BALÃO CABRA
NO INPS
Trinta anos de
luta. Agora, é um trabalhador aposentado e doente.
No dia 27 de
outubro de 1972, o ex-cangaceiro Balão, de cabra de Corisco, Anjo Roque e
Lampião, cabra macho, pai de 25 filhos, tendo o corpo fechado por um patuá
secreto e inconfessável; Balão, portanto, na verdade Guilherme Alves, mas por
direito Balão porque sempre teve o peito estufado, recebia nas costas cem
quilos dentro de um poço desbarrancado, perdido na ocasião os dentes,
fraturando as costelas, rachando os lábios, cegando os olhos, afundando o
peito. A cidade de São Paulo liquidava um cabra que sobrevivera aos tiros de
Mané Neto e que durante nove anos de caatinga nunca pisara em farmácia. O
declarante tem algo a dizer?
- Sabia que
aquele poço ia cair, mas o mestre de obras Guerino começou a me torrar.
Entrei
para ele ver. Só me lembro de ter enchido um balde de terra.
Aposentado.
O curioso é
que, havendo lutado durante os primeiros trinta anos de sua vida e trabalhado
durante os outros trinta que também viveu, nunca teve férias. Ouçam a história:
Depois de
nascer em Paulo Afonso, Bahia, no ano de 1910 viu com quatro anos de idade o
diabo – “um neguinho preto botando fogo na roupa”. O bicho desapareceu lá pelo
Pilãozinho. Balão não chegou a ver seus pés de bode, mas diz que “o resto era
homem de mesmo”. Foi a única vez que viu o diabo em pessoa. Depois, viu só suas
obras. A seca era braba e a criação se acabava de sede. Chegou então a volante,
sovou o pai em cima de um saco molhado de sal e cortou o couro cabeludo do
irmão. Balão, tipo genioso, decidiu vingar. Nisso passa Corisco.
Briga –
“recebi um fuzil comprido e seiscentas e sessenta balas. Gastei tudo no
primeiro dia”. Comida – “quando achávamos uma rês ninguém ia percurar o dono;
passava a do coco. Mas era difícil encontra e as vêis nós abria a boca pro céu
e não encontrava nem uma salivinha na ponta da língua”. Ascendência – “minha
bisavó foi pegada lá pros lados de Mato Grosso. Era da aldeia Carajá".
Lampião - “num queria mudá nada, morreu purque tava cansado – brigar vinte anos
num é vida de homi”.
CORPO ABERTO
Balão só viu o
mar no dia em que se entregou. Foi em 1938, Salvador, na barra do rio Vermelho.
Caiu n’água e gostou. Só que de noite teve a primeira dor nas costas de sua
vida. Andaram dizendo que aquilo lhe abrira o corpo. Balão não acreditou, mas
nunca pôde tirar a prova, já que a partir daquele dia nunca mais entrou num
tiroteio.
Ficou um ano
no quartel, foi bem tratado pelo capitão Aníbal e depois deu no pé a fim de
procurar seu destino. Para quem nunca havia trabalhado aquele seu primeiro
emprego na estrada de ferro, de trena e baliza na mão, foi até manso. Puxou com
os “ingenhero” uma linha de Contendas a Monte Azul; tomou conta de noite do
barracão de lentezinhas, acabou arranjando um caso com o dotô que lhe cortejou
a namorada. Não bateu nele, não – deu só uns tiros numa porta – o dotô pulou
uma janela e um abaixo-assinado removeu-o do local. Fugiu correndo para o Sul
sem documento. Corpo agora definitivamente aberto.
Passou por um
investigador da polícia em Pederneiras, passou por Tupã, encarou uma pensão
portuguesa em Marília. Era o tempo da Guerra e do gasogênio, os carros corriam
com um caldeirão atrás. Balão plantou um pouco de algodão, mas trabalho mais
duro era um suplício – o homem que só tinha empunhado o fuzil criou 17 calos na
mão no dia em que cortou sua primeira lenha. Sua época mais feliz foi logo
depois, quando arrumou um barzinho à beira da estrada em troca de cem votos
municipais. Depois inventaram um negócio de imposto e Balão veio para São Paulo
– 30 de outubro de 1960. Foi dando logo uma entrada para comprar a casinha.
