Publicado em 27/07/2013 por Rostand Medeiros
Antônio Carlos
Amâncio*
Fonte
Estud.
hist. (Rio J.) vol.24 no.47 Rio de
Janeiro Jan./June 2011 - http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-21862011000100005&script=sci_arttext
RESUMO
O cangaceiro é
personagem marcante no cinema brasileiro, ligado a uma dada mitologia do sertão
e a uma perspectiva regional. Associado ao filme de cangaço, reapropriação
do western, mereceu poucas representações em cinematografias estrangeiras
e por isto causa surpresa a produção, na Itália de 1970, do filme O
cangaceiro,de Giovanni Fago, que pretendemos analisar à luz de algumas
interfaces com elementos da cultura brasileira. Consideramos a dupla
apropriação do gênero (western, filme de cangaço, western spaguetti), e as
atualizações temáticas, pensando as transgressões aos modelos canônicos, a
partir de uma singular absorção de conteúdos historicamente
definidos.
Como traduzir
para o italiano a expressão “Olê, muié rendera”, tema musical do filme O
Cangaceiro e canção popular do folclore nordestino? Foi esta estupefação
de minha amiga napolitana naturalizada que me deu as coordenadas iniciais deste
texto. Para chegar a Ciao merlettá ela me descreveu todo o percurso
dessa transcodificação linguística: “Olê” seria “ciao”, ”salve”,
e “rendeira” é “merlettaia”: Ciao merlettaia, ciao merlettà…? O “ciao”,
que em italiano significa “salve” (“oi”) e “arrivederci” (“até logo”), era
muito usado em músicas populares ligadas ao trabalho ou à guerra: “Bella ciao”, “Ciao
amore ciao“. O “merlettà” seria um neologismo, aceitável porque é possível
cortar a sílaba final de uma palavra desse jeito, sobretudo num italiano mais
popular.
Essa
explicação me serve como uma luva, porque na verdade estou lidando com
transferência de códigos, intertextualidades, adaptação, remake. E me
serve porque aqui temos um procedimento usual neste gênero de operação de
linguagem: aproximamos sentidos, imaginamos associações, sintetizamos ou
ampliamos conceitos, montamos correspondências. Tudo em nome de
estabelecer uma relação de contato, diacrônica ou sincrônica, com um fato
original de cultura no momento de transpô-lo a outro sistema de referências.
Pois esta introdução certamente localiza nosso assunto, uma reflexão
assistemática sobre o filme O Cangaceiro. Não o original escrito e
dirigido por Lima Barreto, com diálogos de Rachel de Queiroz, realizado em 1953
e produzido pela Vera Cruz. Não este, premiado em Cannes como melhor filme
de aventura e também como melhor trilha sonora – o clássico “Muié Rendera” –
interpretado por Vanja Orico e com coro dos Demônios da Garoa, um filme que
teve ampla circulação internacional.
Cartaz de um
dos filmes de western dirigidos pelo italiano Giovanni Fago
Estaremos
falando de outro O Cangaceiro, seu sucedâneo italiano, filmado em 1970 por
Giovanni Fago, chamado de Viva Cangaceiro nos Estados Unidos,
com locações na Bahia e temática associada ao gênero cinematográfico inventado
no Brasil, o nordestern. É ele que nos leva a pensar na questão do remake, no
universo expressivo do filme de cangaço e suas apropriações e finalmente no que
este filme em particular evoca.
O remake,
ou refilmagem, faz parte do universo das interfaces com obras pré-existentes,
onde cabem também a adaptação, a referência e a alusão. Em sua proporção
industrial, o remake é associado à serie, à continuação ou ao ciclo,
a domínios expressivos no interior de uma obra ou na serialização de produtos,
temas ou estilos. Um campo determinado por um sistema de repetições, já
institucionalizado, que integra procedimentos ligados ao universo legal, de
direitos e plágios, ou referencial, de citações e iterações. Constantine
Verevis se debruça sobre o assunto, e é de seu livro Film remakes que
vêm as principais considerações aqui apresentadas.
