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segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O JOGO DO CANGAÇO (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa
Rangel Alves da Costa

O JOGO DO CANGAÇO
Pegue um tabuleiro, duas vezes maior do que os de serventia para estirar cocada de frade, leve para o meio do tempo e aí, com as próprias peças extraídas da natureza, vá colocando cada objeto em seu devido lugar.
Assim como o xadrez e seus castelos, damas, reis e rainhas, e o jogo de bilhar, com suas caçapas, bolas, giz e tacos, o jogo do cangaço também deverá ser jogado com peças bastante conhecidas por todos. Pedras de pontas, pedras que ferem e que sangram.
Por cima do grande tabuleiro espalha-se barro vermelho, massapê e terra solta, tendo por cima mandacarus, xiquexiques, urtigas, cansanção, jibóia, cascavel, preá zanzando de um lado pro outro, alpercatas de couro cru esquecidas pelas veredas e muito mais. O passo, a pressa, o pavor...
E muito mais. Por cima do tabuleiro não se deve esquecer ainda do mosquetão, da pistola, do punhal, da cartucheira, do alforje, do cantil e do embornal, da carne seca apressada, do gole de barro seco, pode ainda espalhar por ali calça de couro, de tecido grosso, chapeu de couro estrelado, um perfume cheirando a suor e um dente de ouro.
Mas o jogo exige muito mais. O tabuleiro deve ser jogado em espaço apropriado, num lugar amigo das destemperanças do tempo, entregue à sorte da chuva, do sol, da trovoada, da noite estrelada, dos cantos e das vozes misteriosas da natureza, pertinho do silêncio das pedras que falam. Não só falam como choram.
Sendo um jogo já bastante antigo, desde muito que sua fama corre caminho, tanto por alguns famosos jogadores como pelos seus mestres. Muitos professores ensinaram essa arte como ninguém, mestres do quilate de
Jesuíno Brilhante
e Antônio Silvino, mas sendo um tal de
Virgulino Ferreira da Silva, alcunhado Lampião, o catedrático insuperável no jogo do cangaço.
Dizem que Lampião não só ensinava como jogava até com um olho fechado. Sabia de tudo do jogo, as estratégias de ataque e de defesa, o tempo certo para atacar o inimigo e o instante exato para correr em debandada. Ensinou a jogar de trás pra frente e da frente pra trás, de modo a fazer com que o inimigo achasse que suas pedras estavam distantes quando já caíam por cima dos desafetos.
Dentre as táticas que ensinava algumas ficaram famosas. O piado do passarinho dizia onde uma pedra estava escondida; um pio mais agourento indicava que era hora de avançar conjuntamente ou sair do lugar no mesmo instante; quando uma pedra era jogada, levava junto uma folhagem por trás que era pra não deixar rastro; e até o rastro indo pra frente já seguia noutra direção.
Esse tal de Lampião, o mestre dos mestres no jogo do cangaço, teve entre seus alunos jogadores como
Corisco,
Canário, Demudado,
Cajazeira,
Zé Sereno,
Volta Seca, Mergulhão,
Juriti e Zabelê, dentre muitos outros. As mulheres eram também atrevidas e algumas se intrincaram nessa aposta danada demais:
Maria, a bonita,
Sila, Adília,
Enedina, Dadá.
Mas vamos ao jogo em si, para se jogar hoje em dia como se jogava antigamente, ao menos buscando nas lições dos mestres o conhecimento já inútil para o tempo presente, pois aquilo que se jogava com raça, coragem e valentia, hoje se joga no blefe, na falsidade, na covardia, na traição injustificada. Aliás, as pedras, como se denominavam os jogadores, atualmente têm nome de gente mesmo e o que motiva o jogo não é mais revolta contra as injustiças, mas sim bandidagem desavergonhada.
Para jogar o jogo escolha mais três cabras valentes, quatro somando você, ou até mais. Antes de começar a peleja, antes de arriscar sua sorte, tem de saber que correrá risco de morte, passará sede e fome, se privará de qualquer conforto, sua vida dali em diante terá o mesmo valor que um passarinho na mira da baleadeira de menino danado.
No corrupio da ventania, quando o dado da sorte virar na direção de um, a este será dado o direito de fazer o jogo começar. Antes que ele grite “atacar”, lembre que basta uma falha sua para se tornar a primeira vítima. E as peças do tabuleiro serão manchadas com a cor do seu sangue. Foi assim noutros tempos, quando o tabuleiro sertanejo se encharcou de tal forma que rios de sangue ainda hoje fazem curso na história.
Da história, em certas situações é melhor apenas contá-la. Muitos jogadores não tiveram tempo de se arrepender; outros arriscaram pensando que ainda eram pedras quando já eram pó. Lampião, o maior jogador, um dia apostou com a sorte e perdeu. E você, que só tem valentia nos gestos e para os de dentro de casa, vai jogar?
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com

Um comentário:

  1. Amigo Rangel:

    Esse sua montagem de jogos do cangaço foi muito bem pensado. Valeu!

    Parabém pelo excelente conteúdo de jogos.

    José Mendes Pereira

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