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segunda-feira, 31 de outubro de 2016

GUERRA DE PAU DE COLHER OCORRIDA ENTRE OS MUNICÍPIOS DE CASA NOVA (BA) E SÃO RAIMUNDO NONATO (PI) 1937-1938

Por Leonencio Nossa e Celso Júnior

Mar de sangue no sertão 

Documentos do Arquivo Histórico de Pernambuco revelam que a ditadura Vargas mobilizou o Exército e policiais de quatro Estados para massacrar mil sertanejos comandados por Quinzeiro, líder messiânico do arraial de Pau de Colher (BA). A ofensiva rendeu a mais sangrenta chacina do Estado Novo e uma das maiores violações de direitos humanos por forças legais do Brasil no século 20. As crianças sobreviventes foram entregues a famílias abastadas de Salvador.



Testemunhas da ofensiva lançada em dezembro de 1937 contam que as mulheres do arraial corriam em direção aos canos dos fuzis dos soldados na tentativa de impedir com lençóis e anáguas a visão dos atiradores, que disparavam com as armas um pouco inclinadas. Era para não acertar as crianças, mas, em meio ao fogo cruzado, ninguém foi poupado.


Horas depois do tiroteio, sob a fumaceira dos tiros que cobria a caatinga, o pistoleiro Norberto Pereira, guia da polícia, retirou dos braços de uma mulher ensanguentada a menina Ana Rita Pereira Neta da Silva, de 3 anos. A mãe da criança morreu. O pai, José Rodrigues de Souza, o Zé Caboclo, foi preso e torturado.

A menina não entrou em uma das “carroças salvadoras” que levaram os órfãos da guerra para o porto de Casa Nova, na divisa com o Piauí. Dali, embarcariam de vapor para Juazeiro e depois um trem até Salvador – onde seriam entregues a famílias abastadas como empregados domésticos e, em muitos casos, escravos. A sobrevivente de Pau de Colher foi escondida por Norberto para não ser levada.

Hoje com 76 anos, Ana Rita vive num sítio em Riacho do Meio, no sopé da Serra Vermelha, no semiárido piauiense. Para se chegar até lá, a pouco mais de 100 quilômetros do município de São Raimundo Nonato, é preciso enfrentar uma estrada de terra quase intransitável. É o caminho que liga a civilização ao remoto lugar, isolado pela serra tomada de angicos e canafístulas. Ali percebe-se uma diferença de fuso histórico. O sertão de hoje está distante da realidade nos grandes centros e parece acordar e dormir num tempo não muito distante do da época do massacre de Pau de Colher. Faltam energia elétrica, escolas, saneamento básico, água encanada, serviço de carteiros.


O Estado contou com a ajuda do pesquisador Marcos Damasceno, 28 anos, que escreve livros sobre o sertão piauiense. Na companhia dele, a reportagem esteve em programas de rádio de São Raimundo Nonato. Radialistas informaram aos ouvintes sobre a presença da equipe e pediram informações para localizar testemunhas da revolta que vivem na vasta região que abrange partes do Piauí, da Bahia e de Pernambuco. Foi assim que se chegou a Ana Rita.


Rodeada de filhos, netos e bisnetos, a sertaneja de olhos castanhos e cabelos compridos lembra de Norberto, o pistoleiro que a salvou, um “matador” que andava com bornal de bala pendurado no peito. Da mãe, Maria Inácia Pereira, ouviu dizer que era “bonita”, “fortona”, “branca e de olhos azuis”.


“Pelejei nestes anos todos para me lembrar da minha mãe. Não consegui. Dizem que quebraram as pernas dela. O Norberto entrou no arraial para ver quem estava vivo. Ele me encontrou no fogo”, conta. “Mamãe ainda estava viva; pediu um pouco d”água e que me tirassem dali”, completa. “A polícia terminou de matar quem ficou vivo lá.”

Os pais de Ana Rita trabalhavam numa fazenda de gado quando souberam da formação de um arraial por Joaquim Bezerra, o Quinzeiro, um líder religioso que vinha de Casa Nova. “A mãe mais meu pai foram para lá, se fanatizaram. Eles me levaram”, diz. “Quem foi, morreu; mas meu pai escapou e passou seis meses preso em Salvador. Morreu em 1979. Depois da guerra, fui para São José, morar com a madrinha Nenzinha.”