Citando outros
estudiosos, ele identifica três marcas para o remake: a de uma
categoria industrial, que lida com assuntos de produção, que envolve estruturas
de comércio e negociação de direitos; a de uma categoria textual, que lida com
taxonomias e textos, enredos e estruturas; e finalmente a de uma categoria
crítica, que lida com recepção, incluindo públicos, com seus processos de
reconhecimento e com a consolidação de um discurso institucional. Mas é o uso
da variação e da diferença (em relação aos originais) que vai levar a outras
categorizações, estabelecidas por Michael Druxman e desenvolvidas por Harvey
Roy Greenber: a) a refilmagem estrita, identificável; b) a refilmagem
identificável, mas transformada; e c) a refilmagem não identificável,
disfarçada (apud Verevis, 2006: 7). As leituras avançam por esse caminho
tortuoso, com variações sobre a similaridade entre obras, a tensão entre
inovação e imitação, empréstimos, autoria, questões de autenticidade e de
referencialidade, homenagem, imitação ou roubo.
Mas não cabe
aqui apenas articular conceitos. O que finalmente encontramos é a perspectiva,
também rarefeita, de uma estética da diluição, na qual elementos de
variadas formas culturais se dissolvem em outros, de maneira indefinida e
inconstante, integrando- se ao universo da nova obra gestada. É de uma espécie
de solução química que estamos falando aqui, dispersões que montam um sistema
homogêneo, inseparáveis do dispersante. O resultado desta operação, entretanto,
nem sempre é líquido e transparente. Como em qualquer obra de cinema, aliás.
A ira de Deus
O que motivou
Giovanni Fago naquele longínquo 1970 a se debruçar sobre os cangaceiros foi a
ideia de que eles eram “bandidos políticos”, ou seja, não apenas ladrões, mas
rebeldes com posição firmada contra os latifundiários. Segundo o autor, o filme
define-se, assim, pela escolha ideológica de seu objeto: uma posição política
forte contra a colonização e o imperialismo. Obviamente ele já conhecia O
Cangaceiro, de 1953, grande sucesso comercial na época, assim como alguns
filmes do Cinema Novo. Fago argumenta que sua intenção não era fazer uma
“releitura comercial” desse fenômeno, até porque respeitava certas
características da cinematografia brasileira, a qual, primitiva na aparência,
era, na verdade, dotada de grande refinamento e inteligência, animada por forte
tensão política e impulso à rebelião. Um cinema que correspondia a suas
convicções políticas e sociais, frente aos conflitos da América Latina. 1 Porém, o que define objetivamente o projeto de produção é a
aquisição dos direitos da canção do velho filme O Cangaceiro.
Essa
perspectiva comercial vai ser um dos únicos elementos de ligação entre a
produção italiana e uma larga tradição brasileira de filmes de cangaço. Há toda
uma linha de parentesco sustentando esta arquitetura, que começa nos filmes
de cowboys, no bangue-bangue, nos filmes de faroeste.
Se o western –
considerado o cinema americano por excelência num texto de André Bazin,
publicado em 1953 (Bazin, 1991: 204) – sofreu contaminações passageiras, o que,
segundo ele, não deve ser lastimado, também resistiu, mantendo os símbolos e
signos que o fizeram mitológico. O cenário, a paisagem, a cavalgada e a briga,
as referências históricas, “o grande maniqueísmo épico que opõe as forças do
Mal aos cavaleiros da justa causa”, a Mulher em sua relação com a Virtude, até
mesmo os cavalos, são todas marcas pelas quais se expressa uma ética da epopeia
e mesmo da tragédia. Marcas que geram um estilo de mise-en-scène e
transparecem numa composição da imagem, os grandes planos de conjunto, a quase
abolição do primeiro plano, o travelling e a panorâmica que “negam o
quadro da tela e restituem a plenitude do espaço” (Bazin, 1991: 206). Um gênero
dotado de situações excessivas, de exagero dos fatos e de uma inverossimilhança
ingênua, fundado, entretanto, numa moral que o justifica.
Cartaz do
filme brasileiro O Cangaceiro, de Lima Barreto
Diluindo-se
pelo mundo, o western passa pelo Brasil, onde assume a forma do filme
de cangaço, tematizando elementos da história local e acrescentando uma tintura
cultural própria. O Cangaceiro, de Lima Barreto, é a matriz que vai moldar
um longo ciclo que se condensa entre os anos 1950 e 1970, com tonalidades
diversas, que vão do filme de aventuras à comédia erótica e que promove um
retorno pós-modernizado na virada do milênio. 2
Walnice
Nogueira Galvão (2005) associa o fenômeno da sertanização, no qual o
representante mais marcante é o cangaceiro, ao regionalismo literário dos anos
1930, às artes plásticas do expressionismo social e engajado dos anos 1940 e ao
faroeste americano, como de praxe, bem como a uma certa composição gráfica do
cinema mexicano, com suas paisagens desérticas, seus cactos na caatinga, o gado
à solta tocado por cavaleiros de sombreros. Rica iconografia calcada no
inacabado Que Viva México, de Eisenstein, e suas contrafações.3 Um circuito de referências que passa obrigatoriamente por
Elia Kazan e seu Viva Zapata de 1952, e chega ao western de
Lima Barreto, rodado em Vargem Grande do Sul, no interior de São Paulo, com seu
contrastante preto e branco, sua luz ofuscante, seu emblemático contraluz dos
cangaceiros no pôr do sol, quando o cangaço vira pura mitologia, depois de
desaparecido do mundo social desde a década de 1940, com a morte de Corisco.
O Cinema Novo
vai retomar o imaginário sertanejo do western, relido numa tecla nacional
e popular, e vai ainda segundo Walnice Galvão, ressemantizá-lo num arco
cinematográfico em vários segmentos. O primeiro segmento era aquele
temporalmente próximo ao golpe militar e aí estará o também emblemático Deus
e o diabo na terra do Sol, junto com Vidas secas, Os fuzis e A hora e a
vez de Augusto Matraga, certamente o conjunto mais visitado e seguramente, o
mais próximo do olhar de Giovanni Fago. O dragão da maldade contra o santo
guerreiro, anos depois, completa o grupo (Galvão, 2005: 87).
Cartaz da
película Deus e o diabo na terra do sol, de Gláuber Rocha, de 1964
Glauber já
preconizara, em 1957, a autonomia do cinema perante as outras manifestações
artísticas, assim como Bazin, em 1953, caracterizara o western como
“filho autêntico e puro do cinema”, no qual o herói se dilui no gênero, que
progride em concentração expressiva (Rocha, 1997). Esta é certamente uma boa
referência para pensarmos a relação western-cangaço-spaghetti e
vermos como O Cangaceiro de Fago se comporta frente a tantas
hibridações.
Compañeros
Na Itália,
o western-spaguetti chegou num momento de crise da indústria
cinematográfica e dos grandes estúdios. No entanto, para que lembremos que a
releitura do western expandiu-se por toda parte e não foi só uma
invenção italiana, o primeiro faroeste europeu é, na verdade, alemão. Refiro-me
a O Tesouro dos renegados, de 1961, as aventuras de um índio chamado
Winnetou, filmado na antiga Iugoslávia por Harald Reinl (Carreiro, 2009).
De todo modo, na Itália foram rodados mais de 600 filmes nas décadas de 1960 e
1970, insuflando um pouco de oxigênio ao gênero, já desgastado, através do
fomento à aparição de uma galeria de novos cineastas-autores, da composição de
um elenco estelar multinacional, sem o peso da história de sua matriz
americana. Boa parte dos cineastas possuía inclinações à esquerda, valendo-se
das mitologias do gênero e das revoluções (principalmente da mexicana,
aproveitada à exaustão), uma levada pop, uma música onipresente, expansão do
campo temático das histórias, maxi-valorização da paisagem e dos recursos
técnicos contemporâneos, do zoom intenso à moldura dos rostos em
primeiro plano, valorizando a profundidade de campo, e mais as explosões
apresentadas em uma montagem lacônica, dando sempre a impressão de faltar
alguns fotogramas.
Giovanni Fago
mantém desse universo, a moldura e a embalagem, mas vai buscar outros
conteúdos. Ele se cerca de muitos cuidados. Seu roteirista é Bernardino
Zapponi, que trabalhou com Fellini em Satyricon, Os palhaços, Roma,
Casanova e muitos outros. A música cabe a Riz Ortolani, compositor
experiente, com participação em mais de duzentas trilhas. Conta ainda com a
colaboração do fotógrafo Alejandro Ulloa, que trabalhara com Sergio Corbucci,
Umberto Lenzi, Enzo Castellari e muitos outros. Uma equipe afiada! O ator
principal, Tomas Milian, vinha de uma carreira marcante no western-spaghetti,
e no mesmo ano participa de Compañeros, um filme de Sergio Corbucci, na
companhia de Franco Nero. Esse filme que, por várias razões, guarda muitos
pontos de contatos com O Cangaceiro, entre os quais o de que ambos foram
co-produções ítalo-espanholas.
Ao som de
“Muié rendera”, a trama tem início com um ataque da polícia a um bando de
cangaceiros, sitiados num vilarejo. O coronel Minas coordena o extermínio do
bando de Firmino… e para seu azar, nesta confusão a vaca do camponês Expedito é
fuzilada. Expedito é recolhido pelo beato Julião das Miragens, que lhe ensina o
valor da justiça, de um Cristo que usa o chicote e pune os maus, distribuindo o
que comer e o que beber entre os pobres, e lhe anuncia que ele, Expedito, é o
enviado do Senhor, sob o nome de Redentor!
Um acaso, um
personagem que é levado a uma situação inusitada, um protetor que o acolhe e
instrui, tudo isso compõe uma situação modelar. Mas a caracterização física dos
personagens é quase caricata, os diálogos são trespassados por uma ingenuidade
cômica que, se não compromete a verossimilhança da narrativa, aponta para um
registro de tonalidades mais associadas à comédia de costumes italiana e ecos
de Brancaleone.
Expedito prega
nos vilarejos, convocando apóstolos em meio ao desinteresse da população. Mas
quem aparece em sua frente é o bando do Diabo Negro, a quem Expedito se
apresenta como o novo rei do cangaço, sagrado pelo arcanjo Gabriel para
combater pela verdade e a justiça, a cruz e o facão na mão. Convidado a
integrar o grupo, outra das situações-modelares do gênero, Expedito recusa e
promete ter sua própria gente. A frase do cangaceiro soa quase como ameaça
quando estabelece, metaforicamente, a hierarquia das relações sociais: “um
facão é mais longo que a mão, mas um fuzil é mais longo que um facão”. E
Expedito responde a ela se livrando da cruz.
Em Angicos, na
festa cívica de inauguração da bateria de canhões da cidade, com a presença do
cardeal, vemos então o dissimulado Expedito na situação de paralítico, sentado
sobre um carrinho de rolimã, mas seu jeito debochado vai levá-lo à prisão,
determinada pelo coronel Minas. Na cadeia, ele constituirá seu bando, depois de
demonstrar sua astúcia e explodir os canhões. Expedito/Redentor, com as armas
que consegue, mata os que o desobedecem, parte para o sertão e ganha
notoriedade, passando a ser procurado.
