mirou o rifle e começou a atirar, desajeitado, mas mesmo assim cumpriu a ordem do Capitão. Volta Seca não acertou seus alvos, justamente por ter começado a atirar quando eles estavam se escondendo. Alguns já estavam feridos na estrada ou correndo e o fogo cobria no centro, parecia que não ia mais parar.
Corria quase uma hora de tiroteio e os soldados já estavam praticamente dissipados na caatinga. Os tiros foram diminuindo e Lampião começa a gritar para os macacos.
- Não adianta perseguir, pois macaco corre muito... corre... corre... macacos! Meninos, vejam quem tá gemendo por aí e terminem o serviço.
Volta Seca percebendo que nenhum cangaceiro saíra ferido viu o rastejador morto, passou bem do lado dele e foi na direção de dois soldados que estavam gemendo no chão. Lampião chegou perto dele e disse.
- Tu vai morrê agora disgraçado. Volta Seca, acaba cum êssi infeliz.
Volta Seca tirou o punhal que trouxera na cintura, o sol foi refletido nele e era a primeira vez que era desembainhado. Lampião ao seu lado como mestre ordena que o pequeno execute. Ele hesita por um instante. Os outros cangaceiros que estavam procurando mais mortos ou sobreviventes param para ver a cena. Nesse instante, Lampião tira o seu punhal de mais ou menos 80cm e enfia na clavícula do soldado que já estava mais morto que vivo (não fazia sentido gastar munição naquele momento), fazendo o pouco sangue que ainda tinha nas veias, escorrer pelo chão. Lampião olha na direção de Volta Seca e diz.
- É assim mermo viu? Ô nóis mata, ô nóis morri.
- Eu sei, vô furá.
- Tá cum pena?
- Não sinhô?
- Si tive podi dizê.
- Não sinhô.
- Anda cá, muleque. Fura, aqui, este macaco, prá tú sacostumá...
E foi aí que Volta Seca, vendo que não tinha saída, executou sua primeira vítima.
Acabado o batismo de “fogo” de Volta Seca ele fica ouvindo as proezas dos cangaceiros e seus feitios. O pequeno, coitado, pouca coisa tinha o que falar, mas a “brincadeira” estava apenas começando. O menino ouvira um sussurro do Capitão a Corisco naquela mesma noite.
- A coisa tá apertando aqui na Bahia pa nóis, vamentrá no Sergipe. Lá nóis podi drumi tranquilo.
- Vamo.
Volta Seca começou a ficar nervoso, pois estaria de volta justamente onde não queria.
 (1) Numa destas foi a separação de Lampião e Corisco
(2) Espingarda artesanal de carregamento pelo cano
(3) Bela Dama, a égua que ele pegou em Simão Dias

VOLTA SECA (2015). SANTOS, Robério B. (obra inédita). pgs. 62-68.

Fonte: facebook

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Um comentário:

  1. Anônimo11:52:00

    Jovem escritor Robério Santos, os meus agradecimentos pelas boas informações a nós prestadas através do blog do amigo Mendes das Terras de Mossoró.
    Antonio Oliveira - Serrinha

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