Por Benedito Vasconcelos Mendes
Padre Cícero (Cícero Romão Batista) foi um sacerdote e político cearense, carismático, caridoso, virtuoso, que dedicou todo o seu trabalho ao povo humilde do Nordeste. Nasceu na cidade cearense de Crato no dia 24 de março de 1844 e morreu em Juazeiro do Norte-CE no dia 20 de julho de 1934. Passou toda sua vida religiosa e política em Juazeiro do Norte. Entrou na política partidária com 67 anos de idade, quando em 1911 conseguiu elevar a então vila de Juazeiro para a categoria de município e tomou posse como seu primeiro prefeito, por articulação do médico baiano Floro Bartholomeu da Costa (1876-1926), que a partir daí passou a ter grande influência na vida política do sacerdote. Padre Cícero foi ser pároco na pequena e atrasada vila de Juazeiro em 1872, dois anos depois de ter concluído seus estudos no Seminário da Prainha em Fortaleza e se ordenado padre e aí permaneceu até sua morte. Sua vida religiosa foi muita conturbada, devido às divergências que teve com seus superiores diocesanos, primeiramente, com o segundo Bispo do Ceará, Dom Joaquim José Vieira (1836-1917), e depois da instalação da Diocese de Crato, com o primeiro Bispo Diocesano, Dom Quintino Rodrigues de Oliveira e Silva (1863-1929). O motivo das desavenças do Padre Cícero com seus superiores eclesiásticos foi o suposto milagre ocorrido em 1889, por ocasião de uma missa que ele celebrava. Uma de suas beatas, Maria de Araújo (Maria Madalena do Espírito Santo de Araújo, 1863-1914), ao receber a comunhão das mãos do Padre Cícero, observou que a hóstia ficou vermelha em sua boca. O povo considerou o fenômeno um milagre, acreditando que teria sido o sangue de Jesus Cristo, que se fazia presente na boca da beata. A notícia do milagre se espalhou rapidamente e as romarias a Juazeiro se intensificaram, em busca da benção do Padre Cícero. Em 1894, a Santa Sé negou o milagre, determinou a saída do Padre Cícero de Juazeiro, sob pena de ser excomungado, e suspendeu suas Ordens Sacerdotais, proibindo, assim, o Padre Cícero de celebrar os sacramentos e outros atos religiosos. Em obediência às determinações da Igreja, padre Cícero foi residir na cidade pernambucana de Salgueiro. Em 1898, ele viajou à Roma para se defender pessoalmente, perante as autoridades do Vaticano, das acusações que resultaram na sua punição. Ele foi ouvido pelo Supremo Tribunal do Santo Ofício e foi, em parte, absolvido, sendo-lhe permitido voltar a residir em Juazeiro e poder abençoar os fiéis, porém continuou proibido de celebrar missa e outros sacramentos. O então bispo do Ceará, Dom Joaquim José Vieira e, tempos depois, o bispo de Crato, Dom Quintino Rodrigues de Oliveira e Silva, foram * Engenheiro Agrônomo, Mestre e Doutor. Membro Efetivo da Academia Norte-rio-grandense de Letras, Academia Mossoroense de Letras, Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Instituto Cultural do Oeste Potiguar, Centro Cultural do Ceará. Sócio Correspondente da Academia Cearense de Letras, Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e Antropológico), Instituto Histórico e Geográfico Paraibano e do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano.
acusados pelo povo de perseguirem o Padre Cícero. Com o passar do tempo, cada vez mais foi aumentando o número de romeiros que se deslocavam até Juazeiro para pagar promessas. Com o aumento do número de romeiros do “Padim Ciço”, Juazeiro cresceu vertiginosamente e a liderança religiosa do Padre se tornou fanática, a ponto de ser considerado “santo” pelos sertanejos.
Em 1908, chegou a Juazeiro um médico baiano, Dr. Floro Bartholomeu da Costa (1876- 1926), que introduziu o Padre Cícero na política partidária e, a partir daí, começou a influenciar, de maneira decisiva, as ações políticas do Padre Cícero.
Em 1911, Padre Cícero, com a ajuda dos conchavos políticos de Floro Bartholomeu, foi escolhido para ser o primeiro Prefeito Municipal de Juazeiro do Norte e, na sua posse no cargo de prefeito, reuniu sob sua liderança 17 chefes políticos (coronéis) de toda a região do Cariri Cearense e firmou o famoso “Pacto dos Coronéis”, documento assinado por todos os 17 coronéis da região, garantindo que nenhum chefe político procuraria depor outro chefe, mantendo entre eles inquebrantável solidariedade, não só pessoal como política, sendo, em qualquer emergência, “um por todos e todos por um” e que manteriam incondicional solidariedade ao então Governador do Ceará, Comendador Antônio Pinto Nogueira Acciolly (1840-1921).
Em 1912, o Governador Nogueira Acciolly foi deposto e o Tenente-coronel Marcos Franco Rabelo (1861-1920) tomou posse como Governador do Ceará e demitiu o Padre Cícero do mandato de Prefeito de Juazeiro. Em fins de 1913 e começo de 1914, Juazeiro foi invadida por tropas policiais do Governo de Franco Rabelo, evento que ficou conhecido por “Sedição de Juazeiro”. As topas policiais invasoras foram rechaçadas pelo exército de jagunços organizado e comandado por Floro Bartholomeu, com a total concordância do Padre Cícero. Os jagunços comandados por Floro Bartholomeu, depois de expulsar as tropas invasoras da cidade de Juazeiro, entraram em diversas outras cidades, ocuparam Fortaleza e ajudaram a depor o Governador Franco Rabelo. Este fato deu notoriedade ao Dr. Floro Bartholomeu, que depois, em 1926, quando ele criou o Batalhão Patriótico, para combater a Coluna Prestes, foi homenageado com o Título de General Honorário do Exército Brasileiro.
Em 1914, Padre Cícero foi eleito Prefeito de Juazeiro do Norte e Primeiro Vice-governador do Estado do Ceará e Floro Bartholomeu foi eleito Deputado Estadual, oportunidade em que foi escolhido para ser Presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará. Floro Bartholomeu, com a ajuda do Padre Cícero, foi eleito duas vezes Deputado Estadual e duas vezes Deputado Federal. Após a morte de Floro Bartholomeu, ocorrida em 1926, Padre Cícero, por ser seu suplente, fez jus ocupar a cadeira de Deputado Federal, mas nunca saiu de Juazeiro do Norte para exercer o mandato de Deputado Federal no Rio de Janeiro. O que ele gostava mesmo era de ser prefeito de sua amada Juazeiro, cargo que exerceu, sem interrupção, de 1914 a 1927, além do pequeno espaço de tempo em que ocupou o mandato de Primeiro Prefeito de Juazeiro de 1911 a 1912, quando foi deposto pelo Governador Franco Rabelo. Até a Revolução de 1930, Padre Cícero foi o mais importante coronel político do Nordeste brasileiro.
Além da influência recebida, nos assuntos políticos, de Floro Bartholomeu, Padre Cícero também foi muito influenciado pelo professor, jornalista, intelectual e grande abolicionista cratense José Joaquim Teles Marrocos (1849-1910) e pelo Tenente-coronel da Guarda Nacional, José Joaquim de Maria Lobo, que era próspero fazendeiro do município de Lavras da Mangabeira.
Virgolino Ferreira da Silva o Lampião
Lampião (Virgulino Ferreira da Silva, 1898-1938) visitou o Padre Cícero em Juazeiro do Norte em 1926, quando o Rei do Cangaço recebeu a patente falsa de Capitão do Batalhão Patriótico, criado pelo Deputado Federal Floro Bartholomeu para combater a Coluna Prestes, que na época estava rondando os sertões nordestinos. Lampião recebeu também fardamento, fuzis e munições doados por Floro Bartholomeu (Batalhão Patriótico de Juazeiro do Norte), com a justificativa de que iria combater a Coluna Prestes. Com o objetivo de enfrentar a Coluna Prestes, que percorria o território brasileiro e que na época estava atravessando o Nordeste, o Deputado Federal Floro Bartholomeu, por solicitação do Presidente da República, Artur Bernardes (Artur da Silva Bernardes, 1875-1955), criou, em Juazeiro do Norte, o Batalhão Patriótico e teve a ideia de reforçar o referido batalhão com os cangaceiros comandados por Lampião. O Batalhão Patriótico de Juazeiro era formado por policiais da Polícia Militar do Estado do Ceará, por militares do Exército Brasileiro e por jagunços, requisitados dos coronéis sertanejos (chefes políticos). Floro Bartholomeu solicitou ao Rei do Cangaço que fosse até Juazeiro do Norte para ter uma conversa com ele, visando a entrada de Lampião e de seu bando de cangaceiros no Batalhão Patriótico. Nesta ida a Juazeiro, Lampião receberia armamento, munição e farda para seus comandados, mas no período em que Lampião esteve em Juazeiro (4 a 7 de março de 1926), o Deputado Floro Bartholomeu estava gravemente enfermo no Rio de Janeiro, onde morreu no dia 8 de março, um dia após a saída do bando de Lampião da cidade de Juazeiro. Devido à ausência de Floro, Padre Cícero ficou com a obrigação de receber o bando de cangaceiros e entregar os fuzis, munições e fardas.
Padre Cícero de Juazeiro, juntamente com o Padre Ibiapina (José Antônio Pereira Ibiapina, 1806-1883), Beato Antônio Conselheiro (Antônio Vicente Mendes Maciel, 1830-1897), Beato Zé Lourenço (José Lourenço Gomes da Silva, 1870-1946), Beato Zé Senhorinho (José Ferreira da Costa, 1892-1938) e com o Frei Damião (Pio Giannotti, 1898-1997), por terem vivido na mesma época e na mesma região (Sertão nordestino), originaram um tipo de religiosidade diferente, somente encontrado no sertão seco e quente do Nordeste brasileiro. Padre Cícero foi contemporâneo do Padre Ibiapina por 39 anos. O Beato Antônio Conselheiro foi contemporâneo tanto do Padre Cícero como do Padre Ibiapina durante longos 53 anos. Beato Zé Lourenço foi contemporâneo do Padre Cícero por 64 anos. Beato Zé Senhorinho foi contemporâneo do Beato Zé Lourenço durante 46 anos. Frei Damião foi contemporâneo do Padre Cícero por 3 anos e do Beato Zé Lourenço durante 15 anos. Este tipo de religiosidade singular, praticada pelos sertanejos nordestinos, baseada na romaria, no misticismo, no compadrio, no aconselhamento, e no endeusamento dos líderes religiosos, tem muito haver com as tradições culturais dos sertanejos, herdadas dos tapuias. Os índios nativos do semiárido nordestino (tapuias) tinham o costume do apadriamento e do aconselhamento. Ao Pajé, eles pediam conselhos sobre assuntos de saúde e religião e ao Cacique sobre assuntos relacionados com guerra e convivência social. Estas tradições culturais fizeram com que Padre Cícero fosse alcunhado de “Padim Ciço”, devido ao grande número de afilhados que ele tinha. O nome de Conselheiro (Antônio Conselheiro) também foi devido ao costume dos sertanejos de pedir conselhos. Na realidade, todos estes santos populares, eleitos pelo povo (Padre Ibiapina, Padre Cícero, Frei Damião, Beato Antônio Conselheiro, Beato Zé Lourenço e Beato Zé Senhorinho) gostavam de dar conselhos e tinham muitos afilhados.
Segundo o Padre Francisco Sadoc de Araújo (1931- ), Padre Ibiapina influenciou tanto o Padre Cícero como o Beato Antônio Conselheiro na maneira de fazer religião. Ele pregou tanto para o Beato Antônio Conselheiro como para o Padre Cícero, antes deles começarem suas vidas de líderes religiosos. O jovem Cícero Romão Batista, dois meses antes de entrar para o Seminário da Prainha em Fortaleza, com 21 anos de idade, assistiu às pregações do Padre Ibiapina por ocasião das Santas Missões de Missão Velha-CE, no dia 2 de fevereiro de 1865, oportunidade em que foi também inaugurada a Casa de Caridade de Missão Velha. Padre Ibiapina foi o precursor desta maneira singular de prática religiosa, usada no sertão nordestino.
Uma outra tradição dos sertanejos, herdada dos tapuias e que foi utilizada por estes líderes religiosos é o trabalho em mutirão. Os índios, tudo que faziam era em mutirão, caçavam em mutirão, pescavam em mutirão, coletavam frutos e mel de abelhas silvestres em mutirão e guerreavam em mutirão. Estes religiosos também usavam esta tradição sertaneja em seus trabalhos, em favor do povo e da Igreja. Padre Ibiapina, Beato Zé Lourenço e padre Cícero utilizavam o trabalho em mutirão para construir igrejas, capelas, cruzeiros, cemitérios, roçados e pequenos açudes no sistema de mutirão.
Um fato curioso ocorrido na vida do Padre Cícero foi o relacionado com um touro da raça zebuína Guzerá, que o padre ganhou de presente do cearense e grande industrial de Alagoas Delmiro Gouveia (Delmiro Augusto da Cruz Gouveia, 1863-1917). Padre Cícero encarregou o Beato Zé Lourenço de criar o referido bovino, conhecido por “Boi Mansinho”, no Sítio Baixa Dantas. Este bovino chamava muito a atenção dos romeiros, por ser de propriedade do Padre Cícero e de ser de um tipo de gado diferente, com cupim muito desenvolvido, chifres grandes e barbela extensa. Naquela época, os zebuínos estavam sendo introduzidos nos sertões nordestinos, trazidos da Índia. No sertão só existia gado de origem europeia, que não tem cupim desenvolvido nem barbela extensa. O Sítio Baixa Dantas passou a atrair grande número de romeiros do Padre Cícero, devido à presença do Beato Zé Lourenço e do Boi Mansinho, que passou a ser adorado como boi milagroso. Os romeiros retiravam pelos da vassoura da cauda, raspa dos chifres e dos cascos, fezes e urina do boi milagroso, para ser usado como remédio para a cura das mais variadas doenças. Devido o fanatismo dos romeiros, o Deputado Floro Bartholomeu, amigo fiel do Padre Cícero, preocupado com o desgaste da imagem do padre, mandou matar o Boi Mansinho e distribuir a carne com a população e prender o Beato Zé Lourenço.
Padre Cícero tornou-se conhecido na região antes do milagre da hóstia na boca da beata Maria de Araújo. Pouco tempo depois da chegada do Padre Cícero a Juazeiro, ocorreram duas grandes secas (seca de 1877-1879 e a seca de 1888), que fizeram com que este sacerdote ficasse admirado em todo o Nordeste brasileiro, por seu admirável trabalho de auxílio social ao povo, fornecendo comida, remédios e apoio espiritual às vítimas do flagelo climático.
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