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domingo, 13 de maio de 2012

ENTÃO, MÃE, ESTE É O CAMINHO?

Por: Lusa Vilar

"FORA DA CARIDADE NÃO HÁ SALVAÇÃO"

Em 1987,  nós saímos de um prédio de apartamentos situado à Av. Boa Viagem para morar numa casa de propriedade do meu cunhado Antônio Rêgo (in memoriam). Havíamos comprado um apartamento, mas a construtora não cumpriu o prazo de entrega, por esse motivo o meu cunhado nos convidou a morar nessa casa de sua propriedade, desse modo passaríamos a economizar o dinheiro do aluguel e poderíamos investir mais no projeto de ambientação do nova morada.

A casa ficava ali na Rua Teles Júnior, no bairro do Espinheiro. Era um casarão de bela arquitetura, de enorme quintal sombreado por mangueiras e coqueiros. Havia também um jardim cercado de uma grade de ferro, baixinha, bem à moda dos casarões construídos à época em que não vivíamos atormentados pela violência de hoje.

A sala de estar, que dava para o jardim, tinha as portas de vidro e não havia nenhuma grade de proteção. Meus três filhos, ainda pequenos, adoraram a nossa ida para essa casa, pois dispunham de grandes espaços para as brincadeiras, jogos de futebol, corridas de bicicleta, e outra coisas mais tão próprias da infância.

Naquele tempo, meu marido viajava muito e eu ficava sozinha com as crianças. Certo dia, um vizinho nosso, o Comandante Batista, que era o Chefe da Guarda Portuária e morava em um edifício cuja murada dava para o nosso quintal,  de revólver em punho, pulou o muro e saiu em perseguição a um ladão que tentou assaltar o seu prédio.

Passei a ter medo de ficar sozinha com as crianças, quando meu marido se ausentava por força do trabalho. Lembrei-me de seu Fernando, um porteiro do prédio em que morávamos anteriormente. Seu Fernando era uma daquelas pessoas que passava confiança: plácido, educado e temente a Deus. Vivia com uma Bíblia na mão e já fazia muitos anos que trabalhava no Edifício Andalúcia, onde morávamos antes de vir para essa casa do meu cunhado.

Convite feito, convite aceito. Seu Fernando passou a ser o nosso vigilante.
Minha mãe, que acabara de chegar do interior para uma das suas costumeiras visitas, ficou feliz com a nossa nova morada, até porque nunca gostou de apartamento, pois, a sua casa era também enorme e, por isso, nunca se acostumou com os exíguos espaços dos apartamentos da capital.

Ao anoitecer, como de costume, seu Fernando chegou para mais uma noitada de trabalho. Ele sempre chegava com a Bíblia na mão e cantarolando benditos de louvor ao Senhor.

Ao escutar aquela voz, minha mãe me perguntou:
- Quem é? Quem está cantando esses benditos aí no jardim? 
Ao que lhe respondi:
- É seu Fernando, mãe, o vigia. Esqueci de avisar a senhora.
Ela foi até o terraço, abriu a porta e disse:

- Boa noite! O senhor é o vigia? Já jantou?
- Já , sim, senhora, respondeu seu Fernando.
- Se tiver com fome diga, viu, que lá dentro tem janta.
- Não senhora, muito obrigado, eu jantei antes de sair de casa.
- Pois então dê licença, viu, que eu vou fechar a porta, pois minha filha está chamando para o jantar.

Quando sentamos à mesa, observei que ela estava com um semblante de tristeza indisfarçável.
- Mãe, o que é que a senhora tem, está triste por que? Está sentindo alguma coisa?
- Não, minha filha, eu estou bem.
- Não, não está. A senhora estava tão feliz e de repente se transformou, o que foi? O que a senhora estava conversando com seu Fernando? Sim, porque foi depois dessa conversa que a senhora ficou assim.

- Deixa de tua besteira menina, vai cuidar do jantar dos teus filhos, eu não tenho nada não.