Itaquaquecetuba. Por ali, perto de São Miguel Paulista, Balão descobria mais
gente do que na cidade de Belém, por exemplo. Milhares de nordestinos. Isso
aliás nunca o espantou – Balão disse que não se espanta com “panorama”, aliás
não se espanta com nada.
E foi aí que
começou o inferno. Começava sua carreira como poceiro – poços de 10 a 15
metros, sem ajudantes a não ser seus filhos “de menor” que trabalhavam de graça
e não conseguiam alçá-lo do fundo da terra. Os peitos e as costas rebentadas de
noite. Recebeu seu primeiro cheque sem fundo no dia 25 de outubro de 1963 – ele
se lembra de que era o banco Auxiliar de São Paulo, emitido por dois larápios,
o Norberto Tedesco e um outro pilantra vestido com uma falsa farda da
Aeronáutica.
À PROCURA DOS
DIREITOS
Num gesto de
absoluta ingenuidade, Balão devolveu não só o primeiro mas o segundo e o
terceiro. Depois assinou promissórias que ficaram sem resposta. Quando o prazo
esgotou Norberto pediu a Balão que “desse o fora” e fosse procurar seu direito.
Que voltasse quando conseguisse encontra-lo. Balão saiu desesperado com a
desfaçatez. Nem pegou o elevador: desceu a escada a pé e foi comprar uma
garrucha e 25 balas na rua Joaquim Nabuco. Mas “se os maiores estavam criados,
os de menor não tinham parentes ou aderentes – estariam perdidos com um pai na
cadeia”. Saiu procurando seus direitos – trocou a garrucha por um rádio de
pilhas.
Depois venceu
a sanfona de oitenta baixos, fez galeria na rua Santo Antônio (“o mestre de
obras era ruim, quase meto a picareta no gogó dele”) trabalhou no ar comprimido
para a SOBRAF – nunca tinha visto aquilo –, o português jogou-o lá dentro até o
dia em que o médico disse que ele não tinha mais idade para aquele trabalho,
bateu estaca na rua Veridiana. Sempre à procura de seus direitos, mas com um
ditado à mão: “boi muito amassado dentro do curral se num soltar fica ruim”.
E foi indo até
o dia em que o Guerino, o maldito Guerino, resolveu desafiá-lo a entrar naquele
poço evidentemente apodrecido. Sabia que ia desabar. Mas ele torrou, e Balão
cavou um balde – o último balde bem cavado de sua vida: dentes, costelas,
olhos, peito – e a dor na virilha, a sinusite crônica, a urina avermelhada de sangue.
E os direitos?
Balão nunca se
separa das muitas carteirinhas ensebadas mas em ordem, dentro do bolso da
camisa. Depois de tantos anos de vida sem lei, é quase uma obsessão a lei.
Afinal, a cidade grande e o mundo industrial é que são os civilizados. Carteira
profissional n° 2502, chapa 1180 da Sobraf, etc... A carteira está presa na
Delegacia do Trabalho na rua Martins Fontes, pois Balão finalmente resolveu
fazer um processo. Está liquidado, soterrado, o corpo mais que aberto e não
recebe o devido. No bolso, cartõezinhos de advogado:
“Na forma
combinada apresento-lhe o senhor Guilherme Alves, vítima daquele acidente em
que ficou soterrado num poço de fundação”.
Um boi
amassado dentro de um curral.
Está devendo
duzentas pratas na venda, ainda não acabou de pagar a casa. Se num soltá fica
ruim. Ultimamente deixou novamente seus cabelos crescerem. Encheu os dedos de
anéis. Quem sabe, num arranja um papel em filme de cangaceiro. Está procurando
seus direitos.
A última filha
de Balão tem dez dias. Quem vai dizer a Balão que Corisco fez bem em não se
entregar?
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário