Por José
Gonçalves do Nascimento
Final do
século dezenove. No rastro de antigos missionários, e conduzido pela estrela do
Bendegó, um homem cruza os sertões em busca da terra anunciada. Pouco tempo
havia desde que a república foi proclamada, quando Antônio Vicente Mendes
Maciel, o Conselheiro, chegou ao arraial de Canudos para dar início à sua saga
redentora. A notícia fez com que famílias inteiras deixassem tudo para trás a
fim de se juntar ao profeta.
O sertão quase
que esvaziou. As fazendas fecharam suas porteiras. As cercas despencaram e não
havia mais quem as erguesse. Os engenhos viraram fogo morto e agora não
passavam de uma triste lembrança na crônica sertaneja. Os ferros que antes
davam forma às correntes transformaram-se todos em arados. Negros, índios,
vaqueiros, gente do eito, antigas escravas, parteiras, benzedeiras,
professoras, poetas, beatos, menestréis, toda essa enxurrada de gente arribou
em massa para a aldeia sagrada. Em pouco tempo Canudos já era a maior vila do
sertão. Desesperado, um barão daquelas terras escreveu no jornal, queixando-se
da falta de braços nos seus alargados domínios.
Mais do que o
paraíso utópico dos contos antigos, Canudos era a realização do sonho de
liberdade desde muito fomentado pelos filhos do sertão. Era a Canaã prometida,
a terra sagrada onde jorrava leite e mel. A fortaleza segura que a todos
protegia e amparava. O doce regaço a refrescar os corpos cansados nas tardes
longas de fadiga.
O Vaza-barris,
generoso, desmanchava-se em verdejantes vales, onde tudo brotava com fartura.
Milho, feijão, fava, batata, jerimum, até cana de açúcar crescia bonitona por
aquelas bandas. A terra era de todos, não havia cerca, nem senhor. Seus
supostos donos andavam a enlamear-se na areia fria da praia. Tinham outras
preocupações. Visavam às cifras, às siglas, às urnas. Não queriam largar a
gamela palaciana. Viviam fuçando os cofres oficiais, ávidos de mais
privilégios.
Enquanto isso,
o sertão florescia e um novo mundo se desvendava; despido da sua sisudez
habitual, o deserto se recobria com o verde do alecrim e do mandacaru; os
celeiros se enchiam de semente nova; as cacimbas, outrora esturricadas, dessa
vez regurgitavam de tão cheias; no alto dos morros, nas colinas, por toda
parte, animais pastavam tranquilamente; os antigos currais davam lugar às roças
de milho verde, enquanto o lavrador virava senhor de si, não sendo mais
obrigado a oferecer a força do seu braço em troca de alguns poucos vinténs.
A terra, os
campos, a criação, a água dos rios, os peixes, os paióis de feijão, tudo ali
era de todos; os dias de bonança, a comida farta na mesa, o leite, o pão, o
cuscuz, tudo nascia da união fraterna e solidária dos amigos do beato; a
república, o governo não davam as caras por lá; aliás, para o governo aquela
gente sequer existia; não tinha nome, nem identidade; vivia noutra terra,
noutro país.
O peregrino
era a luz que rompia a escuridão do deserto; um cavaleiro da esperança a abrir
caminhos nunca antes transitados; um anjo rebelde a desafiar o status quo da
velha política que há séculos afundava o sertão no vale tenebroso do
analfabetismo; sua palavra era espada afiada contra a ira do mundo; contra o
pecado institucionalizado da pilhagem do bem público por parte dos ricos, que
ficavam cada vez mais ricos, em prejuízo dos pobres que ficavam cada vez mais
pobres; contra o descaso, a inércia e a má-fé da promíscua e parasitária
máquina governamental, responsável pela eternização da miséria e do atraso;
contra o moralismo insano e estúpido dos padres, que apontavam nos pobres todo
tipo de pecado, mas que viviam ora a lambuzar-se nos braços das concubinas, ora
a refestelar-se nas mesas dos coronéis.
Seu Evangelho
se assentava na tolerância, na mansidão, na brandura. Não condenava, libertava.
Não atirava pedras, acolhia. Não recorria às leis do inferno para amedrontar e
prevenir; do contrário, evocava a beleza de Deus para instruir e ensinar.
Unindo o céu e a terra, sua catequese vislumbrava já neste mundo o reinado que
os clérigos, comodamente, anteviam apenas no além-túmulo. Seu apostolado, ao
tempo em que esmagava serpentes, também construía pontes, cavava açudes, abria
estradas.
Tudo ia muito
bem até que das profundas da escuridão sem fim, o dragão da maldade levantou
sua cauda terrível, espalhando fogo pelo sertão. Agora sim, a república, o
governo por lá apareciam. Só que ao invés de lápis e caderno, levavam fuzil e
baioneta. A reforma agrária, sonhada, era substituída pelo troar da
“matadeira”. A liberdade, a bem-aventurança, a alegria do viver, agora davam
lugar à dor, à tristeza, à desolação. Tudo isso em nome de Deus, da ordem, da
pátria e dos "bons costumes".
Foi assim que
a noite baixou sobre Canudos, abrindo as cortinas da morte e encerrando a
poesia no túmulo da estupidez; de repente o céu inteiro se alumiou e do alto da
serra do Cocorobó soou uma trombeta luminosa, anunciando que o Conselheiro
ressuscitara.
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Fonte/foto: https://www.google.com.br/search…
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