Terminamos o jantar, coloquei as crianças na cama e fomos para o terraço assistir televisão. E de vez em quando ela dizia:
- Baixa aí a televisão, parece que tem alguém chamando!
- Não, mãe, é seu Fernando que fica dando voltas ao redor da casa e cantando aqueles benditos do Senhor.
- Coitado! Ele não pode ver um pouco de televisão? Só enquanto a gente não vai se deitar?
- Não, mãe, ele é o vigia, eu não posso abrir a porta e mandar ele entrar. Eu pago para ele guardar a casa, se ele entrar perde o sentido de ser o vigilante.
E novamente eu voltava a aumentar o volume da televisão. De vez em quando eu olhava para ela e encontrava novamente aquela tristeza estampada no seu rosto. Eu pensava comigo mesma: - Já fiz de tudo para alegrar a minha mãe e ela fica com essa cara de quem comeu e não gostou, meu Deus o que é que está faltando fazer para agradá-la?

Já passava da meia noite e o filme que assistíamos havia chegado ao final.
- Vamos dormir, mãe? Amanhã terei que acordar cedo para levar as crianças à escola.
- Vamos, sim, minha filha.
- E será que seu Fernando não está com fome? Quando ele chegou ainda eram seis horas da tarde e não quis jantar.
- Eu já coloquei lanche para ele.
- Que horas tu deste lanche a ele? Como, que eu não vi isso?
- Lá na área de serviço tem uma grade, eu preparo o lanche dele e quando o chamo ele vem pegar.
- Pelo buraco da grade, é?
- Sim
- Coitado! Será cachorro? Resmungou ela.
- Mãe, o que foi que a senhora falou?
- Nada, eu só fiquei pensando que comida pela grade se bota pra cachorro!
- Mãe, a senhora vem daquele nosso interior, onde todos os empregados viram a gente nascer e crescer, mas na capital é diferente: temos medo das pessoas porque não a conhecemos a fundo.

Bom, depois dessas conversas fomos nos deitar. Eu havia ficado muito pensativa sobre todas aquelas observações da minha mãe. Mas, acabei adormecendo na certeza de que eu não poderia ir de encontro às normas do mundo e, de certa forma, não seria eu a mudar as regras, além do mais, "terra de sapo, de cócoras com eles".

No meio da madrugada acordei com o barulho do chinelo da minha mãe. Levantei-me às pressas pensando que ela pudesse estar passando mal. A casa tinha um corredor que dava acesso aos quatro quartos e ao banheiro social. Havia também um jardim interno defronte as portas dos quartos, onde eu deixava uma luz acesa para facilitar a vida de quem precisasse ir ao banheiro. No final do corredor tinha uma porta que dava acesso ao resto da casa. Essa porta era muito bem fechada com ferrolhos e cadeados, pois a sala de estar era fechada com vidros e se algum ladrão quisesse nos atacar bastaria quebrá-los.

Ao ver a porta do corredor aberta, eu entrei em pânico. Santo Deus! alguém entrou na casa e levou a minha mãe, pois, ao olhar para a porta do quarto em que ela dormia percebi que estava aberta  e sua cama estava vazia.
Sai andando, pé ante pé, em direção à porta do corredor. Ao adentrar à sala de jantar eu fui sentindo um cheiro de pão assado, de queijo frito e de ovos passados na manteiga, que vinha lá da cozinha.
Ao ouvir a voz da minha mãe, meu coração começou a regularizar as pancadas. Pelo menos agora eu tinha uma certeza: ninguém a sequestrou.
Já na cozinha, eu me deparei com uma cena inusitada. Seu Fernando, escorado na grade da porta da cozinha, lia em voz alta alguns trechos da Bíblia, enquanto minha mãe terminava de preparar aquele banquete.

Quando ela me viu foi logo tentando se explicar:

- Eu me revirei até agora na infeliz daquela cama, não consegui pregar um olho. Então achei que, a essa hora da madrugada, seu Fernando já estaria morrendo de fome e, como vê, estou fazendo um lanchezinho para ele terminar a noitada, coitado!

Voltei para meu quarto depois de ter recomendado a ela que não esquecesse de fechar a porta do corredor bem fechada.

Também não consegui conciliar o sono. Virava para um lado e para outro e o pensamento se fixou naquelas atitudes da minha mãe. Ela não tinha discurso, ela não fazia pregação. Ela não ensinava com palavras, ela era o exemplo. Ela fazia. Ela praticava a caridade por intuição, por necessidade íntima. Ela não era feliz, se por perto estivesse um infeliz...

