*Rangel Alves da Costa
Talvez você não se recorde, mas sua mãe sim, e sua avó e bisavó muito mais. Noutros idos - e nem precisava ser casa rica ou de família “ajeitada” na vida - era muito comum que as salas de almoço e jantar das residências, mas também nas cozinhas, fossem guarnecidas por um móvel tão útil quanto singular: a cristaleira.
Pelo nome, logo se depreende ser um móvel para guardar objetos de cristais e outras preciosidades do lar, porém não exclusivamente. Ante a raridade de copos e outros utensílios de cristal, as cristaleiras sertanejas serviam basicamente para guardar as taças, as xícaras de porcelana (ou apenas esmaltadas e adornadas com ramos e flores) e os copos mais bonitos e que dali só eram retirados em datas especiais, assim como um regabofe oferecido a convidado de renome e veneração.
Os livros e dicionários assim definem a cristaleira: Móvel de sala envidraçado no qual se guardam e expõem objetos de cristal como copos, garrafas, compoteiras etc. Surgida ainda no século XVII, a cristaleira comumente serve para designar o móvel de madeira maciça com portas de vidro, prateleiras e espelhos ao fundo, integrando a sala de estar ou jantar. Era móvel essencial no passado de muitas residências.
Sempre com vidros limpinhos, madeira trabalhada artesanalmente e envernizada no óleo de peroba, tendo por cima um enfeite singelo e bonito, as cristaleiras se afeiçoavam a cofres e outras relíquias familiares tão adoradas e bem cuidadas. Aos olhos da dona de casa, ainda que empobrecida pelas circunstâncias da vida, ter uma cristaleira bem guarnecida era orgulho sem igual.
A cristaleira e o oratório dignificavam as residências, demonstravam a abnegação sertaneja em manter suas pequenas e significativas relíquias. Minha avó Marieta tinha uma bonita, logo na sala do meio, após a sala de entrada. Dentro dos objetos com tampa ela também costumava guardar um dinheirinho. De vez em quando me chamava e colocava uma notinha na mão, e dizia: Mas não é pra gastar não, viu meu filho! Pouco tempo depois eu já estava farejando outra nica.
Contudo, o passar dos anos foi cruel para os oratórios, as cristaleiras e tudo aquilo de tão belo que guarneciam os lares sertanejos. Hoje é muito difícil encontrar uma cristaleira ou mesmo um lavatório de mãos. Tá até difícil encontrar um autêntico sertanejo, daqueles que se orgulhe com alma em flor pelo seu mundo sertão.
Há vinte anos, ou em torno disso, não era difícil encontrar antigas cristaleiras nas residências sertanejas, principalmente nas povoações mais afastadas dos centros urbanos. Nas fazendas, lugarejos ribeirinhos, muitos móveis antigos ainda restavam para contar a história dos antepassados.
Contudo, a febre ou o modismo pelos móveis antigos, fez com que uma enxurrada de gente da capital e até do sul do país acorresse em busca de antiguidades. Perante o povo pobre, pagavam qualquer coisa e levavam - para revender por alto valor - as relíquias domésticas e familiares.
Hoje em dia, apenas uma ou outra cristaleira escondida pelos recantos matutos. Comprar é muito difícil, pois as que ainda restam se tornaram em relíquias inseparáveis. Mas de vez em quando ouço falar que não faz muito tempo que uma foi abandonada pelos quintais, ao sabor do tempo.
Para uma ideia, desde mais de dois anos que procuro uma cristaleira para colocar no Memorial Alcino Alves Costa, em Poço redondo, sertão sergipano. Mas parece não haver mesmo jeito. A última que avistei foi numa casa na Fazenda Favela, em Floresta, no estado de Pernambuco. Antiga, bonita, garbosa, afeiçoando-se a uma saudade sem fim.
Escritor
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