*Rangel Alves da Costa
Naquele Poço Redondo dos tempos passados, onde nenhum supermercado existia e sequer se falava em cartão de crédito, a compra era em bodega ou mercearia e o pagamento era em dinheiro vivo ou na confiança da anotação no velho caderninho. O vendeirim ia lá, com seu garrancho ou letra miúda, anotava o quilo de açúcar, o pacote de café, os três contos de biscoito Maria. O luxo da goiabada, ou mais luxo ainda da Alfazema Suíssa. As vendas pequenas, mas sortidas de tudo. Ou ao menos o necessário para um viver sertanejo sem luxo ou prato requintado.
Aliás, grande parte daqueles pais de família possuía seu roçado pelos arredores - em pequenas propriedades para o prazer de dizer que era dono de um terreninho - e deles trazia boa parte do alimento da estação. O milho na espiga, o feijão na casca, a melancia, a abóbora, o maxixe, o melão coalhada. O feijão de corda era sempre uma colheita especial e para depois ser debulhado nas calçadas em noites de lua grande ou nos entardeceres de brisa boa. No terreno, coisa miúda de limite na cerca ou no arame, apenas uma casinha de barro e cipó para guardar a enxada, o machado, a foice, a estrovenga, o cesto para cortar palma, garrafas com grãos para ser plantados, pouco ou quase nada mais que isso. Um velho arado, talvez.
Ao lado da casinha o pequeno curral. Se alguma cria havia, também era muito pouca. Três ou quatro vaquinhas para chiqueirar e pela manhã fazer esguichar o peito da vaca com o leite bom. Leite que muitas vezes já esguichava por cima de um algum prato de estanho com farinha seca. Ou mesmo uma caneca maior com a farinha ao fundo. Tudo colocado rente ao peito da vaca e a descida do líquido espumante e quente. Uma sustança garantida naquelas primeiras horas do dia. O leite que restava era levado para ser cozido em casa e depois utilizado no mingau, na papa, ou para molhar o cuscuz ou ser misturado com a abóbora amassada. Doce de leite, queijo, coalhada ou para a venda pela vizinhança, só mesmo quando a estação era boa e a cria leiteira produzia em maior quantidade.
Quintais de galinhas, de ovos de capoeira, ou até um chiqueiro de porco mais adiante, com bicho sustentado pela lavagem recolhida nas vizinhanças depois dos almoços. Na cidade mesmo, acaso o sertanejo necessitasse de algum alimento ou de alguma outra utilidade para o lar, as opções eram os mistos de mercearia e bodega de Dom, a de Messiinha, a de Ermerindo, a de Zé Preto, de Seu João Aleijado, de Chico Bilato, de Lourenço e algumas outras espalhadas pela cidade. Algumas vendiam somente coisas de despensas, como o açúcar, o café, a farinha, o arroz, o óleo de comida, e coisas assim. Outras sortiam mais os produtos ofertados.
Messiinha, por exemplo, vendia também bebida e até querosene. Já Dom se esmerava na aguardente nos quilos disso e daquilo. Raras eram as vendas que não possuíam um rolo de fumo logo num canto de balcão. Mas poucas eram as que possuíam fardos de carne seca e jabá. Numa época onde o charque era de preço baixo e acessível a todos, bastava o sertanejo chegar ao pé do balcão, experimentar uma lasquinha e pedir um corte bom. O almoço ou janta já estava garantido. Em época de Semana Santa, até mesmo bacalhau era encontrado a preço bom. Tais produtos, contudo, eram exclusividades de algumas mercearias, pois as demais se contentavam em oferecer o básico da alimentação.
Muitos vendeirins deixavam o arroz, a farinha e o feijão em sacos, e só pesavam na presença do comprador. A velha balança já estava por perto para a medida certa. Pelas prateleiras, as latas de biscoitos, as cajuínas, os vinhos de jurubeba, os talcos de pó, as alfazemas, novidades que sempre chamavam a atenção. Dom nunca estava no seu balcão, mas seu papagaio, traquina e falador, logo gritava se alguém aparecesse. Na maioria das vezes, toda a compra era anotada no caderninho. Pela seriedade do povo daquela época, quase nenhum prejuízo era causado ao pequeno comerciante. Outras vezes, bastava um recado chegado por um meninote, e a mercadoria era entregue sem medo. A confiança era grande e o compromisso acertado ao final do mês. Somente assim outra folha era aberta no velho caderno.
Quem quisesse comprar pano ou roupa feita, o endereço era num dos comércios das irmãs Marques: Conceição, Izabel ou Mãezinha. Calça Lee, camisa volta-ao-mundo, vestido estampado, pano enfestado, calçola, tudo. Cerveja era coisa rara, mas existente. Na venda de Ermerindo, por exemplo, existia uma geladeira a gás (com a porta amarrada de corda) e também a oferta de cerveja mais ou menos gelada. Somente Brahma ou Antarctica. Ali também a sinuca e o bilhar. Mas nada igual ao salão de Angelino, que além de ser uma casa de jogos com bilhar e mesas de carteado, era o local onde grande parte dos homens se reunia para saber de tudo o que se passava na cidade e região. Causos, proseados, fofocas e converseiros políticos.
Após a metade dos anos 70, com a chegada da eletricidade e o surgimento das primeiras geladeiras elétricas, logo também surgiram os geladinhos peito de véia. Era uma febre. E quase todo mundo pelas calçadas com um peito de véia na boca. Tempos, tempos. Histórias, histórias...
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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