De manhã, logo cedo, já eu já estava de pé.

 - Acorda meninada! Olha a hora do colégio! Dizia eu ao pé da cama dos meus filhos. Eu tinha pressa, afinal, havíamos ido morar naquela casa por algum tempo, o tempo necessário para que o nossos apartamento ficasse pronto. E como o apartamento era em Boa Viagem, não ia tirar os meninos do Colégio Santa Maria somente por aquela temporada no bairro do Espinheiro, correria o risco de perder as vagas.

Ao sentar-nos à mesa para o café da manhã, seu Fernando apareceu na grade da porta cozinha.

- Até amanhã, Dona Lusa! Até amanhã, Dona Rita! Meninos, tchau! E saiu cantarolando, parecia feliz da vida!

Levei os meninos ao colégio e, de lá, segui para o trabalho. Nessa época, eu trabalhava no Departamento de Estradas de Rodagem - DER-PE. Eu só trabalhava um expediente, por isso, podia me dar ao luxo de estar na porta do colégio pontualmente às 13 horas, para pegar as crianças de volta para casa.

Minha mãe, que havia ficado na casa, me esperava sorridente. Ela sempre ia abrir o portão do jardim para a entrada do carro. Além de caridosa, ela era de uma humildade nunca vista.

Mais tarde, ao terminarmos o almoço. ela olhou para mim um pouco tímida e disse:

- Minha filha, desculpe pelo que fiz ontem à noite. Mas eu não consegui dormir pensando naquele infeliz que, para ganhar o pão de cada dia, precisa passar a noite inteira andando ao redor dessa casa, enquanto nós estamos abrigados, deitados em camas confortáveis, longe das muriçocas e dos perigos da rua.
Se você não tem como fazer diferente, que arme, pelo menos, uma rede no terraço e mande esse coitado se deitar, ele também é gente, gente igualzinho a nós. Faça isso, nem que seja só enquanto eu estiver por aqui, do contrário eu não vou me deitar, vou passar a noite fazendo lanche para ele e tapeando as horas até o dia amanhecer!

Oh! minha mãe, quantas lágrimas me custam, hoje, relembrar tudo isso! Tu que seguiste a Lei de Deus, que me deste tanto exemplo de bondade, neste dia consagrado às mães de todo o mundo, eu te peço que rogues a Maria Santíssima, a Mãe de todas as mães, que não desampare aqueles que, como eu, têm prestado mais atenção as regras que o homem criou em detrimento da obediência aos Mandamentos Divinos, onde, entre os dez consagrados, se encontra o maior deles:

 AMAI AO PRÓXIMO, COMO A TI MESMO.

Oh! minha inesquecível mãe, tu que soubeste caminhar sobre os espinhos, que deixaste para nós um caminho repleto de rosas, as quais brotaram das sementes que plantaste, roga a Deus que nossos corações se transformem em um jardim e, permita que em cada flor que nele aparecer se possa sentir o cheiro da tua essência, cujos ingredientes eram a caridade, a humildade e o amor ao próximo.

Muito obrigada, minha mãe, por tudo que me deste, por tudo que me ensinaste.
Hoje, Dia das Mães, eu te peço que me dê um pouco mais: Ajuda-me a viver na caridade, que tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta, até mesmo a tua ausência!

Para homenageá-la eu te ofereço esta oração que, ao explicar a caridade, me faz lembrar das inúmeras que praticaste. Antes, porém, escuta esse exemplo de caridade. Não te parece familiar?

CARIDADE

"Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse caridade, seria como o metal que soa ou como o sino que tine"

"E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse caridade, nada seria."

" E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse caridade, nada disso me aproveitaria".

"A caridade é sofredora, é benigna; a caridade não é invejosa; não trata com leviandade; não se ensoberbece".

"Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal. Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade".

"Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e a caridade. Mas a maior destas é a caridade" ( Paulo, I Coríntios, cap. XIII, vers. 1 ao 13).

"Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta"

Extraído do blog: "Raízes"

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