É então que se
apresenta sua contrapartida dramática. Num vilarejo, chega um automóvel de
classe, dirigido por um holandês louro e elegante, de botas de cano alto
e foulard. Munido de livros, mapas e de instrumentos, o homem dirige-se à
praia. A população olha com curiosidade o automóvel diferente. Voltando, o
homem encontra seu carro totalmente depenado. Só sobrou a estrutura de ferro.
Enquanto ele se indaga o que teria acontecido, cresce sobre seus livros a
sombra do Redentor! No contra plano, em contraplongée, Redentor aparece
santificado, envolto por um halo solar. O cangaceiro intima o viajante a ler
para ele um longo romance sobre o mar. E daí, deste contraste entre a força, a
violência e a submissão física e a educação, a leitura e os modos cultivados do
europeu vai se estabelecer o elo central da relação entre os dois homens. Esta
é a trama principal, denunciada por alguns críticos como sustentada por um homo
erotismo casto, demarcando um campo pouco explorado até então pelo gênero e
suas derivações, normalmente pré-determinados pelo machismo e pela virilidade.
O holandês
Vincenzo Helfen aproveita-se da atração que exerce sobre o camponês analfabeto
e desenvolve essa amizade de acordo com sua estratégia. Torna-se a interface do
cangaço com o poder local, e mesmo internacional, do qual será o representante,
como veremos, e que implica finalmente a exploração de jazidas de petróleo e a
maximização de seus ganhos agregados, tais como a ocupação de mão de obra local
e a mais intensa circulação financeira. O holandês é relacionado ao progresso,
e o cangaceiro vai ser seu associado contra o atraso do sertão.
Essa oposição
qualifica a temática da transição do rural ao urbano, do pré-capitalismo ao
capitalismo de ponta, permitindo, assim, que o filme seja inscrito na
representação da modernização e da evolução industrial do Nordeste brasileiro.
O avanço do segmento agroexportador para o de prospector de petróleo se dará na
realidade com a instalação da primeira refinaria do Brasil, a Landulfo Alves em
Mataripe, no Recôncavo baiano, em 1956, operações que antecedem o futuro pólo
petroquímico de Camaçari. 4 O filme expressa, portanto, uma situação alegórica e quase
premonitória, já que estamos presumivelmente nos anos 1930. A pertinência da
objetivação do petróleo como mote propulsor da trama, guarda, certamente,
relação com o olhar contemporâneo dos anos 1970.\
Dramaticamente,
esse acerto é negociado por Helfen que vai possibilitar a ascensão de Redentor
como autoridade no sertão, já que este, depois de perseguido, passa a compor
com as autoridades, e extermina os bandos rivais, para que a empreitada do
petróleo possa prosseguir. O Redentor torna-se a ponta de lança de um acordo
que engloba o poder civil local, os militares, a Igreja e os interesses
estrangeiros, representados e patrocinados não só por Helfen e sua companhia petrolífera,
mas também por um inverossímil bando de gangsters, como que saídos de uma
peça de Bertolt Brecht.
Não faltam
emboscadas, tiroteios e mobilizações de tropas, em que, às vezes, um tom
contemplativo desarruma a potência de um filme de ação. Como, por exemplo, na
caminhada ao pôr do sol, onde quem se alinha na contraluz, em postura
desconstrutora e modernizante, são o destacamento militar e mais tarde, o
negociador Helfen, num pungente adeus à iconografia do velho sertão.
Essas são
transgressões às marcas do gênero, assim como o são a repartição equânime do
tempo dramático entre os dois personagens centrais, o louro europeu e o mestiço
Expedito, em encontros e confrontos, negociação de armas e tratados de paz,
jantares de apresentação, concessões de salvo-conduto e danças de forró em
ritmo acelerado, quase de samba. É nessa ocasião que, em um rápido plano,
Expedito é visto beijando uma empregada uniformizada, único acesso dramático do
universo feminino em relação direta com um dos dois protagonistas masculinos.
Um beijinho e só, o máximo de relação hetero permitida.
Os elementos
da representação, associados ao gênero e suas diluições, são bastante
completos, não faltando os duelos de facão, as feiras, com cantadores e
fotógrafos, a relação de subserviência dos camponeses e da própria Igreja. Na
história, então, Redentor ganha uma fazenda que quer transformar num paraíso
terrestre, prova de sua entrega aos desígnios divinos.
A trama entra
em seu desenvolvimento final, que implica no jorro do petróleo e na aparição
dos gangsters americanos comandados por Frank Binaccio e seus homens,
fugitivos do governo republicano de Calvin Coolidge por evasão fiscal. O
governador decide matar Expedito e, pagando um bom preço, pede que os gangsters lhe
tragam a cabeça do cangaceiro. Sentindo-se traído, Expedito culpa o holandês,
que aparece e explica que o governador mandou matar todos do vilarejo,
responsabilizando-os por acolher cangaceiros. A vila assim foi evacuada para a
perfuração dos poços. Helfen assume sua parte de culpa e denuncia a negociação
com Binaccio. É esta traição, que o holandês faz ao governador e ao seu país,
que salva o cangaceiro. Helfen define aqui seus afetos e assume junto ao
Redentor sua redenção. Esta união, movida por vingança, provoca a morte dos gangsters e
do governador e o apaziguamento da região.
Encontro na
duna, Expedito e seu bando, Vincenzo Helfen partindo de vez. Na despedida,
Helfen confessa sua simpatia e cumplicidade com o cangaceiro, que admite não
ser o enviado que imaginara. Mas o holandês o conforta, dizendo que ele tinha
cumprido muito bem o seu papel. Happy-end. Expedito volta para a estrada,
Helfen provavelmente para a Holanda.
O filme
termina de modo convencional, centrado no selo da amizade entre os dois
protagonistas. O grupo, finalmente conscientizado, continua a atuar e isso é
uma possibilidade de novas aventuras, como num western tradicional.
Vence o pressuposto violento e vingador, mas ético, do bandido, sob o
arrependimento do adversário.
Giovanni Fago
conta que o filme fez sucesso na Itália e no resto da Europa, mas só chegou à
América Latina três ou quatro anos depois (por conta de sua perspectiva
política, foi considerado perigoso). O cineasta renega a etiqueta de western,
considerando-a inexata, preferindo defini-lo como um filme político de
aventuras.
Jornal carioca
de 1973 apresentando o filme italiano, que foi intitulado no Brasil “Rebelião
de Brutos”
A apropriação
do nome O cangaceiro e de seu universo mitológico estabelece uma
conexão obrigatória com a obra original e este gesto não pode ser considerado,
de nenhuma maneira, como ingênuo, desprovido de intencionalidade, inclusive
comercial. Os direitos da canção original5 são o aval desta operação.
Somos levados
a buscar na obra italiana elementos presentes no filme de Lima Barreto, mas nos
deparamos com traços soltos, pertencentes ao gênero, e quase nenhuma marca do
original. O impulso criador do western clássico, de sua apropriação
pelo Cinema Novo e pelo spaghetti, perde-se num pastiche sem alma. É essa
estética da diluição sucessiva que leva a um processo de abrandamento das
especificidades de cada forma cinematográfica utilizada, solvendo num texto
comum o que foi um dia ousadia ou expressão dinâmica.
Notas
1 Entrevista do diretor, bônus do DVD O Cangaceiro, coleção
L´âge d´or du cinéma européen. Wild Side films
2 O Almanaque, boletim eletrônico da jornalista Maria do
Rosário Caetano dá conta, em 15/06/2010, de várias produções sobre o cangaço em
andamento. Homero Olivetto, Wolney Oliveira, Hermano Penna, Geraldo Sarno e
Ícaro Martins preparam filmes sobre o cangaço ou sobre cangaceiros. A filiação
prossegue.
3 Filme feito entre 1930 e 1932 por Eisenstein e que gerou
algumas montagens executadas sem sua presença e renegadas pelo
cineasta: Thunder Over Mexico, Eisenstein in Mexico, Death
Day e Time in the Sun.
4 Carta IEDI n. 201 – O Futuro do Pólo Petroquímico de
Camaçari – Publicada em 31/03/2006
http://www.iedi.org.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=2037&sid=20&tpl=printerview –
acessado em 27/09/2010
5 A canção, cuja autoria foi atribuída a Zé do Norte, teve
grande repercussão internacional. Foi gravada por um naipe de músicos que vai
dos Demônios da Garoa, em 1953, até Joan Baez, em 1964, passando por Astrud
Gilberto e muitos outros.
Referências bibliográficas
BAZIN, André.
O western ou o cinema americano por excelência. O Cinema: Ensaios. São
Paulo: Brasiliense, 1991. [ Links ]
CARREIRO,
Rodrigo. Do desprezo à glória: o spaghetti western na cultura midiática. Baleia
na Rede, vol. 1, nº 6, ano VI, dez/2009 (http://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/BaleianaRede/Edicao06/4_Do_desprezo_a_gloria_western_spaghetti.pdf)
[ Links ]
GALVÃO,
Walnice Nogueira. Metamorfose do sertão. In: CAETANO, Maria do Rosário
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ROCHA,
Glauber. O western: uma introdução ao estudo do gênero e do herói. Mapa,
nº1, Salvador, ABES, 1957. [ Links ]
GOMES, João
Carlos Teixeira. Glauber Rocha, esse vulcão. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1997. [ Links ]
VEREVIS,
Constantine. Film remakes. Edinburgh: Edinburgh University Press Ltd,
2006. [ Links ]
Referências
filmográficas
A hora e a vez
de Augusto Matraga (BRA, 1965, dir: Roberto Santos)
Casanova de
Fellini (ITA, 1976, Federico Fellini)
Compañeros (ITA,
1970, dir: Sergio Corbucci)
Deus e o diabo
na terra do sol (BRA, 1963 , dir: Glauber Rocha)
O cangaceiro (BRA,
1953, dir: Lima Barreto)
O cangaceiro (ITA,
1970, dir: Giovanni Fago)
O dragão da
maldade contra o santo guerreiro (BRA, 1969, dir: Glauber Rocha)
O incrível
exército de Brancaleone, (ITA, 1965, dir: Mário Monicelli)
O tesouro dos
renegados (ALE/ITA/IUG, 1961, dir: Harald Reinl)
Os fuzis (BRA,
1964, dir: Ruy Guerrra)
Os palhaços (ITA,
1970, Federico Fellini)
Que viva
México (MEX, 1932, dir: Grigori Aleksandrov, Sergei M. Eisenstein)
Roma de
Fellini (ITA, 1972, Federico Fellini)
Satyricon (ITA,
1969, dir: Federico Fellini)
Thunder over
Mexico (EUA, 1933, dir: Sol Lesser)
Time in the
Sun (EUA, 1939/40, dir: Mary Seton)
Vidas secas (BRA,
1963, dir: Nelson Pereira dos Santos
Viva Zapata (EUA,
1952, dir: Elia Kazan)
Este artigo é
dedicado a Mariarosaria Fabris.
*Antônio
Carlos Amâncio é mestre e doutor em Cinema pela Escola de Comunicação e
Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) e professor associado III do
Departamento de Cinema e Vídeo e do Programa de Pós-Graduação (mestrado e
doutorado) da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil (tunicoamancio@gmail.com).
COMENTÁRIO DO
ADMINISTRADOR DESTE BLOG – Para quem desejar assistir o filme na íntegra é só
clicar no link que segue. Aqui temos a versão original em italiano, com legendas
em espanhol.
http://www.youtube.com/watch?v=N3JvtkZKsbE
Extraído do blog Tok de História do historiógrafo e pesquisador Rostand Medeiros
http://tokdehistoria.wordpress.com/
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