Numa das trincheiras de Pau de Colher estavam fazendeiros piauienses e baianos, a Igreja Católica, o governo de Getúlio Vargas, os interventores da Bahia, do Piauí e de Pernambuco. Na outra, meia dúzia de religiosos primitivos e pequenos agricultores armados com cacetes de marmeleiro – árvore típica da caatinga, como o arbusto pau-de-colher, que deu nome ao povoado. Os caceteiros, como os pequenos agricultores foram descritos nos relatórios oficiais, estavam agrupados em um vilarejo, uma espécie de Canudos do Estado Novo, acusados de assaltar propriedades e impedir o transporte de gado e cabras pelas estradas da região.

Um dos relatórios analisados foi escrito por Optato Gueiros, capitão da Polícia Militar de Pernambuco que chefiou, entre 19 e 21 de janeiro de 1938, um total de 97 homens da brigada pernambucana, integrante da terceira e última campanha contra os caceteiros. Ele entrou no povoado antes da hora combinada com o comando central da operação, chefiado pelo tenente-coronel Augusto Maynard Gomes, homem de confiança de Vargas que tinha sido interventor de Sergipe, de 1930 a 1935. A operação contava ainda com efetivos de batalhões do Exército em Salvador e Aracaju e das polícias da Bahia e do Piauí.

Resistência.

O documento comprova que a brutalidade da ditadura Vargas não se limitou à repressão de focos da classe média, organizados por partidos políticos nas grandes cidades. Por meio de sua rede de polícias estaduais, Vargas recorreu à violência para controlar focos de resistência também na área rural.

No relatório, Gueiros aponta 157 mortos no centro de Pau de Colher e 40 rebeldes atacados por uma patrulha do Piauí. Há ainda a lista de 20 mortos na fazenda do Janjão, em São Raimundo Nonato, num suposto ataque à propriedade. Um livro esgotado escrito pelo ex-prefeito de Casa Nova Raimundo Estrela, Pau de Colher, uma pequena Canudos, ajuda a compor a história. Médico dos militares durante o conflito, Estrela escreveu que 12 pessoas da fazenda de Janjão, incluindo 2 crianças, foram mortas pelos caceteiros. A origem desse ataque, ocorrido a 5 de janeiro de 1938, é uma incógnita da história do conflito.

Uma testemunha do ataque à fazenda de Janjão vive no sopé da Serra Vermelha. Floriana Gomes Ferreira, a Santa, de 84 anos, prima do fazendeiro Janjão, diz se lembrar da chegada dos caceteiros à propriedade. “Gente da fazenda chegou gritando:  

“Lá vem o pessoal dos caceteiros…” Nesse dia, Janjão tinha matado uma vaca. Os caceteiros mataram dez capangas. Tocaram fogo em tudo. Quem podia, correu. Rodei oito dias no mato, chupando água de caroá, comendo umbu”, conta. “Depois, veio a polícia atrás deles. Quando foi à noite, no alto da serra, vi o fogão. Morreu muita gente.”

Isolamento.

Santa mora numa casa de tijolo e telha sem energia elétrica com o irmão Rubem, de 87 anos (outra testemunha do conflito), o sobrinho Leonardo, 37 anos, a mulher dele, Ana Maria, 38, e duas crianças. A família vive do plantio de milho e feijão e da aplicação de agrotóxico nas lavouras dos vizinhos. Ana Maria reclama que a escola municipal em que os dois filhos menores, Gilmara e Amilton, estudavam, a 6 quilômetros, fechou. A prefeitura de Dom Damasceno não deu explicação. Estão isolados e esquecidos pelo Estado brasileiro, como na época dos caceteiros.

Ao longo do tempo, representantes dos dois lados da guerra disseram em depoimentos que o conflito resultou na morte de mais de 400 pessoas. Até o momento, não há documentos oficiais que confirmem esse número, bastante citado em depoimentos orais colhidos pelo Estado. O palco da guerra se estendeu por um raio de 400 quilômetros quadrados, envolvendo os povoados vizinhos de São José, Proeza, Minadouro, Cachoeirinha e Olho D”Água – que pertenciam a São Raimundo Nonato, no Piauí -, e Lagoa do Alegre, São Bento e Ouricuri, distritos de Casa Nova, na Bahia.

Memória preservada.

Depois de dois dias percorrendo estradas de chão, a equipe do Estado chega ao campo onde se localizava o arraial de Pau de Colher. O agricultor Gregório Manoel Rodrigues, 65 anos, aparece. É o guardião do território dos caceteiros. Ele e a família capinaram toda a área e colocaram plaquinhas para identificar as trincheiras, uma cova coletiva, as casas dos líderes dos caceteiros e os pontos onde chefes rebeldes mataram e foram mortos.

Quando é informado que os visitantes são de um jornal de São Paulo, Gregório se emociona. Corre para debaixo de um umbuzeiro e chora. É surpreendente encontrar no meio do nada alguém preocupado com a memória do País. “Eu sabia que alguém viria para cá contar a história do Pau de Colher. Isso foi tudo escondido, gente! Ninguém sabe disso”, diz, gritando. “Tenho fé em Deus que essa história vai ficar conhecida.”

Gregório guarda fragmentos de ossos, que diz terem sido encontrados durante a capinação, balas de fuzis, cachimbos, pedaços de cerâmica, garfos e antigas garrafas. Ele leva a equipe por uma trilha até um pé de faveira, arbusto muito comum em Canudos. Embaixo da árvore há uma cruz de aroeira. “Aqui morreu Ângelo Cabaço, um dos líderes dos caceteiros”, informa o agricultor.

Próximo à cruz, ficava a casa de José Senhorinho, outro líder e fundador do arraial. Restam apenas pedaços de telhas. Depois, Gregório leva ao local onde Senhorinho e Ângelo Cabaço foram enterrados.  

“Depois da guerra de 38, o pessoal veio aqui arrancar os ossos, que foram queimados para os dois não virarem bicho”, diz. “A coisa que eu mais queria era fazer uma estátua do Senhorinho. Ninguém sabe o que ele pensava, porque reuniu tanta gente e enfrentou a polícia. É um filho daqui. Eu queria olhar para a estátua e entender o que ele pensava”, diz. “Ninguém sabe o que Senhorinho queria.”

O juazeiro onde os caceteiros subiam para ficar mais perto do céu não existe mais. Um outro, frondoso, onde havia a feira do arraial, mais abaixo do acampamento, serve de proteção para carneiros e bodes contra o sol abrasador do meio-dia. A caatinga está verde neste mês de fevereiro. Asas brancas e juritis dão voos rasantes por cima dos xique-xiques, favelas, muçambês e umbuzeiros.

Gregório reclama que as autoridades do município de Casa Nova tentam esconder a história de Pau de Colher. O agricultor demarcou a área do antigo acampamento para evitar que algum vizinho ocupe o lugar. Ele fez questão de colocar limites no próprio sítio, onde cultiva milho e mandioca. No povoado vivem ao todo 28 famílias de sitiantes.

O filho de Gregório, Dirceu Nunes Rodrigues, 31 anos, ajuda na preservação da memória das ruínas do antigo arraial. Dirceu era vocal da banda de forró Souzinha dos Teclados, de Casa Nova. Há pouco tempo, montou o Mercadinho Pau de Colher, que atende famílias da região.

Como o pai, ele trata os líderes de Pau de Colher como heróis. “Boto fé que o Quinzeiro não era um homem à toa. Era um homem inteligente”, diz, referindo-se ao principal líder religioso de Pau de Colher. Quando o pai se afasta, Dirceu aproveita para contar que ouviu pessoas mais velhas dizerem que Quinzeiro era sedutor. “Se aparecesse uma mulher, não tinha para ninguém.”

O sertão dos caceteiros apresenta algumas mudanças sociais. O fuso histórico daqui, agora, dá mostras de que se aproxima do das cidades. As famílias deixaram de ser numerosas. Atualmente, na região, um casal tem no máximo três filhos. Desde o começo dos anos 1990, a motocicleta substituiu o jumento. O benefício do programa Bolsa-Família complementa a renda de parte das famílias, o ensino continua uma tragédia e a palavra “São Paulo” – nome da grande metrópole – não fascina tanto quanto antes. Não há mais o sonho enlouquecido de partir para o Sul. Em quase toda velha casa, agora com cisterna, há alguém que já trabalhou ou morou em São Paulo, um mundo distante, porém, já conhecido.

Por falta de hotéis e pousadas na região, a equipe do Estado pernoitou na casa de Maria Aparecida, 42 anos, filha de Ana Rita – a sobrevivente de Pau de Colher salva pelo pistoleiro Norberto de ser colocada num trem para Salvador.

A casa tem três quartos, uma sala onde os visitantes amarram as redes, uma cozinha e um banheiro. A família conseguiu entrar num programa de uma ONG e instalou uma placa de energia solar. Maria Aparecida, o marido Waldemar, 48, e três filhos menores podem assistir à televisão até as 20 horas. Depois, a energia é desligada. Waldemar é neto de João Damasceno, um dos fazendeiros que ajudaram a combater os caceteiros.

Hospitaleiros, os Rodrigues oferecem bode, cuscuz e tapioca de jantar. Na mesa, Waldemar conta que trabalhou em uma metalúrgica e em um supermercado em São Paulo nos anos 1980. Foi lá que, em 1982, votou pela primeira vez em Lula, para governador. “Depois achei que o PT não era uma boa opção. Votei no Collor de Mello e duas vezes no Fernando Henrique para presidente. Um dia resolvi dar outra chance para o Lula”, diz.

No ano passado, Waldemar pegou um financiamento de R$ 5 mil do Pronaf para comprar 20 ovelhas e fazer uma cerca. Começará a pagar em 2012, cerca de R$ 900 por ano até 2016. A família vive de criação de animais e plantio de feijão e milho. Maria Aparecida recebe R$ 145 do Bolsa-Família, que ajuda a complementar a renda.

Maria Aparecida reclama da falta de médicos. Todos os dez mil moradores de Dom Inocêncio contam com apenas um profissional, que trabalha três dias na semana. Também reclama que a escola mais próxima está na sede do município, a 26 quilômetros.

É numa moto que Waldemar leva os três filhos para a escola. As crianças passam a semana numa pequena casa da família para frequentar a escola. Emanoel Charles, 17 anos, o filho mais velho do casal, gosta de roupas coloridas, bonés e músicas estrangeiras. Tem uma conta no site de relacionamento Orkut. “Sou um descendente de caceteiros”, diz, com ironia. “Isto não é legal.”

No rastro das “carroças salvadoras”.

O Estado viajou para Salvador em busca de uma das crianças órfãs de Pau de Colher. A equipe de reportagem encontrou no bairro de Matatu, a poucos quilômetros do Pelourinho, uma das menores levadas pelos militares para a capital da Bahia. Maria da Conceição Andreza Pinto, agora uma simpática e alegre senhora de aproximadamente 78 anos – no conflito, ela perdeu os documentos -, conta os horrores da guerra no semiárido baiano com uma surpreendente riqueza de detalhes. No início do ano, ela procurou jornais e rádios da Bahia para contar sua história e tentar localizar uma irmã desaparecida desde o começo da guerra.

A chegada da equipe ao apartamento de Cristina, uma das filhas de Maria, em abril, virou momento de festa. Aqui estão três orgulhos filhos da matriarca. Silvio, Cristina e Fernando pesquisam há 20 anos a história da mãe. As netas Clara e Talyta também estão na sala. Estudante de comunicação da Universidade Federal da Bahia, Talyta pretende fazer um documentário. “Eu queria voltar no tempo para não ter deixado minha mãe passar por isso”, diz Fernando.

Filha de Pedro de Andreza, um dos líderes do movimento, e de Justina, Maria tinha sete irmãos quando a tropa de Optato Gueiros chegou ao arraial. Pelo menos cinco deles morreram no tiroteio. A avó Andreza e mãe Justina também caíram mortas. O pai foi preso. Na capital baiana, Maria serviu de escrava até o final da adolescência em casas de famílias da elite.

Por Leonencio Nossa e Celso Júnior
JORNAL O ESTADO DE S. PAULO
Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
19 de Dezembro de 2010.


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